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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 107 – 21–22
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[Sobre
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre "António" de António Botto]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 107 – 21–22]

 

{…} porque a sensualidade, quando a não aquece um afecto ou a ilumina uma ilusão, é fria e escura, como os amplexos do Diabo, no testemunho autorizado das bruxas.

 

# A novela dramática de António Botto é um exemplo admirável de como um assunto complexamente escabroso pode ser tratado, não direi já sem obscenidade, mas até sem violência nem desarmonia. Se a mestria consiste, como dizia Goethe, em trabalhar dentro de limites, nesta novela (guardadas as devidas proporções quanto ao seu conteúdo) há realmente mestria.

Não cedeu António Botto a nenhuma solicitação de escândalo, como vulgarmente se diz. A narrativa oferecia muitas possibilidades de o inserir ou provocar. A todas o autor se esquivou ou negou.

E o resultado é uma obra sóbria, triste, humana – não porque os sentimentos nela representados sejam, na sua manifestação directa, tipicamente humanos, mas porque o seu na sua essência íntima, e porque o desfecho da narrativa é o natural e humano, o que não poderia deixar de ser.

Distingamos entre a anormalidade dos homens e a anormalidade do que sentem. Pode haver um amor normal entre dois anormais, não porque eles sejam anormais noutra coisa que não o amor, mas porque, sendo anormais no próprio amor, esse amor siga o curso do amor normal. Ao artista compete, ao descrever o anormal, dá-lo como normal, isto é, extrair dele o que de humano há nele.

Quando Shakespeare escreveu as páginas de delírio do Rei Lear, escreveu, com intuição psiquiátrica, confessada dos peritos na matéria, o delírio de um demente senil. Não pôs, porém, nessas páginas o que um delírio de demente senil contém de demência senil, senão o que ele contém de humano, e portanto de humanamente compreensível, dentro da sua inumanidade. Em todos nós é virtual; dorme em todos nós, virtual, a humanidade inteira. O caso é sabermos, em cada coisa que sentimos, extrair o que é universal, rejeitar o que é próprio.

Certo autor dramático, meu amigo, leu-me um dia uma peça em que figurava um discurso socialista, feito por uma das personagens. Disse-lhe que o discurso não era real. Respondeu-me, com triunfo, que o tirara, quase palavra a palavra, de um discurso realmente proferido. Repliquei, como é de compreender, que era por isso que ele não era real em arte; em arte, acrescentei, é real simplesmente o possível, não o que aconteceu, que é só uma face particular do possível real.

 

[22r]

 

Nenhum mau traço prejudica a pureza de linha da obra. Há nela só verdade, e a sobriedade da verdade.

 

Happiness is but future pleasure. A felicidade é a confiança no prazer futuro. (?)

 

... ou porque futuro, como no asceta que se martiriza para ganhar o céu, e por isso, no mesmo momento que se martiriza, goza um pouco do céu futuro, ou porque translato, como no estóico que, abdicando de tudo menos do dever, faz desse dever um critério artificial de prazer, um paraíso imediato e doloroso.

 

O prazer e a felicidade naturais são-nos dados, não os podemos criar. Nasce do exercício sadio das funções do corpo e do espírito; nasce a outra da harmonia entre essas funções.

 

A obscenidade não é uma coisa anti-moral, mas anti-estética. A obscenidade lembra o prazer; não o dá.

 

São três as coisas que devem ser excluídas de toda obra de arte – o escusado, o inarmónico, o .................. Este critério se aplica à obscenidade como a tudo. Se uma página obscena nada tem que ver com a substância da obra, é duas vezes obscena, e é-o, então, anti-esteticamente. Se uma página obscena quebra a harmonia da obra, porque o resto o não seja, é duas vezes obscena, e então anti-estética. Se uma página obscena se integra numa obra de arte toda ela obscena, então pode estar esteticamente certa. Cabe, porém, perguntar até que ponto pode uma grande obra de arte ser obscena, até que ponto pode ocorrer a um grande artista o escrever uma obra obscena.

 

Distingamos. Quando se diz que uma obra é imoral, emprega-se esta expressão em um de três sentidos diferentes: ou a obra fere qualquer sentimento humano fundamental, como, por exemplo, se elogia a traição ou a cobardia; ou a obra fere qualquer sentimento humano moral, como, por exemplo, se elogia a baixa sensualidade ou a crueldade; ou a obra fere qualquer coisa das regras externas a que a civilização obedece, como quando apresenta cenas ou emprega expressões que se não têm por polidas ou bonitas.

 

Over

 

[22v]

 

Ora aqui há, evidentemente, três critérios inteiramente diferentes.

 

Uma coisa é o fim da obra, outra os meios de que se serve.

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2258

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria
Contemporâneos

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Proprietário
Historial

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Locais
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Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 352-353.
Exposições
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