Raciocinador infalível das novelas policiárias, em português, de Fernando Pessoa. Dá o nome ao conjunto dessas novelas, que têm o título geral de Quaresma, Decifrador. Trata-se de uma das personagens mais desenvolvidas do universo pessoano, na linha das figuras de incompetentes para a vida, como Bernardo Soares ou Frederick Wyatt. Abílio Fernandes Quaresma, solteiro, maior de idade e  médico sem clínica, mora na cidade de Lisboa, num 3º andar da Rua dos Fanqueiros, num quarto pequeno, desarrumado, com uma janela aberta para os telhados de Lisboa. Não se considera médico, mas apenas um decifrador, que estuda a sintomatologia dos acontecimentos e faz o prognóstico das ocorrências. Começou por resolver as charadas do Almanach de Lembranças – um dos seus livros predilectos –, passando depois às da vida real. Apresenta as marcas de dois dos seus vícios: do alcoolismo, um ligeiro tremor, e do tabaco, os dedos amarelados. Fuma constantemente charutos baratos, Peraltas escuros, a 25 reis, que contribuem para a sua tosse cadavérica. Em «Prefácio a Quaresma», texto introdutório onde se apresenta a lógica organizativa de Quaresma, Decifrador, é descrito como um amigo do autor, recentemente falecido. Num apontamento manuscrito, diz-se que nasceu em Tancos, em 1865, e faleceu em Lisboa, em 1930. No entanto, outras versões mais elaboradas situam a sua morte em Nova Iorque, devendo-se a notícia do seu falecimento a uma informação do Ministério dos Negócios Estrangeiros. A secura da notícia choca o autor do texto que afirma: Amargou-me n’alma isto de um homem como Quaresma nem um dia ter de fama. Mas o reconhecimento dos seus conterrâneos era-lhe devido. O autor decide, por isso, tornar conhecido o maior número de casos em que o raciocínio de Quaresma tivesse sido o Édipo de alguma esfinge criminal. Numa longa e aprofundada descrição desta personagem, contrasta-se a fraqueza da aparência e a força do seu raciocínio. Tudo, no exaustivo retrato que Pessoa faz, acentua essa fraqueza, dando um carácter paradoxal à força que dela emana. É magro, escanzelado, quase esquelético, doente, curvado, tem a voz trémula e, quando fala, desvia o olhar do interlocutor. No entanto, ao decifrar um problema, transfigura-se em raciocínio puro. Essa fraca figura erguia-se num pedestal íntimo, hauria forças incógnitas, já não era a fraqueza de um homem: era a força de uma conclusão. Tinha um prazer abstracto no raciocínio aplicado e nas charadas, nos problemas de xadrez, nos quebra-cabeças geométricos e matemáticos, coisas de que se alimentava e com quem vivia como com uma mulher. Este apenso débil à humanidade era uma figura ao mesmo tempo complicada e simples. De acordo com a personagem Tio Porco, da novela policiária Janela Estreita, o seu tipo de inteligência é a inteligência filosófica, a que aceita, da inteligência científica, os factos já determinados e tira deles as conclusões finais. Segundo expõe em O Caso Vargas, o Dr. Quaresma investiga os casos por três estádios de raciocínio: O primeiro é determinar se de facto houve crime. O segundo é, determinado isso positivamente, determinar como, quando (às vezes, onde e quando) e porquê o crime foi praticado. O terceiro é, por meio de elementos colhidos no decurso desses dois estádios da investigação, e sobretudo do segundo, determinar quem praticou o crime. Descoberto o crime, não quer isto dizer que o criminoso seja sempre entregue à justiça. Quaresma não julga, decifra. Se em O Quarto Fechado, A Carta Mágica, O Desaparecimento do Dr. Reis Dores e O Caso Vargas os criminosos, cuja psicologia analisa, pouco têm de simpático, outros são representados como figuras merecedoras da simpatia e até da admiração do decifrador. É o caso dos criminosos das novelas Cúmplices, Tale X (o título seria provisório) e O Roubo da Quinta das Vinhas. Num texto isolado do conjunto das novelas,o autor encontra Quaresma, que há muito não via, numa rua de Lisboa O decifrador está ainda  mais desleixado e envelhecido, mas aplica, pela última vez, a sua técnica de raciocínio ao problema do assassinato  do Presidente Sidónio Pais.

 

Fernando Pessoa, Quaresma, Decifrador, ed. Ana Maria Freitas, Assírio &

     Alvim, Lisboa, 2008.

Fernando Luso Soares, A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa,

Editora Diabril, Lisboa, 1976.

Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, Vol. II, introd., org., bibliografia e

notas de António Quadros, Lello & Irmão – Editores, Porto, 1986.

 

 

Ana Maria Freitas