O Epithalamium de Fernando Pessoa é um longo poema escrito em inglês, composto de 377 versos distribuídos por 21 secções de tamanho variável e de métrica e rima irregulares. Escrito em 1913, pouco tempo antes da criação dos heterónimos, e publicado em 1921 como English Poems III pelo próprio Pessoa constitui, juntamente com Antinous, publicado pela mesma altura em English Poems I-II, um caso único de poesia erótica na obra pessoana.

O epitalâmio, poema nupcial de raiz greco-latina adequado a uma situação específica ou retratando uma circunstância particular, teve a sua origem em festas populares de casamento, onde cânticos eram entoados por jovens em torno dos nubentes. Herdado da Antiguidade Clássica, este tipo de poesia circunstancial e laudatória ou adulatória, foi retomada em Itália, no Renascimento, em belas imitações do epitalâmio clássico e prolongada ainda ao longo dos séculos XVII e XVIII, exagerando no seu carácter malicioso inicial para cair num erotismo gratuito e grosseiro.

Em Portugal o epitalâmio foi introduzido por Sá de Miranda, continuou a ser cultivado com uma certa regularidade no século XVII e permaneceu, sem grande relevo, até ao XIX. Os seus cultores mais importantes foram António Ferreira, Cruz e Silva, Reis Quita e, em géneros compósitos, ficcional e epistolar, Jerónimo Baía e D. Francisco Manuel de Melo.

Os epitalâmios portugueses foram geralmente escritos para celebrar casamentos entre a nobreza da época e perderam portanto, nessas situações concretas, o carácter erótico e libidinoso que tiveram na civilização romana e depois na Itália dos árcades. Ao conformarem um discurso culto e distante, adquiriram o tom elevado e nobre da ode.

Esse espírito licencioso da Roma antiga foi retomado por F. Pessoa que, ao referir-se a este poema numa conhecida carta a João Gaspar Simões (de 18 de Novembro de 1930), o classifica de “directo e bestial”. Também na mesma carta, tentando explicar a razão porque Antinuos e Epithalamium    “são os únicos poemas […] que se pode chamar obscenos”, fala de uma espécie de depuração dos elementos “de obscenidade” nele eventualmente existentes, impeditivos da plena realização e “estorvo para alguns processos mentais superiores”, decidindo por isso “eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente”. Ainda na mesma carta, ao informar do projecto ao qual pertencem estes dois poemas que, com outros três inéditos, iriam formar um “livro que percorre o círculo do fenómeno amoroso”, refere a filiação romana de Epithalamium. Transcrevemos o que F. Pessoa designou como os cinco componentes desse ciclo “imperial”: ”Assim temos: (1) Grécia, Antinous; (2) Roma, Epithamium; (3) Cristandade, Prayer to a Woman’s Body; (4) Império Moderno, Pan-Eros;  (5) Quinto Império, Anteros.

Os dois poemas referidos, editados no mesmo ano, seriam os únicos “nitidamente obscenos” da série, segundo o autor, formando assim um todo com carácter exorcizante e purificador que, embora escritos na idade adulta, podem representar uma libertação de antigos fantasmas juvenis ligados ao sexo. Talvez por isso mesmo escritos em inglês.

Ao longo das vinte e uma estâncias ou secções em que o Epithalamium se divide, podemos seguir de perto a festa e os seus preparativos, desde o lento despertar da noiva até à consumação do acto nupcial, para o qual toda o poema se encaminha em gradações várias e num crescendo obsidiante. Dentro do tempo que vai de uma madrugada à outra, a distribuição desse tempo no discurso é muito diferente. Na verdade ocupa seis estâncias (I-VI) a longa descrição do lento acordar da noiva, num misto de medo e prazer; nas três estrofes seguintes (VII-IX) vemos o seu levantar e o vestir com a ajuda das donzelas; depois, apenas em mais quatro segmentos (X-XIV), temos a saída do quarto, a presença dos convidados, a casa enfeitada, a ida e a vinda da igreja, a alegria da boda; as cinco partes seguintes (XV-XIX) são preenchidas com as memórias eróticas de velhos e adultos e as tentativas de repetir prazeres e experimentar sensações, aproveitando a festa; finalmente, as duas últimas estâncias (XX-XXI) descrevem a noite de núpcias e a entrega dos corpos em mútuo prazer até de madrugada.

O Epithalamium de F. Pessoa afasta-se dos restantes epitalâmios portugueses, não apenas pelo tratamento excessivamente erótico dado ao tema, mas ainda pelo seu carácter geral, não identificado – uma noiva anónima, um casamento sem data, um lugar qualquer de um local indeterminado. Sabe-se apenas que é um casamento cristão pela rápida referência à igreja, pois tudo o resto se desenrola numa atmosfera totalmente pagã, onde dominam as sensações e onde o sexo é o verdadeiro protagonista Para esse ambiente eufórico e dionisíaco concorrem a profusão de cores e sons e as exuberantes imagens de movimento, luz e calor, despertando variadas sensações visuais, sonoras e tácteis, que progressivamente se vão adensando e contaminando corpos e mentes dos seres envolvidos. Aliás, logo no início, as primeiras estrofes são introduzidas pela exortação, simbolicamente epitalâmica “Abram-se as janelas para o dia entrar”, usada depois em diversas variantes. O discurso decorre solto, rápido, sem grandes preocupações estéticas e toda a gradação erótica é pontuada por comparações recorrentes do mundo animal, conferindo à união pelo sexo algo de realmente “bestial”.

O ritmo insistente, feito de repetições a vários níveis, a rima predominantemente emparelhada, a pontuação abundante, tudo concorre para a atmosfera obsessiva que envolve o poema.

 

 

Luísa Freire