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Fundo
Fernando Pessoa
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BNP-E3, 20 – 80, 88 – 33–35
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Autor
Fernando Pessoa

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Titulo
[Sobre "Orpheu"]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 20 – 80, 88 – 33–35]

 

– O que quer Orpheu?

 

= Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. A nossa época é aquela em que todos os países, mais |real|mente[1] do que nunca, e pela primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Ásia, a América, a África, e a Oceânia são a Europa. E existem todos na Europa. Basta qualquer cais europeu – mesmo aquele cais de Alcântara – para ter ali toda a terra em comprimido. E se chamo a isto europeu, e não americano, por exemplo, é que é a Europa, e não a América, a fons et origo deste tipo civilizacional, a região civilizada que dá o tipo e a |direcção| a todo o mundo.

Por isso a verdadeira arte moderna

 

[80v]

 

tem de ser maximamente desnacionalizada – acumular dentro de si todas as partes do mundo. Só assim será tipicamente moderna. Que a nossa arte seja uma onde a dolência e o misticismo asiático, o primitivismo africano, o cosmopolitismo das Américas, o exotismo ultra da Oceânia e o |maquinismo| decadente da Europa se fundam, se cruzem, se interseccionem. E, feita esta fusão espontaneamente, resultará uma arte-todas-as-artes, uma inspiração espontaneamente complexa…

 

[88 – 33r]

 

Queremos, depois, uma arte que prove claramente que o Século XX vem depois dos séculos que vieram antes. Queremos uma arte que nada deixe perder do que o esforço das diferentes épocas passadas produziu. Uma arte cheia do[2] esoterismo ritual da literatura egípcia, do misticismo transcendental da Índia Antiga, do poder construtivo, harmónico, organizador da antiga Grécia[3], da {…} que a Renascença deu,[4] do egotismo e do panteísmo visual que o romantismo trouxe, da

 

[33v]

 

contribuição mais pequena, mais estreita, mas poderosamente despertadora do simbolismo, do decadentismo e dos vários movimentos (cubismo, futurismo, etc.) que têm origem na personalidade supremamente americana de Walt Whitman.

Chamo sensacionismo ao resultado desta Grande Síntese, deste Magnum opus da alquimia espiritual. Emprego essa palavra dando um valor de definição e não de escola, um valor análogo ao da palavra romantismo, por exemplo, e não comparável ao das palavras simbolismo, futurismo ou cubismo, movimentos designatórios de escolas e correntes estreitas e fechadas.

______________________________________________________________________

Mais do que a fusão de todas as terras e de todos os tempos, a literatura sensacionista, para mim, deve ser a fusão de todas as artes – uma literatura que dispense a existência da dança,[5] do canto, da representação e das 4 artes burguesas, da pintura, da escultura, da arquitectura e da música, porque contem tudo quanto essas artes dão às criaturas inferiores mas transcendentaliza-as pela ideia para uso da aristocracia doente e completa que a nossa hiper-† civilização produziu.

 

[34r]

 

E se chamo a esta arte o sensacionismo é porque, onde ela supremamente intelectual, é, contudo, uma arte em que a inteligência se torna foco abstracto de sensações, e não {…}

______________________________________________________________________

 

– Mas esse género de arte parece mais para ser produzido nos grandes meios europeus, nos grandes centros de civilização…

= Parece, mas não parece.[6] Essa arte é superiormente portuguesa. Cada povo dá à civilização aquilo que a índole desse povo pode produzir – e não a índole de outros – em contacto com o tipo e direcção gerais dessa civilização. Ora uma arte desta ordem, que é a arte que nossa época impõe e exige, só pode ser dada à Europa por um povo cujo carácter seja cosmopolita, e não cuja vida o seja – por um

 

[34v]

 

povo cujo carácter seja sensivelmente desnacionalizado, antipatriótico, {…}

 

Ninguém, – nem mesmo um russo – é como o português temperamentalmente desnacionalizado, aberto a todas as influências, recebedor fácil de todas as novidades. O misoneísmo – essa palavra grande dos psiquiatras de 1890 – não é planta que aqui desse, rocha na estufa católica.

 

A única coisa portuguesa, tipicamente portuguesa, que houve em Portugal foi as descobertas – a obra mais gloriosamente internacional, cosmopolita, e desnacionalizada (tanto que nos levou à decadência pelo próprio espírito e género da obra) que tem havido. Nunca houve literatura portuguesa, ou arte portuguesa, porque a arte portuguesa só agora é

 

[35r]

 

que pôde chegar, o seu tempo é agora, porque a nossa época é que a época cosmopolita – e o único povo cosmopolita-nato é o português.

A Hora da Raça chegou enfim – a hora espiritual, que a hora material passa com a última viagem – com Vasco da Gama quando chegou a Calicut.

(Quando Vasco da Gama chegou a Calicut enterrou-se o destino material da Raça).

_______

 

[35v]

 

A nossa peregrinação inútil através da ilusão do mundo.

 

_______

Ah, criar cada um dentro de si, todo um universo de personalidades! Viver no meu cérebro lucidamente todas as épocas e todas as terras, todas as formas de Vénus e de Juno, todas as filosofias e todas as religiões, mas tudo originalmente, pessoalmente com a cor ténue desse cérebro diante de ser Deus.

 

_______

_______

A fé, as certezas {…} tudo isso cessou. Estamos no princípio de antes da civilização europeia.

O próprio individualista {…}

 

 

[1] |real|/material\mente

[2] cheia do /em que não fique fora o\

[3] da antiga Grécia /Hélade\

[4] da {…} que a Renascença deu, /da única flauta que é não só de Horácio, de que Petrónio o disse, mas absolutamente da Renascença, tipicamente.\

[5] da dança /das três artes plebeias\,

[6] parece /deve parecer\.

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2281

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria
Revistas

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
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Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Proprietário
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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Publicação parcial: Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1966, pp. 113-114.
Publicação integral: Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, pp. 76-77.
Exposições
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