Identificação
[BNP/E3, 14C – 9]
Eu peço aos leitores destes folhetos desculpa do que lhes tenho feito ler. Mas noutro tom que não este – estranho a meu – ou poderia ou devia ter escrito. Primeiro, porque assim o pede a natureza e concordância do assunto. Segundo, porque era preciso separar o homem da sua obra, ou, antes, tirar da obra o grosseiro e o infame que no homem havia, deixando lá o genial. Terceiro porque sendo esta a atitude que ele, Fialho, tinha para com os outros, é de uma justiça natural e humana que essa seja a atitude que se tem para com ele. Se de outro modo escrevêssemos parece que ele próprio se ergueria irado do túmulo para nos acusar de lhe ter insultado a memória ou com serenidades, ou com delicadezas ou com aristocratices indignas de porcaria dela. Assim fizemos porque ele assim o pediu, dalém túmulo, porca figura extinta, paul de torpeza e maldade, donde o génio, flor de lótus, espiritualmente cresceu.
É ele próprio que, através de mim[1] a si próprio se julga e se condena. Busco um fim moral – e nisto divirjo dele: quero erguer das ruínas morais daquele ser podre a glória imperecível do seu estilo, a majestade complexa da sua visão genial. E o homem, vil, grosseiro, cheio de vícios de aldeia corrupta e de indelicadezas de provinciano malcozinhado, que se perca e se afunde na lama que se entregou a criar em seu torno. Sejam estas duras e frias palavras as últimas no género Fialho; como de justiça, seja sobre Fialho que elas se escrevam.
E ele, no túmulo, purificado por esta invectiva, seja para nós eternamente, não o reles pederasta sem senso moral nem sentimento de justiça, tão-pouco o pobre aldeão ajanotado pela moda de há dez anos, mas o homem de génio que trouxe um novo modo de sentir as coisas para a literatura portuguesa, o pintor supremo da paisagem alentejana e das almas alentejanas dentro da paisagem. O homem que esqueça e desapareça.
Tomara eu que este estudo – violento porque ácido fénico sobre a sua podridão – purificasse de vez a sua obra, que doravante fosse possível lê-la sem que as manchas do carácter e da cultura imperfeita saltassem aos olhos feridos. Infelizmente
[9v]
isto é impossível. Elas estão onde ele as pôs e nada as tira de onde elas estão. Que ao menos o leitor desta crónica que depois leia ou releia a obra de Fialho estrangule o seu nojo ou desdém ocasionais com o pensamento que eu aqui de uma vez para sempre fiz justiça à mesquinhez do homem e à grandeza da obra, e que é escusado por isso irritar-se com aquilo a que justiça já foi feita, nem merece já ódio ou rancor o réu que cumpriu sentença.
----
Não era invertido por complexidade de espírito, como Shakespeare, nem por artificialidade total de alma, como Oscar Wilde. Era-o por pederastia essencial, por falta de senso moral. Era o tipo do invertido de aldeia, do invertido saloio, que pratica a pederastia mais ainda do que a pensa; o invertido físico, rectal, súcubo e porco.
Mas um labrego pode ter altos sentimentos de bondade e de justiça; pode sentir fortemente e humanamente. Infelizmente, em Fialho, o que de sensibilidade o facto de ser labrego não excluía, excluía-o a falta de senso moral do pederasta. Sentimento de justiça, nenhum; instinto de sociabilidade, nenhum. As suas figuras humildes tornam-se para ele desprezíveis e reles. Olhem como ele trata Guilherme de Azevedo. Vejam como o pobre protagonista de Os Pobres é malmené por elle! Saem desta atitude às vezes extraordinários efeitos de arte. Mas coexiste com eles um travo de repugnância como que física pelo monstro de amoralidade que escreveu aquilo. É a insociabilidade positiva do degenerado, do louco moral mesmo; a feminiforme alegria do mal alheio que no pederasta absoluto ganha proporções a que doravante só se pode chamar fialhescas.
Lembro o La montagne où je suis né de A. Jolly, essa ignóbil e perfeita canção obscena.
[1] mim /(nós)\