O conceito de Deus em Fernando Pessoa é abordado de variadas maneiras conforme se debruce sobre as antigas religiões pagãs, ocidentais ou orientais, as religiões do Livro, com destaque para o Judaísmo e o Cristianismo, ou ainda, no âmbito do Cristianismo o primitivo, gnóstico (ou as várias correntes e textos apócrifos conhecidos à data) ou o Catolicismo propriamente dito. Pessoa diz-se hostil à Igreja Católica, e ao Papado de Roma, que considera usurpador de um conhecimento que oprime em vez de libertar. No entanto discute a figura de Cristo em muitos dos seus fragmentos, atribuindo-lhe, se não a realidade de filho de Deus, a realidade de um civilizador do ocidente.

            Curioso como foi da história das religiões, do paganismo, do hinduísmo e do budismo, de lido o saber que fosse “outro” e por ser outro mais sedutor, não admira que Pessoa considerasse a visão católica ou cristã de Deus como mais uma, entre várias, e não a única em que se pudesse acreditar.

            Deus era, para ele, essência ou verdade oculta, só sendo possível conhecer a sua manifestação: no homem, na natureza, no universo em geral; ou ainda na ideia que o “materializa” como deus-emanação também ele de um Primeiro Princípio Criador, inalcançável. Deus seria assim, numa Forma Primeira, Ser e Não-Ser.

            Pessoa cultiva uma certa forma provocativa de dizer ou negar a realidade de Deus, reduzindo a tentativas “sacrílegas” o esforço de definir o indefinível. O Mistério (e Deus, o Ser, é Mistério Absoluto) não pode ser revelado: “revelar é destruir” (afirma, citando Tertuliano). Só simbolicamente se pode entender Deus, ou Cristo, sua figuração: “Cristo é um mito na sua própria realidade”. Estamos bem longe do dogma cristão da Trindade: Deus uno e trino, no Pai, no Filho e no Espírito Santo.

            É na poesia juvenil, inglesa, de Fernando Pessoa, que as primeiras inquietações religiosas, místicas ou simplesmente metafísicas se manifestam. Em 1906-1907 poemas como “Nirvâna” (1906), ou “The Circle” (1907) são prova disso. Georg Rudolf Lind foi quem primeiro estudou a poesia inglesa de Pessoa (Die englische Jugendichtung Fernando Pessoas, 1966). Entretanto já foi editada na I.N.C.M. a edição crítica dos mesmos, assinados como Alexander Search. Contudo é no heterónimo Alberto Caeiro que melhor se exprime por um lado, a resposta indirecta à angústia juvenil de Search e, por outro, a relação que o poeta estabelece com o mistério de Deus e da alma; abolida a racionalidade, que limita ou mesmo impede a intenção, é à íntima fusão com a natureza, com o universo (ao mundo de um Walt Whitman em Leaves of Grass, de que possui um exemplar na biblioteca), que Pessoa se entrega.

            Vale a pena ler um dos poemas de O Guardador de Rebanhos (V):

 

            “O único sentido íntimo das cousas

            É elas não terem sentido íntimo nenhum.

 

            Não acredito em Deus porque nunca o vi.

            Se ele quisesse que eu acreditasse nele

            Sem dúvida que viria falar comigo

            E entraria pela minha porta dentro

            Dizendo-me, Aqui estou!

 

            (Isto é talvez ridículo aos ouvidos

            De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,

            Não compreende quem fala delas

            Com o modo de falar que reparar para elas ensina).

 

            Mas se Deus é as flores e as árvores

            E os montes e o sol e o luar,

 

            Então acredito nele,

            Então acredito nele a toda hora,

            E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

            E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

 

            Mas se Deus é as árvores e as flores

            E os montes e o luar e o sol,

            Para que lhe chamo eu Deus?

            Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

            Porque, se ele se fez, para eu o ver,

            Sol e luar e flores e árvores e montes,

            Se ele me aparece como sendo árvores e montes,

            E luar e sol e flores,

            É que ele quer que eu o conheça

            Como árvores e montes e flores e luar e sol.

 

           

 

E por isso eu obedeço-lhe,

            (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?)

            Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,

            Como quem abre os olhos e vê,

            E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,

            E amo-o sem pensar nele,

            E penso-o vendo e ouvindo,

            E ando com ele a toda a hora.

 

“Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma / E sobre a criação do mundo?” Não sei, diz o poeta. O esforço de Search é o de uma longa meditação e recusa. O de Pessoa é o da entrega ao estudo devorador, como se descobre pelos livros da sua biblioteca. E ao mesmo tempo que afirma, nos versos, que não sabe o que é o mistério das coisas, e que não quer saber, enfronha-se na leitura de obras que vão desde a teosofia de Annie Besant, à magia de Aleister Crowley, ao rosicrucismo e à alquimia de E.A. Waite, à maçonaria de Oswald Wirth, à astrologia (que praticou assiduamente) e ao cabalismo. Não o confessa, mas é mesmo sobre a “constituição íntima do universo” que se debruça, como Fausto, herói de Goethe, ou o mago e alquimista Agrippa (que Goethe também utilizou como modelo).

            A par da escrita heteronímica desenvolve-se em segredo uma escrita ortónima, fragmentária, e hoje conservada no espólio. Por ela podemos ver como ao longo da vida se foi operando a busca obsessiva, contínua, se bem que não sucedida. O universo fecha-se-lhe, como se fechou a Fausto, e a Deus não se chegará nunca. Mas o que lhe parece recusado na aventura filosófico-religiosa individual é o que parece dado na aventura histórica colectiva. E assim vemos Pessoa embalar-se com a releitura do destino da pátria, retomando a tri-partição joaquimita, a herança templarista, o sonho do Quinto Império.

Fernando Pessoa atribui ao heterónimo Rafael Baldaia o que deveria ser um Tratado da Negação. Aqui expõe a doutrina da eternidade do Bem e do Mal como princípios de que o mundo é originado. J. Böhme, no século XVII, falaria da Luz e das Trevas, imanantes ao universo criado e à própria divindade de que tudo provinha — tanto o Bem como o Mal.

            A afirmação radical de que “Deus está enganado” chocaria certamente quem ouvisse Pessoa. Mas é necessário contrapor a estes fragmentos — que não foram divulgados pela sua mão — a poesia em que alude a Jesus Cristo como Mestre, ou ao Menino Jesus como nosso protector: quem abençoa os Santos abençoa neles a humanidade que somos.

“Deus é o sentido para onde tendem todas as inteligências que governam este mundo contra a vontade satânica da sua matéria inerte. Como o ponto para onde tendem existe já, porque o tempo é uma ilusão, Deus é; como tendem para a absoluta Perfeição, Deus é a Perfeição absoluta; como tendem para a Suprema Beleza, Deus é a Beleza Suprema. O Universo está já onde estará, e já isso, é Deus.” (ms. 1914)

            “O conceito da dualidade em relação ao conceito de Deus. Argumento: Não se pode conceber Deus sem conceber um outro princípio, a ele oposto — seja esse princípio a Matéria, criada por Deus e oposta a Deus como criada; seja o Vácuo ou Não-Ser, directamente oposto a Deus, que é o puro Ser; seja Satan, o Mal, ou outro qualquer Contra-Deus, oposto a Deus simplesmente como “personalidade” oposta. Objecção: Pode conceber-se Deus sem relação a outra coisa qualquer, concebendo Deus, quer (1) como puro Ser, e pois excluindo para o Não-Ser tudo quanto não seja ele, (2) como Tudo, e portanto incluindo todas as coisas, e sendo de todas elas substância. Contra-argumento: (1) Ao puro Ser opõe-se, em todo o caso, o puro Não-Ser, que pode ser Nada relativamente ao Ser, mas Qualquer Coisa relativamente à nós, visto que, pelo menos, o podemos pensar. (2) Se Deus é Tudo, para que existe qualquer coisa que não seja só e puramente Deus? Porque existem coisas susceptíveis ao menos de serem pensadas fora de Deus?” (dact. 1915?)

É no Tratado da Negação (dat. 1916?) de Rafael Baldaia que o tema é mais desenvolvido:

“1. O Mundo é formado de duas ordens de forças: as forças que afirmam e as forças que negam.

  1. As forças que afirmam são as forças criadoras do mundo, emanadas sucessivamente do Único, centro da Afirmação.
  2. As forças que negam emanam do além do Único.
  3. O Único de quem Deus, o Deus criador das coisas, é apenas uma manifestação, é uma Ilusão. Toda a criação é ficção e ilusão. Assim como a Matéria é uma ilusão para a Intuição; a Intuição uma ilusão para a Ideia Pura; a Ideia Pura uma Ilusão para o Ser. E o Ser é essencialmente Ilusão e Falsidade. Deus é a Mentira Suprema.
  4. As forças que negam são aquelas que partem de além do Único. Fora do Único, para a nossa Inteligência, não há nada. Mas como é possívelpensar que esse Único não existe, como é possível negá-lo, ele não é o Único, o Supremo, o realmente Supremo (aqui os termos faltam). Poder negá-lo é negá-lo; negá-lo é ele não ser.
  5. A negação suprema é aquilo a que nós chamamos o Não-Ser. O Não-Ser não é pensável, porque pensar o não-ser é não pensar. E contudo, visto que empregamos o termo não-ser, ele é pensável, de certo modo. Desde que é pensado, torna-se o Ser. Assim o Ser sai por oposição do Não-Ser. O Não-Ser é que o precede, para falr a linguagem humana.
  6. A Matéria, que é a maior das negações do Ser, é o estado que, por isso, mais próximo está do Não-Ser. A Matéria é a menor das Ilusões, a mais fraca das mentiras. De aí o seu carácter de Evidente. À medida que o Ser se vai manifestando, vai-se negando; à medida que se vai negando, vai criando o Não-Ser. Como o Não-Ser é anterior ao Ser, essa negação que o Ser faz de si-próprio é uma criação, se assim é possível falar.
  7. Devemos ser criadores de Negação, negadores da espiritualidade, construtores de Matéria. A Matéria é a Aparência; a Aparência é ao mesmo tempo o Ser e o Não-Ser. (Se a Aparência não é o Ser, é o Não-Ser. Se é o não-ser, não é a Aparência. Para ser a Aparência, ela tem, portanto, que ser o Ser).
  8. A negação consiste em auxiliar o Manifestado a manifestar-se mais, até ele se dissolver em Não-Ser.
  9. Há dois princípios em luta; o princípio de Afirmação, de Espiritualidade, de Misticismo, que é o Cristão (para nós, actualmente), e há o de Negação, de Materialidade, de Clareza, que é o Pagão. Lúcifer — o portador da Luz, é o símbolo nominal do espírito que Nega. — A revolta dos Anjos criou a Matéria, regressou ao Não-Ser, libertação da Afirmação.
  10. Há realmente todos os mundos que os teósofos afirmam. Mas eles estão dentro da Ilusão, que, enquanto existe, é a Realidade. Deus existe com efeito para si-próprio; mas Deus está enganado. Como qualquer de nós julga existir, e para Deus não existe, senão como parte dele, e isto é não-existir, em absoluto; assim, Deus julga existir e não existe. O próprio ser é o Não-Ser do Não-Ser apenas, a afirmação mortal, da Vida.”

Noutros textos, alusivos ao Paganismo Superior — Teoria do Paganismo (ms. 1915?), podemos ler, àcerca da figura de Cristo:

“O Cristo é a representação simbólica, humanizada, do processo que o paganismo não conta, ou não sabe contar, pelo qual a Realidade passou do Caos e da Noite (Destino) para os Deuses. Entre o Informe, que o Duplo mistério da Noite e do Caos representa, e o Formado, que começa com o primeiro deus, há um abismo causal, sobre cuja natureza, de propósito, o sistema pagão se cala. Nos mistérios, porventura, não se calava; e ali se ensinavam aquelas doutrinas que, porque derivam de uma verdade anterior aos deuses, não podem ser ditas na forma exterior que, por natureza, se coaduna com o mundo exterior que os deuses governam.

            Entre os deuses e o Cristo há uma diferença. Os deuses são reais, e carnais com a sua carne; existem como nós, mas superiormente; agem como nós, mas completamente; nascem como nós, mas sem ocaso (sem crepúsculo) nem imperfeção.

            O Cristo, porém, não existe senão simbolicamente: é substancialmente simbólico. Os deuses não são mitos nas suas pessoas, são-no, quando muito, na nossa indecisão. O Cristo, porém, é um mito na sua própria realidade; é real na proporção em que é mito. E só símbolo de si-próprio. É puro sonho, mas puro nada projectado.

            Assim, o processo mental, pelo qual compreendemos Cristo, não existe na humanidade. Os próprios deuses, nossos semelhantes maiores, não o entendem. Os deuses são da nossa carne e da nossa alma mas perfeitos; podemos amá-los ou compreendê-los embora não os possamos seguir nem imitar. O Cristo, o Logos, não pode ser compreendido; pertence a uma outra realidade, cujo próprio modo de ser real é diferente do mais abstracto conceito que façamos, da palavra realidade.

            O Cristo é o intermediário Absoluto, o que é absurdo; o Verbo que não é promunciado, o que é impossível.

            A razão só sobe até aos deuses porque os deuses são racionais; não sobe até ao Logos, porque alí não há razão.

            O que paira acima do Logos é Lei, Destino, visto do nível dos homens e dos deuses, cuja raça, como Píndaro disse, é uma só; é outra coisa, vista do nível de Cristo, mas que coisa, não podemos nem atingir, nem compreender que se atinja ou se não atinja, mas “coisa” mesmo, lhe podemos, mesmo por falso recurso, chamar.

            O Cristianismo, como o Budismo, são crimes contra a humanidade, porque são crimes contra as leis divinas. São a tentativa, mais que todas sacrílega, de revelar o irrevelável; de trazer para o público o que, de sua natureza, trazido que seja para o público já não é o que é.

            É como se houvesse uma jóia ou uma flor, cuja cor maravilhosa só pudesse existir na noite, desaparecendo logo que se estabelecesse a luz, com a qual se veria.

A vulgarização do mistério não se pode fazer, porque assim como o segredo, dito, deixa de ser segredo, perde a sua virtude mística de segredo; assim os mistérios, revelados, não são revelados. Disse-o bem Tertuliano: revelá-los é destruí-los.

Quando se lê nos livros, tais quais são, dos Rosa Cruz que o sentimento é mais verdadeiro que a razão, supõe o geral dos leitores, que se trata do sentimento, como humanamente o sentimos. Mas não é esse o sentimento de que os Encobertos falam. É de uma outra forma de consciência, que não existe, nem em esboço, na alma humana; de que nada em nós pode dar ideia, ou fingir que é sombra.

O mistério do Cristo não pode ser revelado, porque não há na alma humana, qualidades para compreender essa revelação.

A “intuição”, de que falam os místicos é termo usado apenas para indicar um processo de compreensão que não é a inteligência. Mas não temos qualidades nenhumas a que se chame intuição. A palavra é negativa, posto que pareça positiva. Assim como vir de intus, “dentro”, e significar “compreensão vinda de dentro”, pode ser in-tuitio, o não ver, o não proteger. Tão subtil sentido, duplo, têm às vezes as palavras!”

Mais tardios, revelando a continuação de um debate em si mesmo, os textos Da Existência de Deus (dat. 1930-1933?):

“Os argumentos relativos ao problema da existência de Deus têm sido viciados, quando positivos, pela circunstância de frequentemente se querer demonstrar, não a simples existência de Deus, isto é, de um Deus com determinados atributos. Demonstrar que o universo é efeito de uma causa é uma coisa; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente é outra coisa; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente e infinita é outra coisa ainda; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente, infinita e benévola outra coisa mais.”

            A doutrina de Fernando Pessoa aproxima-se de uma “teologia da negação” à maneira de um Nicolau de Cusa ou dos místicos como S. João da Cruz ou Meister Eckhart. O acento recai na impossibilidade do dizer, quando se reporta ao mistério do Ser Absoluto que é Deus. Pode dizer-se o finito (o universo criado) nunca o infinito pois seria delimitá-lo também, restingi-lo ao nosso próprio entendimento: “Goethe truly says that every man’s God is as that man…” (ms. ingl. 1906).

Yvette Centeno

 

Bibl.:; Fernando Pessoa, Textos Filosóficos, António P. Coelho (ed.), Ática, Lisboa, 1968; Fernando Pessoa, Obras em Prosa, Cleonice Berandinelli (ed.), Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1982; Fernando Pessoa, Obras de António Mora, Luis Filipe B. Teixeira (ed.), I.N.C.M., Lisboa, 2002.