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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 103 – 21 – 31
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Reincidindo...
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Autor
Fernando Pessoa

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Titulo
Reincidindo...
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 103 – 21 – 31]

 

Reincidindo…

 

I

 

N’O Dia, de 24 de Abril, o autor de uma Carta de Coimbra intitulada A literatura e o futuro faz sobre o nosso anterior artigo considerações adversamente críticas. Em si, esse artigo, que poderia ter sido mais oferenda a qualquer deus que o fosse da lógica, não tem excepcional importância similirrefutatória. Mas como, sobre dar expressão pelo menos pública, e até certo ponto lúcida, a dúvidas e pasmos que o nosso artigo, especialmente pelo modo-de-enunciar as conclusões, causou, a Carta nos dá ensejo de, sem que num ápice hajam de ser alteradas essas conclusões, clarificar uns pontos e intensificar outros, respondemos-lhe, e, ao mesmo tempo, continuando o nosso sumário estudo da grande corrente literária, que entre nós começa a abrir caminho, esperamos poder tornar, pela lógica, mais próximo da possibilidade de compreender, que concebivelmente entre bacharéis haja, aquilo com que terminava o nosso estudo – com ressurgimentos assombrosos, supra-Camões e todas as outras alegrias.

Importa, porém, declarar, antes de tudo, que nem para nós, autor dele, oferece o nosso anterior artigo coisa que se pareça com perfeição em matéria raciocinativa. Em sete páginas não se pode claramente e completamente pôr uma argumentação analítica que, para ser rigidamente exaustiva, sem pressas que a carência de tempo, ou dogmáticos e axiomatismos que a escassez de espaço, impõe, tem de se deixar estender, em plena liberdade, por uma quase-centena de páginas. Notamos isto, ainda que mal pareça, para que ocasionais como-que-falhas dialécticas – esses dogmatismos e pressas citados – não nos sejam registados em desprimor de sinceridade ou certeza, ou de possibilidade, que em nós haja, de irrefutabilizar, desenvolvido que possa ser o raciocínio, as conclusões últimas da nossa análise construtiva.

 

II

 

Qualquer corrente literária tira os característicos, que o raciocinador lhe pode encontrar, de uma tripla relacionação sociológica. Essa tripla relação revela-se à nossa análise como sendo, 1º, com o movimento social da nação em que aparece; 2º, com as outras correntes literárias, nacionais ou estrangeiras, passadas ou contemporâneas; 3º, com a alma do povo a que pertence. Esgotando, por uma análise minuciosa, os característicos de uma corrente literária em face destes três elementos sociológicos, aqui logicamente normativos, tê-la-emos caracterizado nítida- e diferencialmente. A análise esboçada no nosso anterior artigo; e feita sobre os períodos inglês e francês de máxima grandeza literária e social, levou-nos a atribuir ao movimento literário que corresponde a uma época criadora três característicos – o preceder o movimento social criador, o ter novidade, e o ter nacionalidade. Isto é, como se vai ver, in-

 

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completo ainda que não erróneo. Vamos agora arrancar às épocas criadoras, aos seus períodos literários, o seu segredo sociológico, em tudo que a sua tripla relacionação sociológica, citada, possa envolver. Paralelamente iremos apontando as coincidências dos característicos que essa época nos forem revelando, com os característicos, que chemin faisant incontestabilizaremos, da nossa actual corrente literária.

Preaclaremos, porém, a questão, resolvendo em seus elementos historicamente – isto é, cronologicamente – constitutivos a corrente literária característica das épocas de máxima grandeza nacional. Colheremos assim, de começo, uma impressão exterior desse movimento literário.

Toda a corrente literária desta espécie suprema é subdivisível em três subperíodos – um precursor, em fins do período literário antecedente; outro aquele que constitui essencialmente a corrente; e, último, aquele em que se dissolve a alma desse período em elementos aurorealmente característicos do período literário subsequente. – Assim, no período, em questão, da Inglaterra temos o subperíodo precursor com a figura culminantemente típica de Chaucer.

      … Dan Chaucer, whose sweet breath

Preluded those melodious bursts, which fill

The spacious times of great Elizabeth

      With sounds that echo still;

e neste o por onde ele se mostra precursor é mais o aparecer de figuras de certa grandeza do que o surgir de figuras preindicadoras do espírito da corrente. O sinal da vindoura grandeza nacional |literária, primeiro| está apenas no valor da precursora figura literária. Chaucer é inegavelmente inglês; mas não é completamente e tipicamente inglês, reconhecível imediatamente como inglês, como depois, na corrente, propriamente, o serão Spenser, Shakespeare, e mesmo Milton. De resto, se essa figura precursora precontivesse elementos espiritualmente distintivos do período em si, o período teria já, ipso facto, começado, com ela. – Em França o subperíodo precursor trai-se maximamente na figura de Rousseau-poeta, expressão esta que não se aplica a quaisquer versos que Rousseau |trata-se, é claro, de Jean-Jacques| escrevesse, mas do elemento essencialmente poético que a prosa de Rousseau contém, e que é, como, compulsada, a mais malapreciadora história da literatura francesa revelará, o que há nele de, por envolver o princípio do sentimento da natureza, alvorescentemente indicador de vindouro romantismo francês. | Caso se objecte que Rousseau era suíço, contraobjecte-se desde já que ser suíço não é sociologicamente nada, e menos, então, naquele tempo. Importa não confundir um povo, que é uma entidade social com a alma própria, com uma nação, aglomerado no espaço que pode ter tanta alma colectiva como uma sociedade comercial. – Repare-se também que uma análise mais minuciosa poderia mostrar que não é sem significação este alvorecer em prosa do espírito poético, mas, além de impossível, é inútil aqui essa mais minuciosa análise.| E se Chaucer está a mais distância do princípio do

 

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verdadeiro período, do que Rousseau do francês, repare-se em quão mais lenta é a evolução social pré-isabeliana da Inglaterra do que a evolução pré-revolucionária da França.

O período – o verdadeiro período – subdivide-se, por sua parte, em três estádios, classificáveis de sua juventude, virilidade e velhice. O primeiro estádio é, em Inglaterra, o que vai de Wyatt e Surrey até Spenser, e onde aparece já o tom, o espírito da época, incompletamente caracterizado com relação ao que se vai tornar no estádio subsequente, mas amplamente típico e grande no grande poeta Spenser; em França, o de André Chénier e de Chateaubriand-poeta |tomada esta expressão no já indicado sentido|, onde, com igual nitidez, se percebe a nacionalizada ruptura com o período anterior, num tom poético inadivinhável ainda em Rousseau, em que parece apenas preexistir com uma tendenciosa artificialidade. – O segundo estádio é aquele em que o espírito da época se intensifica, se alarga a toda a amplitude de que a sua alma é capaz, se torna mais ele, e, por isso, gera os máximos poetas. É, em Inglaterra, o estádio Shakespeare. É, em França, o de Lamartine, Hugo, Musset. – Finalmente, no terceiro estádio, o espírito da época como que se torna mais rígido, mais reflectido por mais cansado; a intensidade desce para meditatividade. É, em Inglaterra, o período de Milton e dos líricos jacobitas. Em França, é o estádio de Leconte de Lisle, de Sully-Prudhomme. – Por último, há uma espécie de sobrevivência vaga do espírito da época, mas já sob a forma essencial e espiritual da época seguinte. O que a época moribunda empresta a essa subsequência próxima é um resto de vida, manifestado por uma intensidade e relativa grandeza nos poetas em que alvorece a época seguinte, que, por ter sido a outra a máxima, da nação, forçosamente lhe há-de-ser inferior. É o caso de Dryden e dos liristas carolinos que, ainda que se veja que são já o princípio de um outro período, traem ainda, numa certa grandeza e intensidade, a glória de que são sucessores. É o caso de Verlaine, o mais notável dos iniciadores da sua época poética, dando ainda uma intensidade, que lhe vem do contacto ainda com o período anterior, à sua desnacionalizada obra lírica. – E se em França as épocas mais se sobrepõem, é fácil ver que a extraordinária rapidez do movimento social moderno é a causa imistora dos fenómenos.

Vejamos, agora, se, sob este ponto de vista exterior, a actual corrente literária portuguesa alguma analogia oferece com as outras correntes, que estudámos. Note-se, primeiro, quando a nossa corrente começa. O seu tom especial e distintivo, quando começa a aparecer? É fácil constatá-lo. É com o de António Nobre, com aquela parte da obra de Eugénio de Castro que toma aspectos quinhentistas, e com Os Simples de Guerra Junqueiro. Começa, portanto, pouco mais ou menos coincidentemente com o começo da última década do século dezanove. Fixado o início do período, procuremos o precursor. Continua a não haver dificuldade: o precursor é Antero de Quen-

 

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tal. É exactamente análogo a Chaucer e a Rousseau-poeta em, a par de não ter ainda nacionalidade |compare-se o seu tom com o de António Nobre, inferior como poeta, mas superior como português|, ter já plena originalidade, isto é, ser já nacional por não ser inspirado em elemento algum poeticamente estrangeiro; originalidade que Guerra Junqueiro, na primeira fase, que é a coincidente com Antero, nem outro qualquer – inacionalizado ainda aquele por huguesco, os outros por huguismos, parnasianismos ou simbolismos – se pode considerar como tendo. – Igualmente marcado está o primeiro estádio da corrente literária propriamente dita. Vimos em que obras começa: é fácil ver que vai desde elas até à Oração à Luz de Junqueiro, e à Vida Etérea de Teixeira de Pascoaes, onde começa a aparecer já o segundo estádio, onde se vê a corrente, ao continuar-se, tomar um aspecto outro absolutamente. O modo-de-exprimir intensifica-se, complica-se de espiritualidade, o conteúdo sentimental e intelectual alarga-se até aos confins da consciência e da intuição. A nova fase de António Corrêa de Oliveira, o aparecimento de novos poetas, escrevendo já no novo estilo, marca nitidamente o aparecimento do segundo estádio. Como, por enquanto, a nossa corrente literária não tem mais idade do que esta, a analogia não pode aspirar a abranger mais. No que abrange, porém, a analogia é perfeita. Exteriormente, o nosso actual movimento literário, até onde chega, assemelha-se às máximas correntes literárias da França e da Inglaterra. Apliquemo-nos agora a esmiuçar se igual analogia, interior, justifica uma total aproximação sociológica.

 

III

 

Retomemos a tripla relacionação sociológica, já notada, em que cada época literária deve estar para com o movimento social, as correntes literárias, e a alma nacional. Do estudo dessa relacionação constará o espírito da corrente. Um a um examinemos os três elementos da questão. Comecemos pelo primeiro.

Em que relação está o movimento literário correspondente às grandes épocas criadoras com o movimento social que há nessas, ou em torno a essas, épocas? Em três relações especiais se nos deve mostrar essa relação – com respeito aos característicos sociais, 1, do período a que o período literário sucede, 2, do período com que coincide, 3, do período que precede.

Vejamos a que espécie de período social sucedem as grandes épocas literárias inglesa e francesa. Esse período é, em Inglaterra, o período pré-Tudor; em França, é o fim do reinado de Luiz XV, e todo o de Luiz XVI. Que têm, de análogo, estes dois períodos sociais? São ambos períodos de apagada e estéril vida política, de despotismo fácil, de agitação nula e como que servil, se agitação chega a haver – períodos onde se parece ter ficado numa estagnação social, paz ou guerra que haja.

 

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Do grande período subsequente só há pré-indicação na literatura, porque é neste período que aparecem os precursores do magno período literário que se vai seguir. Vivem neste período Chaucer em Inglaterra, Rousseau em França. – Ora a actual corrente literária portuguesa sucede à parte pré-revolucionária do nosso período constitucional, porquanto, começando com a última década do século dezanove, a actual corrente literária coincide no seu início com o movimento de 31 de Janeiro. Politicamente estéril, infecunda- e servilmente agitado, nulo de grandezas e de utilidades, o nosso período constitucional é socialmente análogo àqueles, da França e Inglaterra, que citámos. Basta, para lhe apontar a nulidade política, apontar que foi um período constitucional que nem constitucional foi. O constitucionalismo nunca esteve implantado entre nós. Se houve no mundo período reles e mesquinho, foi reles e mesquinho esse. Até aqui está, portanto, a nossa corrente literária em coincidência com as outras, nesta especial relacionação social. Continua a haver coincidência no que diz respeito ao vislumbrar apenas literário do período que se segue. Foi no período constitucional que apareceu Antero de Quental, em quem já vimos o precursor da nossa corrente literária.

Passe-se agora a considerar o período político com que o período literário coincide. O período literário inglês começa no reinado de Henrique VIII., de quem Wyatt e Surrey são contemporâneos, e acaba com a República, aproximadamente, ou, talvez, coincidentemente com a revolução, de substituição dinástica, de 1688. O período francês coincide com o período social que se estende desde a grande revolução até 1870, pouco mais ou menos. Que tem de distintivo o período social inglês que se nos revela coincidente com a magna corrente literária inglesa? Que tem de analogamente distintivo o período francês correspondente? A agitação revolucionária ou transformadora é o que ambos têm de distintivo. Do período francês 1789-1870 é inútil falar neste respeito. Do período inglês note-se que começa com Henrique VIII., sob quem a Inglaterra rompeu com Roma e a religião católica |primeiro facto indicador de uma transformação que se nota na história da Inglaterra| e atravessa todo o período maximamente transformador que vai de aí até Cromwell. – Paralelamente, a corrente literária portuguesa rompe coincidentemente com o movimento de 31 de Janeiro, primeiro sinal de transformação política, e vai acompanhando toda a agitação transformadora que é de hoje em Portugal e cujo segundo passo, vitoriosamente transformador este, foi o que faz ponto, em 5 de Outubro de 1910, ao período revolucionário (1891-1910) do constitucionalismo português.

 

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Note-se bem: o que importa é que o período de 1890 até, e através, o presente é um período transformativo; não vem por enquanto para o caso o valor ou durabilidade que se queira atribuir ou não-atribuir a essa transformação. Esse ponto pertence à parte final do artigo, é para quando hajam de ser tiradas as conclusões gerais. Depende, evidentemente, de se provar ou não a analogia absoluta entre o actual período social português e os magnos períodos da história da França e da Inglaterra. Se essa analogia se não provar, haverá azo para discussões e argumentos. Mas se se provar – veremos que se provará – a mais arguta especiosação monarquista nada valerá contra a valorização – há hipótese, sociologicamente irrefutabilizada – do movimento republicano português. – Repare-se, porém e ainda, em uma outra semelhança que aproxima de todo o nosso período social e aqueles a que o estamos comparando: é que, a par de serem períodos de transformação política, esses períodos, no estádio coincidente com aquele em que estamos, traem uma assombrosa desmoralização na vida nacional, desmoralização que herdam de períodos anteriores, mas que neles se agrava de uma anarquização e tumultização da vida política que mesmo a quem de longe os estuda perturbam e entontecem. Comparem-se o período da Revolução Francesa e o período isabeliano com os períodos políticos respectivamente anteriores. – Levada a análise até esta, relativa, minúcia, a analogia torna-se flagrante para além de quanto se poderia esperar.

O terceiro ponto a analisar – o que diz respeito ao período político que as grandes épocas literárias precedem – não oferece, é claro, interesse analógico, dado que não passámos ainda do princípio do segundo estádio do período literário. Mas é bom fixar os característicos desse período, para, caso a nossa época ofereça analogia em todos os pontos analisáveis, se poder concluir que o futuro se encarregará, inevitavelmente, de neste ponto também a mostrar análoga. Já no anterior artigo estudámos este ponto. Vimos que, depois do auge ou segundo estádio da corrente literária, vem, coincidindo com o terceiro estádio, a época vincadamente e terminantemente criadora. Passada ela, e já em coincidência com o princípio do período literário seguinte, vem a fixação do sistema político criado – o constitucionalismo em Inglaterra, a república em França, cada qual o sistema em acordo com o carácter do povo a que pertence. A república inglesa, e, em França, os vários constitucionalismos e republicanismos precursores, representam épocas de transição, maximamente criadoras por maximamente transformadoras e porque introduziram o elemento novo |o de governo popular em Inglaterra, o de democracia em França| que, equilibrado por fim com os elementos tradicionais, fixaram o tipo de governo novo e nacional – em Inglaterra a monarquia liberal, em França a república conservadora. Esta fixação final coincide, como já apontámos, com o fim do terceiro estádio do grande período literário e princípio do período literário seguinte.

 

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IV

 

Analisemos agora, para o mesmo fim perscrutador de coincidências, quais os caracteres especiais apresentados pelas correntes literárias dos grandes períodos criadores na sua relação com outras correntes literárias, nacionais ou estrangeiras.

Analisados, os períodos literários inglês e francês que vêem acompanhando o nosso estudo, revelam, sob o aspecto exclusivamente literário ora em vista, três elementos distintivos – a novidade |ou originalidade|, a elevação, e a grandeza. Por elevação entendemos do tom literário geral, por grandeza o conter grandes figuras individuais, grandes poetas. Todos os três elementos são indispensáveis para a caracterização inconfundível do período. Se originalidade bastasse, faria candidatura a magno período literário um que podia ser original numa espécie poética secundária, como um novo epigramatismo, um novo género de poesia artificial: está no caso a poesia dos trovadores provençais. Por isso, sobre novidade, há nestes períodos elevação. Mas elevação só pode ser verdadeiramente e completamente elevação quando – ao contrário do que acontece com o simbolismo francês, que não caracteriza um grande período criador – é universalizada, intensificada por poetas à altura dessa elevação. A não ser assim, queda-se, com a citada corrente francesa, sempre próxima da mera esquisitice e extravagância, do puro delírio, às vezes, constantemente imperfeita e deselevada da altura a que em um ou outro verso, em raríssimas poesias intermitentemente atinge. De modo que já um mero raciocínio a priori nos dá como característico indissoluvelmente triplo das correntes literárias supremas a originalidade, a elevação do tom, e a grandeza nos seus representantes individuais. – É inútil apontar quão novos, sob todos os pontos de vista, são, cada qual no seu tempo, o isabelianismo e o romantismo francês: desde o modo de pensar e sentir ante os homens e as coisas até ao modo de exprimir, tudo é original. De igual inutilidade é referir que o tom desses períodos literários é elevado, e que há neles grandes figuras de poeta.

Resta saber se aqui há, também, coincidência entre os característicos dos períodos francês e inglês e os do período actual português. Novidade temos; o próprio crítico de O Dia não o nega, antes se confessa apavorado por ela. Basta comparar Os Simples, a Pátria, a Oração à Luz, a Vida Etérea e, de resto, tudo mais quanto na nova corrente esteja, ao que haja em qualquer outra corrente literária nacional ou estrangeira, e de qualquer tempo, para ver que há entre nós um modo de pensar, de sentir, de exprimir tão inconfundivelmente original como o do romantismo francês ou o do isabelianismo, se não mais original ainda. E, quanto a elevação, basta reparar na altura inspiracional do tom poético geral do nosso período

 

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ver como nos menos notáveis poetas da corrente a expressão tem uma feição, um relevo estranhos e inconfundíveis. Ainda que o espaço seja para pouco, duas expressões, que qualquer ledor das coisas do tempo reconhecerá como probamente citáveis como representativas, podem aduzir-se aqui, para alívio de cépticos. Tomemos isto, de Teixeira de Pascoaes,

 

A folha que tombava

Era alma que subia,

   

e isto, de Jaime Cortesão,

 

E mal o luar os molha,

Os choupos, na noite calma,

Não têm ramo nem folha,

São apenas choupos d’Alma.

 

Em nenhuma literatura do mundo atingiu nenhum poeta maior elevação do que estas expressões, e especialmente a extraordinária primeira, contêm. E elas são representativas. Citamo-las não só para comprovação da elevação, como também para indicação da originalidade do tom poético, da nova poesia portuguesa. Haverá, é claro, quem não sinta a elevação e a originalidade daqueles versos. O raciocinador, porém, limita-se a apresentar raciocínios. Não é obrigado a uma preliminar distribuição de inteligência.

Resta o terceiro ponto: a grandeza. Haverá, aqui também, analogia? Tanto quanto a juvenilidade da nossa corrente literária permite a aproximação, a analogia não nos parece menos flagrante. A comparação só pode versar sobre o primeiro estádio dos três períodos, e, para mais auxílio, sobre o subperíodo precursor. Quanto ao período precursor, Antero de Quental nada tem de temer de Rousseau-poeta, ou de Chaucer mesmo, considerado tudo. E repare-se que Antero teve co-precursores de mais valor que os contemporâneos |precursores| de Rousseau e de Chaucer. No que respeita ao primeiro estádio, o poema supremo do nosso, a Pátria, de Junqueiro, escusa de se acanhar na comparação com Chateaubriand-poeta, ou mesmo com a Faerie Queene de Spenser. Com respeito ao primeiro a superioridade do nosso poeta é manifesta. Com respeito ao segundo, a questão de superioridade é caso para argumentos. Porque, se não há dúvida que em originalidade e exuberância imaginativa o poema de Spenser sobreleva ao de Junqueiro, também se não pode negar que em intensidade lírica, em espírito dramático, em poder de construção poética, a Pátria domina a Faerie Queene.

De modo que, se há neste mundo analogias e absolutos, entre a nossa actual corrente literária e as, máximas, que nos vêm servindo para a comparação, há, nos pontos já analisados, uma analogia absoluta.

 

V

 

Falta agora, examinar os característicos das magnas épocas literárias em face da alma do povo que as produz. A análise é fácil e será, por isso, rápida. O primeiro caracterís-

 

[29r]

 

tico, neste respeito, destas correntes, é a sua não-popularidade, o segundo a anti-tradicionalidade, e o terceiro, mas o primacial e basilar, a nacionalidade. Isto é, estas correntes interpretam completamente a alma nacional; como, porém, a interpretam com plena elevação – o que já sabemos, quanto a elevação –, com total largueza espiritual, desdobrando-lhe as inconscientes tendências filosóficas ou religiosas em detalhes intelectuais e espirituais, traduzindo a alma popular para arte suprema, forçosamente se colocam fora da compreensão popular, entendendo por compreensão popular tudo quanto não seja a compreensão de uma elite ou aristocracia de inteligência. Daí a sua não-popularidade, máxima na época em que existem, por agravada pela novidade do tom poético, menor nas épocas subsequentes, mas anulada nunca. Redizendo, estas correntes, filiadas absolutamente na alma do povo, não a exprimem: representam-na, interpretam-na. Ninguém negará a absoluta nacionalidade do isabelianismo, como inglês, e, como francês, do romantismo da França. Tampouco se pode negar a não-popularidade das duas correntes, máxima na primeira, cuja mera forma-de-expressar mesmo a um indivíduo culto fere como extremamente complexa e intelectualizada, menor na segunda, que ainda assim está longe de popularmente acessível, tanto que a corrente é classificada por um critério francês como sendo faite pour des cénacles et des coteries. |Lanson, Histoire de la littérature française.| – Ora, como estas correntes são as de máxima nacionalidade dos seus, respectivos, países; como, portanto, as correntes anteriores forçosamente haveriam sido ou menos, ou nada, nacionais, a plena nacionalidade das correntes máximas importa uma quebra com o espírito dessas, anteriores, correntes, envolve, pois, anti-tradicionalidade. Quando a corrente anterior é desnacionalizada, a quebra com ela é flagrantíssima e consciente- e combativamente feita: é o caso do romantismo francês ante o chamado “classicismo” da época precedente. Quando a anterior corrente é, porém, não tanto desnacionalizada, mas antes incompletamente nacional, a quebra é feita inconscientemente, naturalmente, inagressivamente. É o caso do isabelianismo, que rompe com a simplicidade e incompleta nacionalidade do seu precursor Chaucer, única quase-tradição com que, aliás, podia romper, visto que, sobre ser o máximo período da literatura inglesa, é – e é o que para o caso importa – o primeiro, no tempo, não tendo, portanto, época literária anterior com cujo espírito quebrasse.

Retomemos a parte essencial e analógica do nosso estudo. A anti-tradicionalidade e não-popularidade do tom poético do nosso actual período literário são flagrantes, flagrantíssimas. Poucos movimentos literários se têm colocado mais acima da compreensão geral, pela complexa intelectualização ou misticização do seu exprimir-se; poucos tanto se afastaram de toda a tradição literária da sua terra. Resta saber se esses dois característicos se devem a uma completa interpretação da alma nacional. É fácil provar que sim. Há, porém, dois modos de o provar. Um – longo – é por uma

 

[30r]

 

análise analogial da alma portuguesa e dos característicos espirituais da nova corrente poética. Há outro método, mais simples, mais directo, e menos duvidoso. Vejamos. Os novos poetas portugueses não tiram da tradição os elementos constitutivos do espírito da sua corrente – isto já vimos; tampouco tiram esses elementos de correntes literárias estrangeiras – já o verificámos quando foi preciso constatar a novidade do tom poético deste período. Então de onde os tiram? Tira-os cada poeta da sua própria alma, no que tem de individual e peculiar? Nesse caso não haveria corrente literária, mas poetas isolados. Ora, como realmente há corrente literária, é forçoso admitir que o que a produz é o que nas almas há de super-individual, o que elas têm de comum. E o que elas têm de comum é uma de três coisas – a raça, o meio nacional, ou o meio civilizacional, isto é, europeu. O meio europeu não é, porque então a corrente literária basear-se-ia nas correntes literárias estrangeiras contemporâneas, o que não acontece, provada, como está, a sua novidade. O meio nacional também não é, pois que então reproduziria o espírito do meio, que é nulamente, ou catolicamente, religioso: e ela é religiosa e não-católica. Não há senão que admitir, portanto, que reproduz a alma da raça. E como é anti-tradicional, não a reproduz misturando-lhe elementos passados; como é não-popular, não a reproduz misturando-lhe elementos pouco espirituais ou pouco intelectuais, populares no mau sentido do epíteto, quer dizer, pois, que a nova corrente interpreta a alma nacional directamente, nuamente e elevadamente. Quer dizer que é absolutamente idêntica às grandes correntes literárias da França e da Inglaterra.

Resulta, portanto, provada, ponto por ponto, detalhe por detalhe, a analogia entre a nossa corrente literária e as grandes correntes literárias precursoras dos grandes períodos criadores de civilização.

 

VI

 

Tirem-se rapidamente, as tónicas conclusões finais. São três. A primeira é que para Portugal se prepara um ressurgimento assombroso, um período de criação literária e social como poucos o mundo o tem tido. Durante o nosso raciocínio, deve o leitor ter reparado que a analogia do nosso período é mais com o grande período inglês do que com o francês. Tudo indica, portanto, que o nosso será, como aquele, maximamente criador. Paralelamente se conclui o breve aparecimento na nossa terra do tal supra-Camões. Supra-Camões? Frase humilde e acanhada! A analogia impõe mais. Diga-se “de um Shakespeare” e dê-se por testemunha o raciocínio, já que não é citável o futuro. – A segunda conclusão é que, tendo o movimento literário português nascido e acompanhado o movimento republicano, é dentro do republicanismo, e pelo republicanismo, que está, e será, o glorioso futuro deduzido. São duas faces do mesmo movimento criador. Fixemos isto:

 

[31r]

 

ser monárquico é, hoje, em Portugal, ser traidor à alma nacional e ao futuro da Pátria Portuguesa. – A terceira conclusão é que o republicanismo que fará a glória da nossa terra e por quem novos elementos civilizacionais serão criados, não é o actual, desnacionalizado, idiota e corrupto, do tri-partido republicano. De modo que é bom fixar isto, também: que, se ser monárquico é ser traidor à alma nacional, ser correligionário do sr. Afonso Costa, do sr. Brito Camacho, ou do sr. António José de Almeida, assim como de vária horrorosa sub-gente sindicalista, socialística e outras coisas, representa paralela e equivalente traição. O espírito de tudo isso é absolutamente o contrário do espírito da nova corrente literária. Tudo ali é importado do estrangeiro, tudo é sem elevação nem grandeza, tudo é popular com o que há de mais Mouraria na popularidade. Para nada de morte lhes faltar, nem anti-tradicionais são: herdaram cuidadosamente os métodos de despotismo, de corrupção e de mentira que a monarquia tão como seus amou.

Não nos admire que isto assim seja. No reinado de Isabel, período da Inglaterra que corresponde ao nosso actual, ainda nada se vislumbrava do princípio de governo popular que havia de ser a criação da época. Conservemo-nos, por enquanto, absolutamente portugueses, rigidamente republicanos, intransigentemente inimigos do republicanismo actual. Brevemente começará a raiar nas nossas almas a intuição política do nosso futuro. Talvez o supra-Camões possa dizer alguma coisa sobre assunto. Esperemos, que ele não demora. No entanto, sursum corda! Sabemos que o futuro será glorioso. Confiemos nele. Por enquanto abstenhamo-nos de agir, a não ser negativamente, para combater, e apenas pela palavra e pelo escrito, os portugueses estrangeiros que nos desgovernam, e isso só se a indignação no-lo impuser como desabafo. A hora da acção ainda não chegou. Primeiro, virá a teoria política da época. Depois virá o pô-la em prática. E quando a hora chegar, virá – não tenhamos dúvida – o homem de força que a imporá, eliminando os obstáculos, que são esta gente de agora monárquicos e republicanos. Suavemente, se puder ser, será a transformação feita. A criação começada. Mas se assim não for, se esta gente de hoje não curar de se tornar portuguesa, confiemos, sem horror, que o Cromwell vindouro os saberá afastar, aplicando-lhes, por triste necessidade, a ultima ratio de Napoleão, de Cavaignac, e do Coronel Conde de Galliffet.

 

Notas de edição

Versão dactilografada do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «Reincidindo», in A Águia, 2ª série, nº 5, Porto, Maio de 1912, pp. 137-144.

Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2315

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