O poeta Edmundo de Bettencourt nasceu no Funchal a 7 de Agosto de 1899 e fa­le­ceu em Lisboa a 1 de Fevereiro de 1973. Em 1919, iniciou estudos no Curso de Direito em Lisboa, que prosseguiria em Coimbra, já na década seguinte, nunca tendo conc­luí­do a Licencia­tura. De regresso a Lisboa, no início dos anos 30, depois de uma breve expe­riên­­cia no fun­cio­­­nalismo público interrompida devido à sua presença nas listas do Mo­vi­­­mento de Unidade De­mocrática (MUD), ingressou na actividade da propa­ganda mé­di­ca.

Nos tempos de estudante em Coimbra, Edmundo de Bettencourt travou conhe­ci­mento com Artur Paredes e tornou-se compositor e intér­prete da canção de Coimbra, tendo sido autor de vários êxitos que o notabilizaram e lhe valeram o reconhecimento de artistas como José Afonso, que chegou a dedicar-lhe um dos seus discos. Grande parte dos fados de Bettencourt foram gravados para a importante editora Odeon. Em 1928, gra­vou alguns dos que viriam a integrar o volume Fados de Coimbra (1926-1930), da colectânea Arquivos do Fado, editada pela Tradisom, na que foi apenas uma de muitas participações suas em colectâneas antológicas de Fados e Baladas de Coim­bra. Em 1999, a sua obra musical foi com­pilada no CD O Poeta Cantor, pela editora Valentim de Carvalho, incluindo as com­­­posições «Samaritana», «Saudades de Coimbra», «Meni­na e moça», «Saudadinha», «Senhora do Almortão — Senhora da Póvoa», «Crucificado», «Balada do encan­ta­men­to», «Inquietação», «Alegria dos céus», «Fado de Santa Cruz», «Fado da sugestão», «Canção da Beira Baixa», «Fado dos olhos claros», «Mar alto» e «Canção do Alentejo». Em 2002, o Departamento de Cultura da Câmara de Coimbra instituiu o Prémio Edmundo de Bettencourt, visando reconhecer o melhor trabalho de originais no âmbito da Canção de Coimbra, no intuito de promover a criação de novos temas e o apare­cimento de novos valores neste género musical.

Em Coimbra, Edmundo de Bettencourt ligou-se aos escritores que, depois de cola­bo­­­rarem nas revistas Bysancio (1923-1924, 6 números) e Tríptico (1924-1927, 9 nú­me­ros), viriam a fundar a revista presença (1927-1940, 56 números), órgão do segun­do mo­mento moder­nis­­­ta português, de cujo título Edmundo de Bettencourt foi autor, e onde cola­­borou activa­­mente entre 1927 e 1930, em quase todos os volumes, com poemas, ensaio e foto­grafia (fascs. 1, 2, 3, 5, 8, 10, 13, 14-15, 16, 17, 20, 22, 24 e 26). 1930 foi o ano da dissidência: a 16 de Junho, Ed­mundo de Bettencourt, Branquinho da Fonseca (António Madeira) e Adolfo Rocha (Miguel Torga) assina­ram uma Carta Aberta, dirigida a José Régio e a João Gaspar Simões, onde anunciavam a saída da pre­sença, rumo «à aventura, sem rei nem roque pelo mundo de todas as latitudes e lon­gitudes», censurando os dois directores da revista pela contradição nos seus propósitos iniciais de defesa da in­di­vi­dualidade do escritor, e acusando-os de limitação da liberdade artística, de como­­­dismo, enve­lhe­ci­mento e queda no «arcaísmo estático das escolas», e de pre­conceitos estéticos. A Carta Aberta — de que Fernando Pessoa recebeu logo um exemplar na Livraria Portugália, fortalecendo a sua lealdade para com Régio e Gaspar Simões, que se traduziria num aumento da cola­bo­ração para a presença — originaria uma longa troca de textos entre os dois directores e os dissi­den­tes, que se estenderia até à década de 50, culminando na autobiografia de João Gaspar Simões, História do Movimento da «presença», de 1958, reeditada em 1977 com o título José Régio e a História do Movimento da «presença». Em 1944, já depois da extinção da revista, Edmundo de Bettencourt recons­ti­tuiu os seus desígnios iniciais, sublinhando que o objectivo fun­­da­mental fora «libertar o Artista de tudo o que pudesse comprimir, falsear ou per­verter as suas cria­ções», através da demo­lição de «cer­tos convencionalismos da forma, dos temas, certas exterioridades e pre­conceitos aca­dé­mi­cos», pois o Artista deveria en­ca­minhar-se, «num caminho sem arti­fí­cio, para a ver­dadeira originalidade». No en­ten­der de Bettencourt, tais princípios há­viam condu­zido, em particular pelas mãos de José Régio e João Gaspar Simões, à fixa­ção de uma «larga no­ção de modernismo». Sobre a cisão, reforçou a ideia de que ela se havia dado por coe­rência e fidelidade dos três dissi­dentes «aos pontos de vista dos pri­mei­ros tem­pos», «numa atitude de protesto, contra um enquadramento do artista em fór­mu­las rígidas, que presença, nessa altura, estava em risco de aceitar». Apesar da dissi­dên­cia, no mesmo mês de Junho de 1930, Edmundo de Bettencourt apareceu repre­senta­do, ao lado de outros pre­­sencistas, no Cancioneiro coligido por António Pedro por altura do Primeiro Sa­lão dos Inde­pen­den­tes (dedicado a Cesário Verde, Camilo Pessanha, Ângelo Lima e Mário de Sá-Carneiro), e publicou, também em 1930, com a chancela das Edições Presença, o seu primeiro — e por 33 largos anos, único — livro de poesia, O Momento e a Legenda, publicitado no nº 26 da presença, de Abril-Maio de 1930, a que José Régio não deixaria de dedicar um elo­gioso comentário crítico no nº 28 da presença, de Agos­to­-Outubro de 1930.

Apesar de, segundo o seu próprio depoi­­men­to, se ter iniciado na escrita literária aos 9 anos, Edmundo de Bettencourt teve uma produção poética escassa, tendo pu­bli­ca­­do em vida apenas duas obras, O Momento e a Legenda, em 1930, e Poemas: 1930-1962 — incluindo o livro de estreia e os inéditos Rede Invisível (1930-33), Poemas Surdos (1934-40) e Ligação (1936-62) —, em 1963, pela editora Arcádia, com um decisivo pre­­­fácio de Herberto Helder. Entre 1930 e 1963, os seus textos circularam espaçadamente ape­nas através de dispersos saídos em revistas ou em plaquettes colectivas. Depois da dissi­­dên­­cia, o poe­ta prosseguiu o caminho individual e solitário que já havia iniciado em ter­­mos esté­ti­cos, permanecendo arredado das actividades de grupo, o que, em certa me­di­da, lhe valeria algum esquecimento e falta de valorização no mun­do literário e público, até à edição da poesia de 1963. Já depois da sua morte, a editora Assírio & Alvimpre­pa­rou uma edição autónoma do volume Poemas Surdos, em 1981, e deu à estam­pa, em 1999, a obra completa, Poemas de Ed­mundo Bettencourt, com reprodução do texto intro­­­du­tório de Herberto Helder.

O Momento e a Le­gen­da, composto por poemas redigidos entre 1917 e 1930, denun­cia o am­biente literário presencista em que foi produzido, em particular na nar­­­­­­­­­ra­­­­­tividade e num discursivismo por vezes inflamado, próxi­mo dos de José Régio, de Miguel Torga ou de Alberto de Serpa, bem como no tom decadentista e paú­li­co. No plano temático, não deixa de confi­­­gurar um certo subjectivismo de ex­pres­são lírica e tra­ços românticos — espe­­cial­mente flagrante na insistência nos motivos noc­tur­­nos —, con­cen­trado num per­ma­­nente processo de interiorização de impressões e per­cep­­ções no seio da «inte­rior pai­sa­­gem» do poeta, depois sujeitas a uma operação de trans­fi­gu­ra­ção am­pli­fi­ca­­dora. Régio falará de um «excesso da coisa a exprimir sobre a expressão que lhe é da­da»(pre­sença, 28). Há, sobretudo, uma forte atmosfera expressionista de base — a que não foram também alheias as pri­mei­ras obras de J. Régio, de Saúl Dias, de J. Gomes Fer­reira, de Bran­qui­nho da Fonseca ou do próprio J. Gaspar Simões —, que se pro­­lon­ga no livro seguinte, Rede Invisível, e que, em primeira instância, explica, como notou Óscar Lo­pes, que a ex­pres­­são poética de Edmundo de Bet­ten­court escape, graças à fantasia trans­­figu­rante, aos moldes confessio­na­listas e since­ros de algum psico­lo­gismo pre­sen­cista, em versos como estes: «Os silêncios do luar são / aléns de notas agudas, / são gritos para­li­sa­dos / em rictos de bocas mudas!». O aprofundamento do ambiente verbal onírico e a arti­cu­­lação alucinatória das imagens, já no livro de estreia, deu origem a alguns versos que le­gi­timam o juízo radical de Herberto Helder, se­gun­­do o qual Bet­tencourt foi «uma das pou­quís­­simas vozes modernas entre o milagre do Orpheu e o bre­ve momento sur­realista por­tu­­guês»: cons­tatação que, em 1946, Jorge de Sena — pioneiro do Surre­a­lis­mo em Por­tu­gal — já fizera, sobrelevando o «supra-rea­lismo incipiente de Ed­mundo de Bet­­te­ncourt» (Mundo Literário, 2). Em poemas como «Hora do Exílio» ou «Reflexos», o poe­ta desen­vol­­ve uma imaginação livre e a-racional, a par de um universo de suges­tões e re­­­fe­rên­­cias íg­neas de linhagem rimbaldiana que terão tendência a acentuar-se nos livros sub­se­quen­tes, onde é já possível detectar a irre­a­li­da­de sen­sí­vel e a expressão sur­­­rea­lizan­te que isso­larão defini­tivamente a expe­riên­cia poé­tica de Betten­court da dos res­­­tantes presen­cistas.

Rede Invisível aprofunda o andamento sonâmbulo e hipnotizado da enunciação poé­ti­ca, reforçando a ima­gética expressionista, e prepara aquela que foi a obra mais de­cisiva de Edmundo de Bettencourt, Poemas Surdos, composta por 22 textos produzidos entre 1934 e 1940. Niti­da­mente estruturada por um Surrealismo que em Portugal ainda não se havia im­pos­to na altura da redacção dos poemas, já que o panorama literário por­tu­guês da época vivia o confronto entre o Neo-Realismo emergente e a presença sosso­brante,a obra demarca-se desde os primeiros versos — «Enquanto os elefantes pela floresta galo­pa­vam / no fumo do seu peso» — por um princípio analógico surrealista de evidente raiz intersec­cionista (veja-se versos como «Distante, lá na gruta marinha, / a sereia cantava surda nos confins do café»), com base na associação de realidades distantes, não apresentando contudo manifes­tações de auto­matismo inconsciente ou de desar­­­ticulação sintáctica, pois o surrealismo de Poemas Surdos não é, como bem ob­ser­vou Herberto Helder, programático ou de escola: trata-se, sim, de uma «cons­ciên­cia de surrealidade» próxima das de Ângelo de Lima, de Fernando Pessoa ou de Sá-Car­nei­ro. No livro, sobressai um bestiário fantástico onde convivem ele­fan­tes e bor­boletas, leões e tigres, panteras e lobos, cobras e serpentes, peixes, papagaios, «aves brancas do cére­bro» e sereias cantando «à porta do café», todos protagonistas de um cenário onírico que os títulos das com­posições em grande medida anunciam: «Nocturno fundo», «Noite vazia», «A força da fuga do olhar», «Vigília», «Asas», «Relâmpago». A visualidade e a plas­ticidade que caracterizam a poesia de Bettencourt desde os primeiros poemas acen­tua-se mediante o reforço da constituição cromática dos textos, assim como a sono­ri­dade apurada, assente em jogos paronímicos, aliterantes e assonantes. O discurso poé­ti­co preserva o tom romântico dos livros anteriores — agora tem­perado pelo poder sinte­ti­zante da imagem surrealista traduzido na «sempre nova faísca incendiária» da metá­fora —, mas o ritmo do verso acompanha a libertação das imagens, e o verso curto e frequentemente regular dos primeiros livros dá lugar ao verso livre e longo, rumo ao poema em prosa (cf. «Poema da emoção ausente», «Atracção», «Bucólica», «Espelho»). Afas­tado do anta­­­go­nismo então latente nas letras por­tuguesas, e sem qualquer preocupação de pro­pa­ganda através da escrita, Edmundo de Betten­court produziu um livro surpre­endente e insólito, que a história se encar­regaria de valorizar. Ligação, reu­nin­do poemas pro­duzidos entre 1936 e 1962, é uma colectânea mais irre­­­gular, e menos ino­vadora, onde se pode encontrar, com os títulos «Bala­da» e «Canção», a presença da acti­vidade musical do poeta, e a confirmação de alguns dos seus traços poé­ti­cos mais carac­terísticos, que a insistência no motivo da cegueira vidente certamente condensa: «cego-me a vê-lo imagem de miragem», anunciava já programaticamente na «Paisagem verda­deira» de O Momento e a Legenda.    

 

 

BIBL.: BETTENCOURT, Edmundo de, Poemas de Edmundo Bettencourt, introd. Herberto Helder, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999; Câmara, João de Brito, O Modernismo em Portugal: Entre­vista com Edmundo de Bet­ten­court (1944), reprod. fac-similada, Coimbra, Minerva, 1996.

 

Joana Matos Frias