Fernando Pessoa, ao poisar os pés em terras portuguesas (1905), sentiu fugir-lhe a pátria que um dia, lá longe, imaginara. Encontrou-a moribunda e humilhada. Uma pátria estilhaçada que vivia de costas voltadas para o presente na sua cega subserviência ao que vinha do estrangeiro, muito particularmente, de Inglaterra. E sentiu, como sua, a desesperança dessa pátria sofrida. Então, começou a imaginar um futuro para o Portugal presente. Chamou, por isso, a si a árdua missão de dar vida à outra pátria, àquela que no exílio criara, e tomou em mãos essa pátria enrolada para dentro com o intuito de fazer dela uma nação “criadora de civilização”. Possuído por esse fervor patriótico, propôs-se “melhorar a situação de Portugal” (Obra Poética e em Prosa, II, 79) e entre, o “milhar de planos” (ibidem) que fervilhava na sua cabeça, estava a ideia de escrever República Portuguesa, panfletos portugueses e a aspiração de provocar uma revolução para derrubar a vendida e corrupta e monarquia portuguesa apodrecida. Temos, portanto, em 1908 (data em que registou nas folhas do seu diário este escrito íntimo) um Pessoa pró-republicano activista. Não chegou, na verdade, a fomentar a revolução, mas escreveu panfletos em prol da República e com o objectivo de denunciar aqueles a quem chamou “cultores da asneira nacional” (Pessoa por Conhecer, I 109) criou jornais – (O Phosphoro, O Palrador, O Iconoclasta) – e personagens que tinham por vocação exaltar os valores republicanos e denegrir a monarquia portuguesa. Entre essas personagens, encontramos um tal Joaquim Moura Costa de verve incendiária, iconoclasta e virulenta, colaborador daqueles periódicos. Esta personalidade literária com a sua linguagem grosseira salpicada de palavrões, tinha por função destruir, através do riso, a Monarquia, já de si, moribunda. Uma vez implantada a República, o entusiasmo de Fernando Pessoa depressa esmoreceu. O governo saído do 5 de Outubro depressa o desiludiu. O resgate nacional tão esperado ficara-se pelos pequenos remendos pontuais do Governo Provisório. O primeiro Governo Constitucional poucas ou nenhumas esperanças trazia, pois, mesmo antes de ser empossado, já a Assembleia Nacional Constituinte partilhava o poder com o executivo existente, cuja preocupação central era hostilizar a Igreja e fazer política contra a monarquia. A actuação enérgica que dele se aguardava, relativamente às torpezas, escândalos e abusos perpetrados durante os anos finais da realeza, ficou em nada. A colagem que os grandes responsáveis pelos excessos do antigo poder fizeram ao novo governo valeu-lhes a impunidade. A acção patriótica que Pessoa esperava – o resgate de Portugal – continuava por cumprir. Desiludido, não com a República, mas com os seus actuais chefes, Pessoa numa carta de 18 de Março de 1913 dirigida a Garcia Pulido fala do novo projecto que, em conjunto, por acharem que tinham “um comum ponto de vista – republicano, anti-afonsista, anti-socialista” (Crítica, I, 88) se preparavam para lançar: um panfleto semanal intitulado Jogo Franco de carácter satírico que visava vexar os chefes republicanos (os “esmigalhandos”, como lhes chama na carta), e, particularmente, Afonso Costa. Um dos folhetos, que diz já ter na forja, intitulava-se A História Cómica do Sapateiro Afonso; um outro que diz ter em vista seria uma Carta a um Monárquico, onde pensava pôr “de modo novo o problema político actual” e onde pretendia mostrar “a necessidade de ser republicano com argumentos virgens” (ibidem). 

Porém, o desregramento dos governos que seguiram, bem como a participação de Portugal na Guerra de 1914-18, provocaram a mais viva reprovação por parte de Pessoa que, desde então, nunca mais poupará as suas críticas a essa Oligarquia das Bestas, nome com que baptizou o Partido Republicano Português. Porém, no campo da sua batalha ideológica, a esperança voltou a nascer com a “República Nova” de Sidónio Pais, aquele a quem, depois de morto chamou Presidente-Rei, ainda que não tenha poupado críticas à sua ditadura. A sua expectativa voltou animar-se com o advento do Estado Novo, mas depressa esvaeceu.

O que Pessoa, no fundo, procurava era um chefe carismático que definisse os rumos da nação portuguesa e a cobrisse com mesmo brilho que os descobrimentos portugueses a tinham revestido. Por isso, deitou mão ao pedagogo que sabia em si e projectou escrever uma obra que ajudasse, ou melhor, levasse a uma reflexão sobre a natureza da nação portuguesa e o consequente destino de Portugal. A esse livro que encarou escrever e de que nos deixou algumas páginas denominou-o Portugal. Da sua estrutura interna, apenas conhecemos o plano respeitante à “Introdução”. Essa introdução mostra-nos as três partes, que à boa maneira grega chamou “Livros”, em que pensava dividir o seu estudo: “Livro I – Portugal como sociedade./ Livro II – Portugal como Nação./ Livro III – Portugal como Estado:” (Obra Poética e em Prosa, III, 584). De imediato, apresenta-nos o caminho a seguir para tratar o “Livro I”, cujas alíneas (d) e (e), apontam, respectivamente, para uma espécie de conclusão e orientação para as pôr em prática: “ (d) O que há a fazer em Portugal. / (e)   Maneira de o fazer.” (ibidem). O ensaio sobre Portugal concluía esta obra que abria com uma “Introdução ao Problema Nacional”, a que se seguia uma “Introdução ao Estudo do Problema Nacional” que seria continuada pelo capítulo “Precisamos Criar Portugueses” (Obra Poética e em Prosa, III, 583-584). Na “introdução ao problema nacional”, Fernando Pessoa propunha-se estudar o carácter português, tendo em conta as suas disposições inatas e hereditárias e as influências, quer do meio geográfico e do clima, quer históricas e civilizacionais, para daí poder inferir as condições presentes e, assim, explicar, de certa maneira, a organização social, política, cultural e militar do país, bem como a sua relação com o estrangeiro. Com este primeiro capítulo, Pessoa, procurava encontrar uma explicação causal e genética para explicar o carácter psicológico do homem português. Porém, para que o seu estudo não pecasse por descuido, o autor sentiu necessidade de ter em conta as marcas acidentais e, portanto, secundárias, introduzidas pelo meio físico, quer geográfico, quer climático e os vincos circunstanciais sociais que alteram o elemento natural (base do carácter português), quando sobre ele actuam. Uma vez em posse destes dados, o poeta passa ao capítulo seguinte, onde se propõe “reconstruir o psiquismo nacional” (Obra Poética e em Prosa, III, 582). O que pretende com o seu estudo é expurgar da personalidade portuguesa os elementos que lhe são adversos e que a estão a corroer. Uma vez diagnosticado e identificado o mal, as condições estão criadas se poder educar os portugueses e, consequentemente, resolver o problema nacional. Como bom analista que é, distingue os métodos e estratégias a usar para cada grupo social. Assim, a reconstrução “do psiquismo nacional aristocrático” far-se-ia “pela renovação literária e artística” (ibidem), a “do psiquismo nacional nas classes médias: pela educação” – neste passo um problema se levanta ao nosso raciocinador que se questiona sobre “quem há-de educar os educadores? A pergunta fica sem resposta” (ibidem), e a “do psiquismo nacional popular: pela insistente propaganda nacional, no bom e (tanto quanto possível) alto sentido.” (Obra Poética e em Prosa, III, 582/583). Compreende-se, agora, o motivo pelo qual o capítulo “Portugal” é o último: sem este estudo prévio, não faria sentido falar de Portugal, porque tudo o que se dissesse seria feito sem conhecimento de causa e, portanto, deixaria de ter sentido.

Subjacente à elaboração deste projecto estão as teorias de Taine, com a sua “faculdade-mestra”, essência de ordem psicológica que explica o modo de agir e que resulta de um “estado moral elementar” que é responsável pela organização política, filosófica, religiosa e artística de uma colectividade. São três as fontes, segundo Taine, responsáveis por esse estado moral elementar: a raça, o meio e o momento. É delas que Pessoa se propõe falar no seu ensaio. Nos fragmentos que nos deixou e que iriam dar corpo a esta sua obra, uns têm a indicação do capítulo a que pertencem, outros têm apenas um título atribuído pelo autor, facto que nos permite, com alguma margem de erro, encaixá-los no respectivo lugar a que parecem pertencer. Neles, o poeta expõe e discute questões que têm a ver com o sentido de Portugal, a vitalidade nacional, a definição da nacionalidade do ponto de vista civilizacional, a cultura portuguesa, a razão da ruptura de equilíbrio da vida nacional portuguesa, a relação pátria estado, a oposição entre vontade nacional e vontade da maioria, a razão da desvalorização internacional de Portugal, as reformas de modelo estrangeiro inadaptáveis ao meio social português. No seu ponto de vista, para se poder chegar a uma conclusão sobre o que se entende por energia ou vitalidade nacional, importa, primeiro que tudo, saber o que é uma nação. E, neste caso específico, não escolhe entre as muitas definições que, ao longo da sua curta vida foi formulando para definir este conceito, mas opta por uma nova definição: “por nação entende-se aqui um organismo social capaz de progresso e de civilização.” (Obra Poética e em Prosa, III, 585). Para que essa nação seja forte precisa, na opinião do poeta, de desenvolver um “individualidade própria”, “responder às influências estrangeiras”e “criar novos elementos civilizacionais” (ibidem). Mais adiante, apresenta modelos caracterizadores de nações que, na sua opinião se resumem, unicamente, a três. Por esta razão, no seu estudo, quando pretende qualificar a nação portuguesa, encaixa-a dentro de um destes três paradigmas, para concluir que esta pertence ao grupo das “nações criadoras” por ter “individualidade própria” e ser capaz de “responder facilmente às influências estranhas”, pese embora, como refere noutros textos, as chefias medíocres que a têm guiado e que tudo têm feito para destruir estes valores intrínsecos da mentalidade portuguesa. Quando estabelece a relação pátria-estado, a sua preocupação é que fique bem claro no espírito de quem ler este seu trabalho que se trata de dois conceitos, claramente distintos, não tendo um nada a ver com o outro do ponto de vista conceptual. A pátria, segundo Pessoa, é um conceito místico e individual, por oposição a estado que, além de ser uma estrutura objectiva é um produto resultante de uma necessidade colectiva. Portanto, no seu ponto de vista, se a nação portuguesa quiser cumprir o seu papel de nação criadora terá de considerar “o Estado Português como não existente” (Obra Poética e em Prosa, III, 593). No que toca à vontade da maioria por oposição à vontade nacional, Fernando Pessoa, neste ponto, aponta o dedo ao que considera ser um dos males da democracia: a tomada de decisão por vontade da maioria. Os seus argumentos assentam, essencialmente, em três princípios. O primeiro tem a ver com a sua noção de povo que considera incapaz de tomar qualquer decisão de carácter superior, devido ao seu nível cultural: “o povo não é apto a saber qual a direcção que a política da pátria deve tomar em tal período” (Obra Poética e em Prosa, III, 595); o segundo com a distinção que faz, do ponto de vista teórico, entre vontade da maioria e vontade nacional, especificando que a primeira é consciente e a segunda inconsciente. Neste passo, o poeta justifica o que entende por “inconsciente” a partir de um exemplo claro: “Em determinada altura, determinada nação segue certo rumo; não o sabem os políticos, em geral, nem o sabe o povo. Ora o único sentido de «vontade nacional» será o sentido desse rumo. Quem é que o sente? Como esse rumo é inconsciente, fruto não sabemos de que leis sociais, só pode existir, ou nas camadas inconscientes do país, ou nas camadas conscientes que sejam representativas intelectualmente dessa inconsciência.” (ibidem); o terceiro tem a ver com o modo como essa nação estabelece a sua relação com o passado, o presente e o futuro e com os períodos em que se valoriza, particularmente, um destes três tempos. No ver do poeta, as forças que regem uma nação criadora deverão dirigir “o presente para um norte previsto, visionado no futuro” (ibidem), sem esquecer o passado.

Quanto à desvalorização internacional da nação portuguesa, o autor de Mensagem pretende que essa desvalorização deriva da conjunção de três factores: “a incultura geral”; “a deficiência de propaganda de Portugal no estrangeiro”; e “a ausência superior da nacionalidade.” (Obra Poética e em Prosa, III, 596). Três aspectos que o poeta sempre procurou combater, quer com a sua produção literária, quer com o seu trabalho ensaístico, quer com o seu papel de tradutor, quer com a sua intervenção na sociedade portuguesa como homem de negócios. Para a sua definição civilizacional, Portugal necessita ainda, segundo o autor destes textos, de se situar culturalmente, ou seja, de ter em conta a sua herança cultural, da mais próxima e à mais remota. Noutros textos que não têm a indicação expressa de pertencerem a este conjunto, o poeta refere que os portugueses, relativamente à sua herança cultural remota, são directamente herdeiros da cultura romana e da cultura geral do cristianismo e indirectamente da cultura grega e árabe. No diz respeito ao seu legado cultural mais próximo, Portugal integra um grupo com características culturais próprias: a Ibéria. Por estas razões e também por outras que aqui não vêm ao caso, o poeta defendeu uma “entende ibérica”. Mas Fernando Pessoa, dada a sua premente necessidade de ter uma intervenção mais directa na vida social, cultural e política do país não circunscreveu a sua acção apenas a elucubrações teóricas de carácter filosófico sobre Portugal, e, tal como procurou participar, chegado a Portugal, na situação política do país, assim o vai voltar a fazer no pós-guerra, em 1919, quando “os problemas da reconstrução” se puseram às nações europeias. A periclitante estabilidade política que se vivia, as sequelas deixadas pela participação de Portugal na guerra, bem como o marcado desequilíbrio social, levaram Pessoa a escrever o seu opúsculo Como Organizar Portugal (Acção 1, de 19 de Maio de 1919, órgão do Núcleo de Acção Nacional). Texto onde toma uma posição sobre a implantação do regime republicano em Portugal, que acusa de ser, juntamente com o constitucionalismo, o responsável pela descategorização do país perante o estrangeiro. A ambos aponta o dedo acusador por terem importado directamente modelos do estrangeiro, sem terem em consideração os elementos nacionais. Com a sua actuação de descategorização progressiva transformaram Portugal num país submisso à imposição de uma voz alheia. Submissão que já vinha desde a tragédia de Alcácer-Quibir e da qual, a seu ver, Portugal se tinha, aparentemente, libertado, em 1640, com a Restauração. Considerava-a aparente, porque, na sua opinião, tínhamos voltado a ser “portugueses de nacionalidade mas nunca mais tornámos a ser portugueses de mentalidade” (Obra Poética e em Prosa, III, 767).

Impunha-se, assim, segundo o autor, na situação presente do país, uma mudança urgente que desse resposta imediata à crise de identidade que vinha há alguns séculos atravessando a nação. Para encontrar a resposta que melhor se coadunasse a Portugal, o poeta fala de duas forças que, segundo ele, se opõem dentro de qualquer sociedade e que a arrastam para o “superprogressivismo” ou para o “supertradicionalismo”. Se a primeira dominar a decadência revela-se pela anarquia e desnacionalização, no caso de ser a segunda a dominar, a decadência anuncia-se pela estagnação e “descoesão social”. O remédio que preconiza para o primeiro caso, e que tem o exemplo na Alemanha, está em desencadear uma guerra, “uma guerra qualquer, preferivelmente justa, em que violentamente se lance a nação.” (Obra Poética e em Prosa, III, 770). Mais uma vez, esta tese pessoana tem subjacente a ideia grega da necessidade da guerra como factor transformador da vida. Para a segunda situação, a solução que o poeta encontra passa pela “transformação mental da maioria do povo, de todo o povo mesmo” (Obra Poética e em Prosa, III, 769). Segundo Pessoa, para que a mudança se opere no país, será necessário encontrar o perfeito equilíbrio entre estes dois aspectos antagónicos, ou seja, entre as forças que a ciência, na sua opinião, constata existir em tudo quanto vive. Termina o seu texto com a frase cortante e lapidar: “O que me cabia fazer está feito” (Obra Poética e em Prosa, III 771). O que o poeta está a dizer, com este fim, é que o seu contributo se fica pelo poder transformador da palavra, que tem em Mensagem o seu exemplo supremo.

 

 

BIBL.: Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, I, II e III, ed. António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão, 1986;

 

 

Luísa Medeiros