Começamos a ler “A Casa Branca Nau Preta” (assinado como Fernando Pessoa, director de Orpheu, em 11-10-1916, e publicado pela primeira vez em O Heraldo, Faro, 1-07-1917) reconhecendo um eu lírico que se apresenta reclinado numa poltrona, e entregue ao entorpecimento de um fim de tarde. E como se fosse esse um estado propício para a introspecção, ele se volta para as próprias sensações desencontradas: “Apesar de as janelas estarem abertas de par em par... / Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo”, e para indagações metafísicas que revelam a inclinação para o indefinível: “Quem deu frondoso aos arvoredos e me deixou por verdecer?” Em outro momento, o próprio poeta confessa a esse respeito: “O meu caráter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. Aflige-me a idéia de se encontrar uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência, da filosofia; a idéia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror.” [PIAI, 19] Nesse território de discussão eis o verso-síntese do tom metafísico do poema: “E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta”.

A idéia de um sujeito fendido, que resulta de uma elaboração gradual em outros poemas, aqui já de partida nos é apresentada: “E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...” Resultante desse estado mental polarizado são as duas imagens distintas e contrastantes apresentadas em seguida: as “naus” que “seguiram viagem”, e as “árvores paradas da quinta, vistas através da janela”. O contraste se deve sobretudo à adjetivação, que contrapõe a mobilidade das naus à fixidez das árvores. Essas imagens estarão, em princípio, do lado de fora da janela. O eu lírico situa-se diante dessa janela, dentro de um aposento, mas as imagens que vê, ou vislumbra, fazem-no desejar estar simultaneamente de ambos os lados, dentro e fora. É um desejo de ubiqüidade, portanto: “Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá.”

Note-se que esse contraste entre o que está dentro e o que está fora é similar ao estabelecido no poema IV de “Chuva Oblíqua”, em que o eu lírico se encontra dentro de um quarto silencioso, mas, como ocorre com o sujeito de “A Casa Branca Nau Preta”, está “de olhos fechados”, e entregue a um devaneio que lhe abre “janelas secretas” para a paisagem primaveril exterior. Esse traço de estilo e essa temática se tornam marcantes nos poemas-Campos, em que a ubiqüidade vem normalmente associada à contigüidade dos fenômenos, e é possibilitada pela polarização do “eu”, como em “Saudação a Walt Whitman” e “Dois Excertos de Odes”.

O sujeito do poema toma consciência de que o que realmente vê são apenas as árvores, uma vez que as naus, ou melhor, os barcos, são, na verdade, a pintura de um quadro defronte a si. Esses barcos, ele converte em naus, que imagina partirem. É uma consciência, portanto, que sabe que sonha: “Naus partem – naus não, barcos, mas as naus estão em mim”. Eis, na imagem dessas naus oníricas, a metáfora para o que no próprio poema se define como “impreciso que embala” – realidade transfigurada pelo eu. Esse mesmo contraste está proposto no poema I de “Chuva Oblíqua”, em que a paisagem terrestre, também composta por “árvores”, é sensorialmente percebida, enquanto “os grandes navios que largam do cais” são imaginados.

Em “A Casa Branca Nau Preta”, o eu lírico avista uma casa pela janela, e assim que procura descrevê-la começa a sonhar novamente (com “outros olhos”, portanto) com a nau que se afasta: “E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver  / São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.” Essa intromissão constante da imaginação sobre os sentidos o faz sofrer, talvez por não poder entregar-se à exterioridade de suas sensações, talvez porque a nau com que sonha não seja capaz de levá-lo a outros mundos: “Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva. / As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga. / Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.”

Essa nau preta, sonhada, é uma sombra que se interpõe entre o sujeito e a casa branca. Uma sombra que, antes de transportar, impede. Veja-se como esse mesmo tema se realiza num outro poema posterior a esse, também destinado a “Álvaro de Campos”:

 

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,

Que felicidade há sempre!

 

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.

São felizes, porque não são eu.

 

As crianças, que brincam às sacadas altas,

Vivem entre vasos de flores,

Sem dúvida, eternamente.

 

As vozes, que sobem do interior doméstico,

Cantam sempre, sem dúvida.

Sim, devem cantar.

 

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.

Assim tem que ser onde tudo se ajusta –

O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

 

[Poema de 16-06-1934. Obra Poética, Nova Aguilar, p.391].

 

A felicidade está sempre no lugar em que não se está (veja-se o verso final: “Felicidade na Austrália...”), do lado de lá, na casa branca, cor da perfeição espiritual, do imaculado, e de uma casa que é real apenas para os outros, e por isso convertida em símbolo tardio da infância idealizada, inacessível: “A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar”.

 

Caio Gagliardi

 

Bibliografia:

Gagliardi, Caio. “Depois de ‘Chuva Oblíqua (IV)”. In: Fernando Pessoa ou do Interseccionismo. (Tese de Doutorado). Campinas / UNICAMP: Instituto de Estudos da Linguagem, 2005. Pp. 167-173.