«Nada me prende a nada.» Este primeiro verso do poema de Álvaro de Campos, originalmente publicado com diversos erros na revista Contemporânea em Junho de 1926, não apenas ecoa os dois primeiros do antecessor «Lisbon Revisited (1923)» («Não: não quero nada. / Já disse que não quero nada.»), como lembra sobretudo o verso inicial de «Passagem das Horas», datado também de 1923: «Nada me prende, a nada me ligo, a nada pertenço.» E, evidentemente, liga-se, pela mesma repetição da palavra «nada», ao famosíssimo incipit de «Tabacaria», de 1928: «Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.»

Álvaro de Campos será provavelmente a única assinatura de Fernando Pessoa que assim subscreveu certo niilismo literal cuja leitura está ainda por fazer em todas as suas implicações. O tom geral deste segundo «Lisbon Revisited» é, nesse aspecto, muito particular, visto que o niilismo corresponde aqui directamente a uma retórica do falhanço explorada em todas as direcções temporais. O passado: «Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota. / Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.» O presente (não por acaso, o da escrita e do sentido): «Compreendo a intervalos desconexos; / Escrevo por lapsos de cansaço; / E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.» O futuro (necessariamente opaco e escasso) onde essa escrita intervalar e cansada se projecta como impossibilidade de projectar: «Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago; / Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso. / Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…» Deste colapso generalizado de todas as forças e fontes de sentido parece ter desertado, até, aquela espécie de energia que reconvertia o «nada» em alimento ou combustível para a máquina de reiteração da recusa que «Lisbon Revisited (1923)» ainda constituía.

Se essa máquina parecia girar ou gritar no vazio, regulada apenas pelo tardar de «o Abismo e o Silêncio», agora nem esse funcionamento de mónada sem comunicação exterior, à espera do fim, parece adequado a descrever uma enunciação que se dobra sobre si mesma e não encontra sequer modo de entender os signos que profere e repete. Na sexta estrofe deste poema, é a própria possibilidade de apostrofar a cidade que é posta em causa, por intromissão de uma consciência retórica que suspeita, não da prosopopeia que transforma a cidade em interlocutor, mas do significado, ou da possibilidade de dar significado ao «Eu» sem o qual a invenção desse «Tu» urbano seria ininteligível: «Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, / E aqui tornei a voltar, e a voltar, / E aqui de novo tornei a voltar?»

Combinada com a interrogação, esta repetição que faz voltar quatro vezes o verbo «voltar» em três versos, mimetizando textualmente a lógica ou a mecânica do regresso, coloca toda a ênfase nos efeitos do prefixo «re-», que fica como que separado de «Revisited». As muito vagas alusões à cidade «triste e alegre», de que mal subsiste qualquer vestígio referencial no poema, tornam-se assim solidárias da figuração espectral do «Eu». Na antepenúltima estrofe, o espectro literaliza-se a tal ponto que do Eu já sobra apenas um «Fantasma a errar em salas de recordações» (e mais facilmente imaginamos, nesta última imagem, as salas do que o seu conteúdo de recordações aparentemente desaparecidas). Ter vivido na cidade — mesmo tendo vivido nela uma ambígua «infância pavorosamente perdida» — e ter depois voltado e tornado a voltar à cidade deixam, assim, de configurar experiências diferentes: o regresso confunde-se, no espectro, com o único modo de vida possível, toma conta de todos os sentidos possíveis da palavra «vida», coloniza o espaço vital e transforma-o no «castelo maldito de ter que viver», segundo o derradeiro verso da mesma antepenúltima estrofe.

Neste poema, nada subsiste, portanto, da imagem de infância construída, apesar de tudo, em não poucos versos da «Ode Marítima» — o poema a que os dois «Lisbon Revisited» se ligam sem que propriamente nada os prenda à memória desse texto senão certa tentativa obscura de o esquecer. A penúltima estrofe de «Lisbon Revisited (1926)» deixa porém entrever um vestígio dessa tentativa. Ao designar a cidade revista como «Sombra que passa através de sombras», mostra-a enquanto cidade que desaparece, mas o modo do desaparecimento não é arbitrário: essa sombra «entra na noite como um rastro de barco se perde / Na água que deixa de se ouvir…» Nenhuma interpretação demonstrará categoricamente que há, em tal «rastro de barco», uma alusão ao final da «Ode Marítima», mas é certo que nenhuma poderá excluir ou ignorar essa possibilidade. Tanto basta para que se leia aí, como numa alegoria, o traço de um acontecimento poético que se reproduz: a memória do fim, a inscrição em epitáfio da dissolução da cidade enquanto objecto lírico, paralela ao silenciamento da água assinalando a desintegração da voz que, enquanto voz lírica, tinha na água o seu emblema.

 

Gustavo Rubim

 

BIBLIOGRAFIA

 

Álvaro de Campos, Poesia, ed. Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.

Paul de Man, The Rhetoric of Romanticism, New York, Columbia University Press, 1984.