A brisa diáfana, a canção angelical ou mesmo a presença angélica (do grego angelos, mensageiro, anunciador) perpassam espaçada e subtilmente a obra de F. P., pois não só o Cristianismo em que fora educado, mas também a Tradição espiritual, tanto a pré-cristã como a iniciática das Ordens e Religiões que estudou, lhe permitiram aceitar e intuir estes seres intermediários entre os homens e a Divindade, e que, vistos ou pressentidos em todos os tempos e povos, numa reacção ao positivismo materialista e ao vazio de transcendência, emergem mais na literatura e no ocultismo dos últimos séculos, referidos por vários autores lidos ou conhecidos de F. P., desde Swedenborg, Martins de Pascoal, William Blake («quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos»), Balzac, Victor Hugo, Eliphas Lévi e Papus a A. E. Waite, Yeats e Rilke, ou mesmo Camilo Pessanha, um dos mestres de poesia de F. P.

Contudo, na sua fase neo-pagã, F. P. preferiu evocar como intermediários mais os deuses e espíritos da natureza, tais as ninfas, fadas, elfos e silenos do que os anjos, por ele associados ao Cristianismo e ao misticismo e então combatidos (52A-42). Assim, as referências não são muitas, surgindo em poemas de conteúdo espiritual e iniciático, tal na Iniciação, publicado na revista Presença em 1932, em que a alma é liberta da identificação com os corpos inferiores pela acção sucessiva dos Anjos, Arcanjos e Deuses, para receber, por fim, a injunção libertadora: Neófito, não há morte. Na Mensagem, encontramos em D. Filipa de Lencastre: «Que enigma havia em teu seio/ Que só génios concebia?/ Que arcanjo teus sonhos veio/ Velar, maternos, um dia?»

Já nos textos de teorização e investigação sobre as hierarquias angélicas e os nomes de Deus (54-7), os planos do Universo, as sefirotes hebraicas (53-13) e os graus dos sistemas das ordens herméticas, as referências abundam, em parte devedoras de fontes neoplatónicas, cristãs, gnósticas e cabalísticas e F. P. mostra-nos as nove hierarquias celestiais descritas por Dionísio Areopagita, culminando a escala de níveis de interpretação, com os sentidos místicos, mágicos, alquímicos, angélicos e arcangélicos (54-27). Noutros textos, ecoando ensinamentos das ordens herméticas inglesa afirma que «a conversação com o Santo Anjo da Guarda é a mais alta obra de magia» (54-40, in R. C.) e que esta conversação significa não só a intimidade interior mas o despir-se da inteligência pessoal e da personalidade, o abdicar-se delas, para a abertura ao nível supramental ou angélico.

Certamente que estes níveis subtis do ser, ou estes seres subtis, não são facilmente coaguláveis e teorizáveis, sobretudo para quem os conheceu apenas por imaginalidade mágico-poética, ou os intuiu fugazmente, e por isso dirá, repetindo mais de que uma vez a glosada afirmação oculta «vi Anjos, toquei Anjos, mas não sei/ Se Anjos existem» (61B-9, in P. P. M. E.). Isto tanto pode indicar a fragilidade evanescente da via mágica, sobre a qual F. P. confessara: «não esqueçamos a advertência de um Mestre da Magia: «Já vi Ísis», disse, «já toquei em Ísis; não sei contudo se ela existe» (53B-29, in R. C.),donde a sua saudade da simplicidade da aproximação directa infantil, como diz no mesmo poema, mais à frente, que quem lhe dera «ser agora qual menino eu era/ dos mesmo anjos mais fiel vizinho», como também que o ultrapassar dos condicionamentos psíquicos implica um trabalho persistente, que é no fundo a iniciação: o dissipar ou desvendar das trevas e ilusões, em parte resultantes da nossa dispersão mental e social, da falta de aspiração à luz e do olho espiritual não estar aberto, que nos impedem de vermos que os Anjos ou «os Deuses não morreram: O que morreu foi a nossa visão deles. Não se foram: deixámos de os ver» (21-53).

Por isso, F. P. afirmará a sua ligação à Tradição primordial do Um e das suas emanações de estados múltiplos de ser, e do retorno ascensional a Ele, na carta a Casais Monteiro, uns meses antes de morrer: «Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo». Relembremos ainda, destes seres mediadores ou níveis intermediários, o Arcanjo de Portugal, citado como o «Espírito da Nação na sua alma recôndita» (54-17, in Ag. Cent. F. P.), bem como as referências em vários escritos sobre a Trindade, o Demiurgo e a tradição da Queda dos Anjos e dos Homens. Mas certamente que não encontramos em F. P. uma angeologia bem realizada e estruturada pois na sua vida poética fluíram mais as brisas, o vento, o eco, os pressentimentos de fadas e elfos do que intensificações do numinoso divino, reveladas pelo seu mensageiro por excelência, o Anjo. Ainda assim, num curto escrito do último ano da sua vida, critico da divisão da psique humana segundo a teoria freudiana, relaciona originalmente o supraconsciente com os níveis angélicos: «Os herméticos admitem estas duas divisões do espírito [consciente e sub ou in-consciente] – a primeira puramente humana, a segunda obscuramente animal, mas acima delas estabelecem a existência de uma terceira divisão – a sobrehumana, esboçada, embrionária, incompleta, tida por a qualidade que liga o homem às existências superiores, designando-as frequente e porventura simbolicamente, por anjos, arcanjos e a outros nomes assim» (129-32).

Na sua dimensão interna, o Anjo da Guarda pode ser visto como o Espírito, o mestre da alma, e sabemos bem, graças aos estudos de Corbin, Massignon e Ballanfat, que muitos iniciados designam o Anjo como o Segredo mais íntimo, o Mestre do coração, nomeadamente na Tradição sagrada do Irão xiita, com raízes nas fravartis. F. P. interrogou-se intimamente neste sentido: «A alma da alma é um homem à parte de cada homem e isto é o Mestre, um Anjo da Guarda. A alma desta alma é Deus. (Ou é isto apenas no génio e inspiração» (53-8, td.). Já noutro texto, sobre esta questão da identificação ou da identidade angélica e espiritual, afirmará, que «a fórmula Santo Anjo da Guarda corresponde ao Eu Superior, e exprime a verdade. O Espírito da nossa Alma, sendo a substância de nós, é apesar de tudo distinto de nós neste mundo e é outrem. A fórmula Santo Anjo da Guarda está portanto correcta.». E num poema, meses antes de morrer, relembrá-lo-á: «Meu coração também/ É o túmulo do Bem/Que a minha Alma não tem.// Mas há um anjo a me ver/ E a meu lado a dizer/ Que tudo é outro ser» (33-30).

O itinerário iniciático de F. P.,  não de mistificação mas de limitação pela sua dispersão psíquica, enfraquecimento afectivo e menor associação com os seres e energias mais luminosos, tal mestres, o anjo ou Jesus Cristo, está ainda hoje longe de ser compreendido (sobretudo nas influências, originalidade e realizações), como quando nos diz ousadamente que «a iniciação é a admissão à conversa dos Anjos. Alguns ouvem, outros ouvem e vêem... A essência da doutrina oculta é que não há comunicação com Deus (Martins Pascoal a Saint-Martin). A essência do misticismo é procurar esta comunicação, quebrar os limites da pluralidade. (1) Conhecimento e conversação com o Anjo da Guarda, (2) Conhecimento dos outros anjos, (3) Caminho para Deus» (54B-20, td., in R. C.), afirmação nos últimos meses da sua vida e que marca a sua crescente compreensão do valor da ligação directa mística salvífica ou do coração espiritual com o anjo, o mestre, o Filho de Deus e a Divindade.

Algumas das actividades e ajudas tradicionalmente reconhecidas ou atribuídas aos Anjos, tal como manifestarem o esplendor divino, intensificarem o júbilo adorativo ao nascer e ao pôr do sol, guardarem a memória, interpretarem os sonhos, sustentarem o esforço e a ascese no Caminho, ajudarem a ver os outros como espíritos filhos de Deus e a pensar com discernimento, protegerem no invisível, advertirem e apoiarem nas dificuldades, curarem, serem a alma de uma igreja ou local de culto («O anjo da sua capela/ conhece quem ela ama./ A brisa passa por ela,/ Mas ela não a chama» (65-92), mostrarem-se aos que merecem, acompanharem e transmitirem intenções e orações nos mundos subtis, religarem-nos a Deus, serem psicopompos na hora da desincarnação, surgem explícitas ou implícitas na obra de F. P., como neste poema um ano exacto antes da sua morte “Que anjo, ao ergueres/ A tua voz/ Sem o saberes/ Veio baixar/ Sobre esta terra/ Onde a alma erra/ E com as asas/ Soprou as brasas/ Do ignoto lar?» (118-38) ou, para finalizarmos: «Mãos do meu Anjo da Guarda,/ Que bem guiais, como dois,/ O meu ser que teme e tarda,/ Postas firmes nos meus ombros/ Sem de que eu saiba de quem sois!//   Vou pela noite infiel / Sentindo a aurora raiar/ Por traz de alguém que me impele/ Mas já adiante de mim/ Vejo a luz a se espelhar» (62A-3, in P. P. M. E.)

 

Biblio: Fernando Pessoa. Rosea Cruz. Lisboa, Edições Manuel Lencastre, 1989.

Fernando Pessoa. Poesia Profética, Mágica e Espiritual. Lisboa, Edições Manuel Lencastre, 1989.

Mota, Pedro Teixeira da. Agenda do Centenário de Fernando Pessoa. Lisboa, Ed. Manuel Lencastre, 1988.  

 

 

Pedro Teixeira da Mota