A companhia dos Ballets Russes estreia-se em 1909, em Paris, no Teatro do Châtelet, sob a tutela do empresário Sergey Diaghilev. Intimamente ligada ao nome do seu fundador, a companhia dispersa-se após a sua morte, em 1929.

Surgindo da vontade de promover e divulgar a criação russa no estrangeiro, os Ballets Russes viriam a impor uma concepção moderna do espectáculo (enquanto síntese de Arte Total, colaboração estreita entre a pintura, a música e a dança), e a revolucionar a arte do bailado (através de músicos como Stravinsky, Prokofiev, Mussorgsky, Rimsky-Korsakov, Debussy, Ravel ou Satie, e de coreógrafos como Fokine, Nijinsky ou Massine). Às criações iniciais da companhia, associadas ao reportório tradicional russo e a um certo exotismo orientalizante, seguem-se obras inovadoras como L’Après-Midi d’un faune (de 1912, com música de Debussy, coreografia de Nijinsky e cenários e figurinos de Bakst), Le Sacre du Printemps (de 1913, com música de Stravinsky, coreografia de Nijinsky, e cenários e figurinos de Rœrich), ou Jeux (de 1913, com música de Debussy, coreografia de Nijinsky e cenários e figurinos de Bakst). Do ponto de vista plástico, estas criações permanecem, porém, ligadas a um certo tradicionalismo, próximo do gosto do público. Ao associar à companhia os nomes de dois pintores russos de vanguarda, Natalia Gontcharova e Michaïl Larionov, a partir de 1914, Diaghilev conduz os Ballets Russes a uma nova fase. A estreia de Le Coq d’Or (em 1914, com cenários e figurinos de Gontharova), marca o início dos Ballets Russes enquanto estandarte da arte moderna: os nomes de Giacomo Balla, Georges Braque, De Chirico, Robert e Sónia Delaunay, André Derain, Max Ernst, Juan Gris, Henri Matisse, Joan Miro, e Pablo Picasso (nomeadamente, com os cenários e figurinos de Parade, estreado em 1917, com argumento de Jean Cocteau, música de Satie e coreografia de Massine), ficariam para sempre ligados ao nome da companhia.

Tendo-se apresentado já nas principais cidades europeias (Paris, Bruxelas, Londres, Monte-Carlo, Roma, Berlim, Viena, Genebra, Barcelona, São-Sebastião, ou Madrid), na América do Sul e nos Estados Unidos, os Ballets Russes chegam finalmente a Lisboa, em Dezembro de 1917. A impossibilidade de actuar nos grandes palcos europeus, devido à Primeira Guerra, coroam de êxito os esforços iniciados por empresários portugueses, um ano antes, de trazer a companhia a Portugal. Prevista para Outubro de 1917 (data do manifesto Os Bailados Russos em Lisboa, assinado por Almada, José Pacheco e Ruy Coelho), a apresentação dos Ballets Russes ao público lisboeta dar-se-ia entre 13 e 27 de Dezembro de 1917, no Coliseu dos Recreios, e nos dias 2 e 3 de Janeiro de 1918, no Teatro S. Carlos (reaberto para a ocasião). Das representações portuguesas da célebre companhia constam os bailados: Les Sylphides (estreado em 1909, com música de Chopin, coreografia de Fokine e cenários e figurinos de A. Benois); Shéhérazade (1910; Rimsky-Korsakov; Fokine; Bakst); Le Spectre de la Rose (1911; Weber; Fokine; Bakst); Scènes et Danses Polovtsiennes du Prince Igor (1909; Borodine; Fokine; Rœrich); Soleil de Nuit (1915; Rimsky-Korsakov; Massine; Larionov); Carnaval (1910; Schumann; Fokine; Bakst); Thamar (1912; Balakirev; Fokine; Bakst); Les Papillons (1914; Schumann; Fokine; Dobujinsky e Bakst); Sadko (1911/1916; Rimsky-Korsakov; Fokine/A. Bolm; Anisfeld/Gontcharova); Cléopatre (1909; Arensky, Taneyev, Rimsky-Korsakov, Glinka, Glazunov, Mussorgsky; Fokine; Bakst); Les Femmes de Bonne Humeur (1917; Scarlatti; Massine; Bakst); Narcisse (1911; Tcherepnine; Fokine; Bakst); Le Festin (sob este título, a companhia apresentou, ao longo dos anos, várias selecções de trechos do seu reportório); Las Meninas, sob o título de «Pavane» (1916; Fauré; Massine; José-Maria Sert); e, sob o título de «Danse des Bouffons», Le Pavillon d’Armide (1909; Tcherepnine; Fokine; A. Benois). Apostando sobretudo em criações mais antigas (estreadas entre 1909 e 1912) e mais fáceis do ponto de vista musical, coreográfico e plástico, a companhia oferece porém a Lisboa algumas das suas produções mais recentes (Les Femmes de Bonne Humeur, estreado em Roma em 1917; e Las Meninas, estreado em San-Sebastian em 1916), e duas obras com cenários e figurinos de vanguarda: da autoria de Larionov (Soleil de Nuit, 1915) e Gontcharova (nova versão de Sadko, 1916).

A grande maioria do público e da Imprensa portuguesa da época não soube apreciar devidamente o que então se lhe oferecia, dividindo-se as opiniões entre o «aplauso inconsistente» e a «reprovação imbecil» (Sasportes, 1970: 265). Revela-se porém neste contexto o primeiro crítico de bailado português, Manuel de Sousa Pinto, relativamente bem informado e aberto à modernidade. As suas «Impressões dos Bailados Russos», publicadas na revista Atlântida (Dezembro de 1917 e Janeiro e Fevereiro de 1918), serão ilustradas por outro admirador da companhia, este, incondicional e apaixonado, o modernista Almada Negreiros. Autor (único, segundo afirmaria em 1925) do manifesto Os Bailados Russos em Lisboa, distribuído no Coliseu e inserido em Portugal Futurista, Almada, enquanto artista multiforme e defensor da arte moderna, vive intensamente a estadia dos Ballets Russes em Lisboa: convive intimamente com Massine e Diaghilev (que assiste à preparação de A Lenda d’Inez, bailado de Almada nunca representado, levando consigo o argumento, a planificação e os desenhos dos cenários e figurinos do português); realiza e projecta bailados, na esteira dos russos, enquanto dançarino, coreógrafo e decorador (como A Princesa dos Sapatos de Ferro ou O Jardim da Pierrette, ambos de 1918); e sofre a influência estética de Larionov e Gontcharova (visível nos figurinos para A Rainha Encantada, outro projecto de bailado, datado de 1918). Não tendo assistido nunca a uma representação do emblemático Parade, Almada conserva no entanto o programa da estreia parisiense (Espólio de Almada Negreiros na posse dos seus herdeiros).

 

José Sasportes, História da Dança em Portugal, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian – Edição do Serviço de Música, 1970; Helena Coelho, José Sasportes, Maria de Assis (org.), Dançar em Lisboa: 1900-1944, Lisboa, Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura, 1994; Lynn Garafola, Diaghilev’s Ballets Russes, Nova Iorque, Da Capo Press, 1998.

 

Sara Afonso Ferreira