Na genealogia das poéticas da impessoalidade de alguns grandes poetas-críticos do Modernismo, assim como da heteronímia pessoana,  há que ter em conta certas figuras e formulações, sobre a poesia e o poeta, que encontramos em cartas de um poeta da segunda geração romântica inglesa, John Keats.

Numa carta de 21 de Dezembro  de 1817 aos seus irmãos George e Tom, Keats identifica uma «qualidade» que é necessária ao conseguimento, «especialmente em Literatura, e que Shakespeare imensamente possuíu» – chama-lhe capacidade negativa  e assinala a sua presença efectiva, «when a man is capable of being in uncertainties, mysteries, doubts, whithout any irritable reaching after fact and reason» (cf. WU 2006). Na mesma carta, a posse de tal qualidade é associada no «grande poeta ao sentido da beleza que se sobrepõe a todas as outras considerações, ou melhor, suprime qualquer consideração». Keats escrevera já que «a excelência em toda a arte é a sua intensidade, capaz de fazer evaporar todas as coisas desagradáveis, por colocá-las em apertada relação com a beleza e a verdade». King Lear era então o exemplo. Esta capacidade negativa está intimamente ligada à noção de imaginação e de «verdade da imaginação», em Keats que, em carta de 22 de Novembro do mesmo ano, escrevia a Benjamin Bailey: «Eu não estou certo de nada ao não ser do sagrado das afecções do coração e da verdade da imaginação.  O que a imaginação toma como beleza tem de ser verdade, tenha ou não existido antes. Porque eu tenho a mesma ideia de todas as nossas paixões como do amor: todas elas são, no seu sublime, criadoras da beleza essencial. [...] A imaginação pode ser comparada ao sonho de Adão: ele acordou e achou-o verdadeiro».

O caracter negativo desta capacidade que pode ajudar a distinguir a imaginação criadora da imaginação meramente reprodutora comporta, também, uma figura de poeta que entra em tensão com a noção de genius e os seus valores, enquanto figura tópica das poéticas do romantismo, e tende a aproximar-se das metemorfoses da autoria na modernidade estética e no modernismo.

Numa carta a Richard Woodhouse, datada de 27 de Outubro de 1818, Keats escreve: «As to the poetical character itself (I mean that sort of which, if I am anything, I am a member – that sort distinguished from the Wordsworthian or egotistical sublime, which is a thing per se and stands alone), it is not itself – it has no self – it is everything and nothing – it has no character – it enjoys light and shade; it lives in gusto, be it foul or fair, high or low, rich or poor, mean or elevated. It is as much delight in conceiving an Iago as an Imogen. What shocks the virtuous philosopher, delights the chameleon poet».

Regressam significativamente a referência a Shakespeare e, mais precisamente, à poesia dramática como modelo da enunciação poética enquanto susceptível de integrar a plurivocalidade e a pluralidade de personagens e ambientes. Regressa a gesto de desvio polémico em relação a poetas da primeira geração romântica (na carta citada, aos irmãos George e Tom, era a vez de Coleridge). Regressa a marcação de uma distância irónica em relação ao «virtuoso filósofo», personagem que, no contexto, podemos inferir que velaria pela unidade plena de um sujeito e pelo princípio da identidade e da não-contradição.

Keats joga com a polissemia da palavra Character: por um lado, a palavra é usada com a significação de soma de características de uma classe de poetas, por outro, significando uma identidade pessoal fortemente definida.  Para além disso, a referência a um poeta, uma classe de poetas ou de autores é feita por uma palavra que pode também significar a «personagem» criada por um dramaturgo ou um romancista, ou um «papel», em linguagem de teatro. As frases citadas antecipariam assim o que virá a ser designado com o desdobramento ou a crise da instância autoral, e como a ausência ou o estranhamento do sujeito pleno – it is not itself – , ou da identidade individual – it has no self [...] It has no character. Entretanto, a figura do poeta camaleão, ao reunir os vários traços referidos, constrói uma figura proteica do autor e permite ler esses traços como elementos do processo de transformação do autor em outro, do processo de alterização autoral. Keats insiste ainda que «um poeta é a mais impoética das coisas existentes; porque não tem identidade – está continuamente a [dar forma] – e a preencher – um qualquer outro corpo. O sol, a lua, o mar e homens e mulheres que são criaturas de impulso, são poéticas e possuem um atributo imutável; o poeta não tem nenhum, não tem identidade. – É certamente a mais impoética das criaturas de Deus». A capacidade negativa ameaça a autoridade do autor, o seu papel de demiurgo ou de fundador do sentido. Keats extrai do que tem vindo a dizer consequências que exorbitam o plano de uma estrita poética: «Há uma coisa infeliz a confessar, mas é um facto que nenhuma fala que alguma vez tenha proferido pode ser tomada garantidamente como uma opinião dependendo da minha natureza idêntica; – como poderia sê-lo, se eu não tenho natureza».

Podemos sugerir que esta maneira de instabilizar a autoridade da fonte de enunciação é um modo de destituir a intenção autoral do seu papel de garantia do sentido. As frases imediatamente a seguir às últimas citadas permitem, entretanto, uma espécie de «leitura psicológica», ou podem ser lidas como uma micro-narrativa autobiográfica em registo psicológico; mas podemos também argumentar que é um princípio de poética que governa a ficção psicológica. Keats conta que, se está num lugar com outras pessoas (mesmo num quarto de crianças), e se não está ocupado com a especulação sobre criações do seu cérebro, a identidade de qualquer um dos outros presentes pode pressioná-lo a ponto de, em pouco tempo, poder aliená-lo da sua: «Then not myself goes home to myself». O mesmo tipo de gesto termina a carta: «Mas, mesmo agora, eu talvez não esteja a falar a partir de mim mesmo, mas a partir de alguma personagem [character] em cuja alma agora viva. Tenho contudo a certeza que a próxima frase é minha. Sinto e prezo no mais alto grau a tua ansiedade, boa opinião e simpatia / muito sinceramente teu / John Keats». Podemos seguramente ler aqui um dos momentos da genealogia em que a heteronímia de Pessoa se virá a inserir e mesmo algo do jogo verbal da sua ficção heteronímica. O final desta carta tem ainda o interesse de mostrar uma espécie de desdobramento da assinatura, uma vez que ela parece não poder valer como autentificação de todas as frases do texto da carta, mas de apenas algumas; e por outro lado, a possibilidade de guardar esse seu valor depende daquele outro que «assina» as outras frases.

 

Manuel Gusmão

 

BIBL.: BLOOM, H., e TRILLING, L. (ed), The Oxford Anthology of  English Literature: Romantic Poetry, London, Oxford University Press, 1980; WU, Duncan (ed), Romanticism. An Anthology, 3.ª ed., Oxford, Blackwell, 2006; FLOR, J.A., «Discursos de Alteridade», pref. a Robert Browning, Monólogos Dramáticos, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980.