Volume antológico publicado em Lisboa em 1930, por ocasião do 1º Salão dos Independentes. A exposição, inaugurada pelo Presidente Carmona, realizou-se na SNBA e contou com trezentas e doze obras assinadas por artistas da “nova geração”, entre eles arquitectos, escultores, pintores, desenhadores, autores de cartazes e fotógrafos. Foi acompanhada de um catálogo “com desenhos e comentários dos artistas e dos escritores modernistas & uma breve resenha do movimento moderno em Portugal”, de conferências a cargo de António Pedro, João Gaspar Simões e João de Castro Osório, e dum volume colectivo, Cancioneiro, que reunia colaboração exclusivamente poética dos primeiros e dos segundos modernistas. Podemos avaliar o impacto do 1º Salão dos Independentes na Lisboa da época pela larga fortuna crítica que o evento teve: primeiro anunciado nos jornais, foi depois muito comentado – ora aplaudido por partidários e camaradas ( Régio, Nemésio, António Ferro e Casais Monteiro), ora denegrido (por Artur Portela e Júlio Dantas, respectivamente no Diário de Lisboa e n’O Primeiro de Janeiro). A revista Presença dedicou-lhe toda a atenção, nos n.ºs 26 (de Maio de 1930) e 27 (de Junho-Julho do mesmo ano): no primeiro, um artigo de António Navarro, intitulado “A propósito do I Salão dos Independentes”, exaltava o “anarquismo ordeiro e superior” que a “arte original” tem o dom de criar, e “de que este salão dos independentes há-de ser um congresso bem curioso” (p. 3); no segundo, um extenso texto de José Régio, com o título “Divagação à roda do primeiro salão dos independentes”, desenvolve de forma mais serena e sistemática um conjunto de juízos acerca da actividade crítica, da recepção que teve o Salão nos jornais, da noção de independência e, em particular, de alguns dos trabalhos expostos (com referências a Dordio Gomes, Mário Eloy, Sarah Afonso e Júlio).

Cancioneiro foi, como acima se disse, a publicação com a qual os poetas modernos se associaram à exposição dos artistas plásticos. Nele colaboraram, por ordem alfabética dos nomes, Adolfo Casais Monteiro, Adolfo Rocha, Alfredo Pedro Guizado, Álvaro de Campos, António Ferro, António de Navarro, António Pedro, Augusto Ferreira Gomes, Augusto de Santa-Rita, Branquinho da Fonseca, Carlos Queirós, Cortes Rodrigues, Edmundo de Bettencourt, Fernanda de Castro, Fernando Pessoa, Gil Vaz, José de Alamada Negreiros, José Régio, Luiz de Montalvor, Mário Saa e Violante de Cysneiros. Nem todos os poemas eram inéditos: “O jongleur de estrelas e o seu destino”, de José Régio, fora dado à estampa no n.º 2 de Presença,(Março de 1927); “Cómico”, de Edmundo Bettencourt, aparecera já com o título “Comigo” no n.º 3 da mesma revista (Abril de 1927); e assim por diante. Cancioneiro era mais propriamente uma antologia representativa dos principais nomes de Orpheu e de Presença. Essa antologia era dedicada “à memória dos precursores Cesário Verde, Camilo Pessanha, Ângelo de Lima e Mário de Sá-Carneiro”, reproduzindo nas páginas iniciais um poema de cada um daqueles autores: “Manhãs brumosas”, de Cesário Verde; “Poema”, de Camilo Pessanha (“Depois das bodas de oiro (...)”); “Ninive”, de Ângelo de Lima; e uma das “Sete Canções de Declínio”, de Mário de Sá-Carneiro (“As grandes Horas! – vivê-las”). Traços do Simbolismo e da poesia de Camilo Pessanha são bem visíveis em certos poemas dos autores “modernos” antologiados, e o mesmo se pode dizer de certo verbalismo à maneira de Ângelo de Lima; mas o que importa sobretudo assinalar é a consciência histórico-literária que esta escolha de quatro nomes “precursores” revela, ao apontar a montante poetas que se inscrevem já na Modernidade.

Vale a pena destacar alguns poemas, no conjunto dos textos antologiados. Seguindo a ordem pela qual figuram, repare-se, por exemplo, em “O automóvel azul” de António de Navarro, que retoma um dos símbolos futuristas – o automóvel – glosando-o de forma lúdica, quase surrealista, numa série de encadeamentos fónicos (“O cláxon zine.../e a fuga é toda azul/(anil/de ozone/num uuul/de cone)/na fita branca da estrada/parada/ao sol... (...)”) e de associações sensoriais (visuais, sonoras e de movimento). E também em “O preto-papusse-papão”, de Augusto de Santa-Rita, que também num jogo de sonoridades e de aliterações evoca os fantasmas da infância e sobre eles decalca os medos da idade adulta. Ou então em “Barcarola”, de Carlos Queirós, que tem certamente como referência  o poema de Fernando pessoa ortónimo “Ela canta, pobre ceifeira” (a figura central é aqui uma varina, mas a lição é sempre a de que “Pensar é amaro/Padecer da vida”). Ou ainda no “Rondel do Alentejo”, de Almada, tão rico em matéria de sons e imagens, e tão arrojada e ironicamente distante da geografia literária anunciada no título. Ou na “Xácara as mulheres amadas”, de Mário Saa, com esta primeira estrofe: “Quem muitas mulheres tiver,/em vez duma amada esposa,/mais se afirma e se repousa/pêra amar sua mulher;/quem isto não entender.../em cousas d’amor não ousa,/em cousas d’amor não quere!”. Para além destes, repare-se também em “Adiamento”, de Álvaro de Campos, e nos poemas “O menino de sua mãe”, “Gládio”, “Gomes Leal” e “Canção” de Fernando Pessoa.

Clara Rocha

 

BIBL.: Presença, nºs 26 (Maio de 1930) e 27 (Junho-Julho de 1930); José-Augusto França, A Arte em Portugal no Século XX, Venda Nova, Bertrand, 1984, pp. 195-198; Clara Rocha, Revistas Literárias do Século XX em Portugal, Lisboa, IN-CM, 1985.