(1889-1951)

Fernando Pessoa foi ocasionalmente comparado ao filósofo inglês de origem austríaca Ludwig Wittgenstein. Com grande probabilidade nenhum deles ouviu alguma vez falar do outro e muito menos leu o outro.  Fora de um sentido estrito e de algumas coincidências gerais, as comparações devem-se mais à tentativa de descrever um escritor com uma carreira invulgar através de descrições de um filósofo com uma carreira invulgar.

 

Três ordens de razões parecem ter ajudado à comparação. A primeira, difusa e geral, é o facto de quer Fernando Pessoa quer Wittgenstein serem essencialmente escritores póstumos.  Como Fernando Pessoa, Wittgenstein deixou a maior parte da sua obra inédita, embora, ao contrário de Fernando Pessoa, o único livro que publicou em vida (conhecido como Tractatus Logico-Philosophicus) tenha sido publicado relativamente cedo.  Como Fernando Pessoa, nem toda a sua obra foi ainda publicada.    E como Fernando Pessoa existem projectos rivais para o estabelecimento de edições críticas.   A segunda ordem de razões é o facto de uma parte da obra de Wittgenstein ser de natureza fragmentária e epigramática e, nalguns casos, utilizar processos e exemplos próximos dos de narrativas ficcionais, que recorrem sob forma de variações (veja-se a colecção de fragmentos tardios Über Gewissheit, bem como o papel de muitos exemplos famosos, nem todos aliás originalmente seus, que ocorrem na obra), ou ainda o modo essencialmente dramático e disputacional de Philosophische Untersuchungen, onde frequentemente se apresentam interlocutores que exprimem teses opostas sem que seja sempre claro quais destas correspondem à opinião de Wittgenstein. Esta segunda ordem de razões pode ajudar a caracterizar Livro do desassossego e variada prosa crítica de alguns heterónimos, mas não as odes de Álvaro de Campos (e menos ainda as de Ricardo Reis).

 

Uma terceira ordem de razões provém da suspeita de intuições filosóficas e argumentos filosóficos comuns aos dois escritores. Esta suspeita é todavia usada apenas num único sentido, isto é, para insinuar que Fernando Pessoa tinha ideias wittgensteinianas ou proto- wittgensteinianas, mas não para insinuar que Wittgenstein tivesse ideias pessoanas ou para-pessoanas. Sugere assim, para usar um termo caro a Fernando Pessoa, uma forma particular de provincianismo que reclama os benefícios do comércio externo como forma de justificação intelectual.

 

Não existe uma bibliografia extensa devotada ao tópico, embora haja várias alusões ocasionais, sobretudo ao Livro do Desassossego e à poesia de Alberto Caeiro.    Referindo-se ao primeiro, o crítico George Steiner gabou-lhe o “registo tantas vezes estranhamente parecido com o de Wittgenstein”, mas não desenvolveu a alusão. Angel Crespo argumentou que o Livro do Desassossego tende para uma “linguagem privada”, mas, apesar da referência explícita a Wittgenstein, parece querer apenas dizer que certos passos da obra são difíceis de perceber. Iris Hermann defendeu que existe uma analogia entre a vagueza do conceito wittgensteiniano de ‘dor’ (em Philosophische Untersuchungen) e o “sensualismo declarado” do Livro do Desassossego, caracterizável por uma “incerteza sensorial,” mas a tese sobrepõe um conhecido argumento de Wittgenstein a favor de definições vagas às definições vagas do Livro do Desassossego.

 

As referências a Wittgenstein e à poesia de Caeiro são igualmente gerais. Richard Zenith entende esta poesia como “um discurso filosófico contínuo,” a propósito do qual fala de “Lucrécio actualizado, e aperitivo de Wittgenstein.” John Gray, numa recensão à edição em inglês que Zenith fez do Livro do Desassossego, fala de “crítica poética da linguagem e da metafísica” a propósito de “O guardador de rebanhos,” que considera “tão subtil e poderosa como as de Wittgenstein.” A alusão parece ser aqui à ideia de “crítica da linguagem”, um rótulo que Wittgenstein retomou no princípio da sua carreira filosófica ao crítico teatral austríaco Fritz Mauthner. Quanto ao termo ‘metafísica’, é reconhecidamente proeminente no poema V de “O guardador de rebanhos,”  onde o seu uso deflaccionado (que aliás é partilhado por Campos em “Tabacaria”) é contemporâneo de muitos outros usos semelhantes por filósofos, economistas, cientistas e activistas políticos, nomeadamente Rudolf Carnap nos seus escritos polémicos de 1930-1 contra Martin Heidegger (que aliás também usou o termo de modo deflaccionante). A paternidade de tais usos remonta talvez a Kant. O adjectivo “metafísico” (mas não o nome ‘metafísica’) ocorre três vezes nas secções finais do Tractatus, nomeadamente em 6.53, em que Wittgenstein sugere que “quando alguém quisesse dizer algo de metafísico” se lhe deveria mostrar “que nas suas proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação.” Numa nota que excluiu do manuscrito final das suas observações sobre The Golden Bough, em 1931, Wittgenstein compara a metafísica “a uma espécie de magia.” A ambos os casos subjaz a ideia, muito comum no chamado Círculo de Viena, de que as proposições metafísicas são proposições destituídas de sentido e não proposições que expressem pensamentos, falsos ou verdadeiros. No poema V de “O guardador de rebanhos” Caeiro, referindo-se a exemplos de tais proposições declara que “Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.”   Tal bastaria para o colocar nos antípodas de Wittgenstein.  Felizmente não é preciso, como também não parece necessário imaginar Fernando Pessoa a fazer declarações filosóficas para se lhe acrescentar dignidade intelectual.

 

 

Miguel Tamen