(1903-1987)

Crítico, ensaísta, historiador da cultura, biógrafo, polemista, antologista, e também romancista (Elói ou Romance numa Cabeça), e dramaturgo. O seu magistério ensaístico (teórico e histórico-literário) iniciou-se em 1929 com Temas, seguido em 1931 por O Mistério da Poesia; mas, enquanto crítico, teve primeira voz na presença, ganhando base regular em 1936 com uma coluna no Diário de Lisboa; prosseguindo na revista Átomo a partir de 1949 e no Diário Popular entre 1951-1954, para estender-se na página de “Artes e Letras” do Diário de Notícias dirigida por Natércia Freire de 1954 a 1974, prosseguindo, inclusivamente, após a saída da editora da página; e, continuando no mesmo jornal e no Século, entre outros, terminando apenas com a sua morte, ocupando mais de meio século. A sua obra, sobretudo crítica, é ainda uma das mais descuradas e maltratadas obras do século XX português. A crítica recente tem considerado Simões como um receptor ineficiente de Pessoa, alegando um ineficaz, confuso e teoricamente pouco alicerçado sistema interpretativo. Porém, é igualmente inegável que nenhuma obra ainda se debruçou sobre os motivos e o mapa interno de uma actividade crítica inultrapassável para a compreensão do século XX português. A Gaspar Simões deve a crítica em Portugal, antes de mais, a fixação de um conceito de sujeito poético modernista; e ainda uma nova concepção de crítica, que assenta numa profunda revisão do papel do crítico como intérprete e, por isso, principal mediador entre a obra e o público: a crítica passa a atentar nas relações entre o homem e a obra, entre o criador e a criatura. A obra de arte é uma realidade em si mesma. Esta profunda independência da obra de arte, própria da Nouvelle Revue Française mas sobretudo da presença, baluartes dessa autonomia, não tem paralelo em Portugal quando Simões inicia o seu magistério crítico entre 1920-1930. Até aí a “crítica” servia como braço legitimador da literatura como panteão; por isso Simões inicia a sua actividade diagnosticando a doença da crítica em Portugal em 1931 n’ O Mistério da Poesia, encontrando dois pecados de análise lusitanos: «uma atitude poética», onde o poeta é recebido triunfalmente «entre grinaldas de expressões líricas». E «uma atitude séria, racionalista», em que o poeta é acolhido como um representante danado dessa loucura irracional que é a poesia. Esta a crítica de tudo quanto o poeta não podia ser – um racionalista. É incomportável ainda hoje esta devolução da poesia à poesia, fora de contextos que a predeterminem, tão clarificadora da liberdade da palavra como outros pressupostos teóricos; acontece, porém, que a genética busca de Simões de um mistério constituinte se confunde ainda com alguma bruma romântica – facto aproveitado para rejeitar a leitura de Simões. Mas é de uma evidência insuperável que Simões fixa, pela primeira vez em Portugal, o terreno de um crítico que lê a partir da obra de arte, sendo esta a do Modernismo.

Isto significa um abandono de todos os modelos biografistas e ideológicos, na procura do «acto gratuito» gideano: ora, se é no inconsciente que reside o “homem profundo”, a melhor obra de arte será a que registar e exprimir mais “actos gratuitos”. Porém, no centro da concepção de Simões está a ideia de que a obra de arte não é apenas expressão e Modernidade, não apenas um catálogo de elementos, rupturais, estranhos ou novos, mas um texto, complexo e multímodo, imparável e constante, onde uma nova concepção do homem e do mundo deve previamente (e sobretudo) existir. Procurou definir João Gaspar Simões, no célebre artigo “Modernismo” dos números 14-15 da presença, os dois tipos de lirismo que lhe pareciam coincidir no momento modernista da revista. Citando Goethe (“é a poesia da circunstância”) e Alain (“é a situação cósmica que nós não motivámos, nem quisémos, nem previmos, e nos possui”), Gaspar Simões procurou, dentro do seu programa crítico de raiz psicológica, “entrever o mistério de que essa verdadeira força lírica se investe”. Este mistério, palavra que só aparentemente parece apontar para grelhas de leitura românticas, e que Fernando Guimarães levanta a propósito da definição do que é a “originalidade” presencista, parece-nos fulcral para esclarecer como essa singularidade se constrói num modelo de sujeito de características invadoras e excepcionais. Esta concepção, se faz coincidir de facto uma raiz pós-romântica com elementos modernistas, gera porém uma noção inovadora e autónoma de sujeito modernista. Ao crítico da presença interessa-lhe atingir o “supralírico”, fusão do “circunstancial emotivo” e do “circunstancial intelectual”, que é «a concentração de toda a ALMA num poema por multiplicação, por processos extralíricos, talvez intelectuais, dos seus elementos expressivos», buscando atingir um tipo de indefinível (“anímico” e “intelectual”) fora do alcance da razão. Ora, esta abertura (“submissão”) ao inconsciente, próxima da poética surrealista, está (de facto) muito próxima da concepção freudiana: «As fantasias e sonhos acordados (...) não deverão ser concebidos como algo fixo e imutável. Pode dizer-se que uma fantasia está como que suspensa entre três tempos – os três momentos da sua produção. O trabalho psíquico parte de uma impressão actual, de uma circunstância presente que consegue despertar um dos maiores desejos do sujeito, recuperando, a partir daí, a recordação de uma experiência anterior, geralmente infantil, em que esse desejo foi satisfeito. Cria então uma dada situação, projectada no futuro, que representa a realização daquele desejo, sob a forma de sonho acordado ou de fantasia, que em si contém os indícios da sua origem em circunstâncias presentes e em recordações. Deste modo, o passado, o presente e o futuro alinham-se na cadeia contínua do desejo. (...) O desejo recorre a uma circunstância presente para projectar uma imagem futura segundo o modelo do passado. (...)» O texto citado de Freud (“A Criação Literária e o Sonho Acordado”) é apenas um dos muitos que comprovam como o id se manifesta, (também) em termos criativos, a partir da mais funda e recalcada vida interior do sujeito, em termos humanos – essas mesmas marcas do id fazem parte de toda a humanidade, e correm no sangue da história e do imaginário. Como queremos desde já sublinhar, estes temas da Humanidade, presentes no seu id, vão manifestar-se na concepção do sujeito modernista, no seu imaginário e modelos, seus materiais de expressão. A própria presença esclareceu a importância destes fenómenos, ao afirmar que na arte  se projecta uma realidade psíquica profunda. Onde a nova concepção de sujeito de Simões (a partir da presença, com natural coincidência inicial com as concepções críticas e até póeticas de Régio) se parece conflituar é por vezes na dificuldade de separação entre o “eu” do artista e o “eu” poético; mas defende que ambos manifestam um outro eu, o ponto invisível onde o Homem deixa de ser o autor e onde um sujeito independente se exprime. Donde que Simões procure entrever o momento dessa separação, o que frequentemente chamou «a eclosão do artista», onde a sua realidade humana explode para uma comunicação maior que a vida e que si próprio; essa libertação exprime-se toda no conceito de personalidade, energia criadora de cada ser, liberto de constrangimentos e prefigurações de toda a ordem, um só com o cosmos vário do corpo, do id, da memória infinita. O Absoluto sou eu, assim poder-se-ia desenhar o novo sujeito que a crítica de Simões concebe e recebe.

Em consequência destas duas profundas alterações de concepção, uma nova ideia de crítico surge. O modelo crítico de Simões pretendia substituir a óptica de sociólogo pela de psicólogo, a moral pela estética. Nesta nova concepção de crítico estão ferozmente inscritas a independência do político, atenção às vozes profundas do eu, análise do ambiente e matizes psicológicos da obra. O crítico não é apenas historiador da cultura, compreendendo e situando as fontes e correntes históricas, ideológicas e interiores onde a obra se baseia; mas opera na leitura da obra e do sujeito nela impressa, procurando as fundas raízes da originalidade do sujeito, buscando no tecido psicológico entre obra e sujeito um continuum do próprio inconsciente colectivo, numa profundidade que torna a crítica uma intérprete: da natureza, manifestações e concretizações do imaginário; do cosmos da sua experiência sensorial, corporal, simbólica e proto-cognoscitiva; das raízes e matizes da personalidade como conceito fundador da modernidade, nas suas transmutações e concretizações; da própria psicologia nacional e da sua história de figurações, temas e significados de símbolos. Cada “eu” textual, segundo a lição de Calinescu, vale como descobridor de mundos da linguagem e dos símbolos, numa «aventura espiritual» que torna a literatura o espaço interior do mundo. Sem dúvida uma união do mais fundamente romântico (do que era anúncio do Modernismo no Romantismo) com as novas conquistas da psicanálise, os novos mundos da linguagem, com o ruptural e experimental da vanguarda. Esta a herança de Simões para a crítica portuguesa. Uma herança de uma importância fortemente descurada. É porém notório que no avançar de meio século de crítica, Simões revelou-se incapaz de actualizar os seus modelos críticos; mas não menos revelou uma coerência insuperável e sem par na crítica nacional.

O primeiro texto de interpretação sistemática de Simões sobre Pessoa encontra-se no seu primeiro livro, O Mistério da Poesia. A leitura desse texto, “Fernando Pessoa ou as Vozes da Inocência”, mostra-nos ainda um Simões pouco liberto nas suas convicções, desenhando um sujeito pessoano pós-romântico e muito alicerçado na teoria das “vozes da inocência”. A sua concepção centrar-se-á na fixação das características deste sujeito lírico excepcional, «paradoxal e divinatório» sem dúvida modelar para a sua própria concepção de crítica. Não pode nem deve ser esquecido que Simões foi o primeiro grande hermeneuta de Pessoa, respondendo com modelos interpretativos que não fecharam a obra e apenas revelaram a sua dimensão e originalidade. Ao poeta dos heterónimos dedicou mais de trinta trabalhos diferentes, sem par com a sua missão de primeiro editor literário das obras de Pessoa, com Luís de Montalvor – e a conservação e fixação de inúmeros originais pessoanos. Acresce a sua monumental Fernando Pessoa: a Obra e o Homem (1950), oscilante entre análises fulgurantes e reveladoras, e conclusões bruscamente freudianas; e a colectânea de textos, original e feliz, Heteropsicografia de Fernando Pessoa (1973). A este corpus já de si incomparável na frequência, diversidade e multifacetamento, juntam-se as Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões.

Foi também Simões o primeiro a fixar a relevância do Simbolismo português e francês para a explosão multímoda e multiradicular do Modernismo português: no «tormento de infinito», na revelação musical do símbolo, no sujeito como objecto da pesquisa interior da literatura. Daí Simões encontra em Pessoa a motivação que o fez «irradiar de si o culto da pura arte, desviar-se dos caminhos da multilateralidade, reprimir a adaptação a tudo». Simultaneamente, integra a tensão órfica da obra de Pessoa, reconhecendo-lhe não só as correntes vanguardistas que incorporam universos panteístas e mágicos, mas a sua própria potência ocultista, de procura e trabalho da essência da linguagem, da energia do verbo: «a operação alquímica que lhe dará a comunicação do Absoluto». A leitura de Simões insistiu, porém, numa procura da sinceridade Pessoana, diversa da sinceridade presencista, com danos vários, esbarrando na obra e criando um afastamento de uma linha de leitura que procurou, a dado momento, explicar as altas e variadas temperaturas de uma obra como a de Pessoa, em permanente fuga de si mesma. O afastamento de Simões das mais rigorosas e fundas grelhas de leitura, operacionais nos primeiros anos da Crítica, no Mistério da Poesia, em Natureza e Função da Literatura (1948), em alguns muito felizes passos de Fernando Pessoa: a Obra e o Homem, significa também o seu progressivo afastamento de Fernando Pessoa; crítica e seu objecto de análise primordial como que se separam no último Gaspar Simões.

Devem ainda ser convenientemente estudadas as realizações ficcionais de Simões. Pântano (1940), A Unha Quebrada (1941), Internato (1946), entre outros títulos, não atingem a excelência de Elói (1932): com O Jogo da Cabra Cega e A Velha Casa de José Régio, fundadores na ficção portuguesa de carácter psicológico. Há uma corrente psicologista no romance do Modernismo, lateral à corrente (neo)realista, fundamental para compreender a maturidade e singularidade do romance português pós-revolução. Elói, narrativa de um homem simultaneamente vítima e libertador do seu “id”, navega entre os limites da consciência e da culpa. Marco fundamental de uma literatura de princípio activo psicológico, ou seja, e segundo o próprio Freud, em que «o sofrimento ocorre no íntimo do próprio herói, em resultado de um combate travado entre emoções diferentes; esse combate não terminará com a derrota do herói mas de uma emoção, ou seja, como uma renúncia.» Pode ser censurado ao romance ser falho de um enredo inquieto, de pouca acção; mas da mesma forma deve ser sublinhada a excelência e desenho do seu conflito, que embora reflicta as consequências sociais de um herói em deriva psicológica, não abandona o carácter eminentemente pessoal, egótico, do seu próprio choque identitário.

 

 

Pedro Sena-Lino