A enumeração caótica é um dispositivo retórico antigo. O seu uso é assinaldo, por exemplo, durante o período barroco, (vd Isabel Almeida), embora esta designação apenas tenha sido criada por Leo Spitzer, autor que se ocupou da ocorrência desta figura da ampliação, na poesia moderna, posteriormente à sua introdução por Walt Whitman. A enumeração caótica, procura o efeito de intensificação por acumulação, próprio da ordem da enumeração, mas recorrendo a elementos desordenados relativamente a regras de uso, principalmente no que respeita à ordem semântica ou à sintáctica. Este procedimento, gerando estranheza, possui grande força retórica, pelo que a enumeração caótica destaca, deliberadamente, o poder criador de mundos e autorreflexivo da palavra, o que inscreve este dispositivo, muito naturalmente, no pendor experimental do período modernista e no conceptualismo que o caracteriza.

 Procurando a enumeração caótica configurar uma realidade que emerge do esbatimento de distinções entre os objectos da experiência subjectiva, e assim evidenciar a inconsistência da realidade objectiva, evidente se torna que este dispositivo se articula com a modernidade pessoana. Pessoa actualiza de tal modo a potencialidade lírica deste recurso, que é possível falar, a propósito, num uso emblemático daquilo que pode ser a enumeração caótica. A acumulação de elementos díspares aparece assim como algo de necessário à própria razão de ser desta poesia, que existe para nomear a fragmentação da identidade, não apenas da identidade como unidade de um sujeito, mas também, e necessariamente das relações entre as coisas no mundo da nomeação.

A presença da enumeração caótica é identificável em poemas assinados pelo próprio Fernando Pessoa (A Chuva Oblíqua) mas sobretudo pelo heterónimo Álvaro de Campos, nas grandes odes futuristas. Da poesia deste heterónimo são retirados os exemplos que se seguem. Em Campos o excesso serve-se, com frequência das figuras da repetição – anáforas diversas – e os respectivos efeitos de acumulação e intensificação. Nesse caso, a enumeração caótica, tal como o Pessoa futurista a concebeu e concretizou, pela voz de Campos, serve a figura de um excesso em que à intensificação, por acumulação (também por via da repetição, em construções anafóricas diversas), se junta a fragmentação. São variadas as configurações que a e. c. assume:

- enumeração de nomes de coisas que são objecto de apelo ou invectiva: “Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks /Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes” (Ode Triunfal); “Ó ferro, ó aço,  ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado! / Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores” (idem);

-fragmentos da memória afectiva: “a cadela a uivar e noite,/ O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia,/ O bosque como foi à tarde, quando lá passeámos, a rosa,/ A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros”;

-designações de espaços públicos, ou elementos afins, que se apresentam como fragmentos da própria identidade: “Meu coração tribunal, meu coração mercado, meu coração sala da Bolsa, meu coração, balcão de Banco, /Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,/ Meu coração banco de jardim público, hospedaria, estalagem, calabouço número qualquer coisa,/ (…)/ meu coração club, sala, plateia, capacho, guichet, portaló,/ Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,/ Meu coração postigo,/ Meu coração encomenda,/ Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,”;

- enumeração de objectos ou situações-máquina, que funcionam como metáfora da condição emocional do sujeito: “ nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,/, Nos meus nervos locomotiva, carro-eléctrico, automóvel, debulhadora a vapor,/ Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel, Campbell,/ Nos meus nervos instalações absolutas a vapor, a gás, a óleo e a electricidade”;

- enumeração de objectos-sensação e situações-sensação, cuja nomeação os dispõe sem a separação de vírgulas, assim criando uma identidade contínua e indiferenciada, entre os objectos e o eu que os sente: “Rumor tráfego carroça comboio carros eu-sinto sol rua/ Aros caixotes trolley loja rua vitrines saia olhos/ Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua/ Passeio lojistas “perdão” rua/ Rua a passear por mim a passear pela rua por mim/ Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá/ A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,/ O chão no ar o sol por baixo dos pés regas flores no cesto rua/ O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua”.

 

Maria Sousa Tavares

 

BIBL.:  Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, Poesia (Assírio e Alvim, 2002). Isabel Almeida, “Enumeração”, Biblos, 2.