As origens do messianismo – entendido aqui como a crença na superação de um estado de insatisfação coletiva através da intervenção divina – têm, no ocidente, sólidas raízes judaicas, devidamente fortalecidas pelo cristianismo. Na Antigüidade, tanto os judeus quanto os cristãos primitivos lançaram mão de profecias em cujo conteúdo se pode reconhecer uma escatologia revolucionária, no esforço não apenas de afirmar-se enquanto coletividade, mas principalmente de identificar seu papel radicalmente transformador de toda a história, promovendo uma alteração que culminaria com a igualdade e bem-aventurança de tudo o que existe sobre a terra.

Assim, quando se fala na presença de um componente messiânico na cultura portuguesa, menos do que se ater à discussão acerca da direta influência judaica na sua constituição, é importante observar seu caráter a um só tempo homogêneo e heterogêneo, que remonta às origens do messianismo como fenômeno, unindo duas perspectivas que o processo de consolidação do cristianismo se esforçará para separar. Nesse contexto em que diferentes perspectivas culturais tendem a encontrar-se, e, mesmo, sobrepor-se, alguém como o Bandarra figura como exemplo – basta lembrar o alcance de suas profecias tanto entre a comunidade cristã quanto entre a judaica. E é justamente no período em que suas trovas começam a circular que se pode identificar a consolidação de uma modalidade específica de messianismo português, que ganhará corpo e um nome próprio na altura do desaparecimento de D. Sebastião. Sob a forma de sebastianismo, o elemento messiânico presente na cultura portuguesa será tema e problema para gerações de intelectuais.

Tendo em vista a característica principal do messianismo, tal como acima mencionada, não é difícil compreender o motivo para a organização de um movimento messiânico naquele momento: com a perda do rei e a conseqüente perda da autonomia, o corpo coletivo viu-se impotente para reverter uma situação que, ao menos em termos de um imaginário, pairou sempre como sombra a ameaçar a nacionalidade. Desse modo, a volta triunfal do rei tornado messias seria a única saída para a situação de jugo em que se encontravam seus súditos. Descrita a situação, cabe avaliar o que nela existe que, a longo prazo, transforma um traço cultural em problema.

A escatologia revolucionária sobre a qual se assenta o messianismo encontra-se entre dois pólos de forças equivalentes: a expectação (afinal, trata-se da convicção na vinda de um líder) e a ação, o esforço para apressar a esperada vinda. A crítica francamente negativa ao sebastianismo observa uma descompensação nesses pólos de força, com uma sobrecarga na expectação e um quase nulo investimento na ação. Foi esse o centro da argumentação anti-sebastianista de um Agostinho de Macedo, que, no início do século XIX, debruçou-se longamente sobre a questão: “(...) pela obrigação de bom patriota (...) julguei conveniente desabusar esta seita de crédulos, que na verdade são prejudiciais à pública segurança, e defesa do reino, enquanto fiados nas ridículas profecias permanecem indolentes para tudo (...)”. A mesma perspectiva adota António Sérgio, já no começo do século seguinte (1917), quando associa a persistência do sebastianismo à “alma da gente pouco afeita à iniciativa e ao self-government”.

Ainda no âmbito da crítica, à identificação do sebastianismo com a inação soma-se sua compreensão como índice de desvario ou, no mínimo, de falta de capacidade para encarar racionalmente as questões coletivas. Será esse o principal argumento de Sampaio Bruno e de António Sérgio em sua refutação da análise de que é objeto o sebastianismo pela pena de Oliveira Martins. Na introdução a O encoberto (1907)o primeiro começa por equiparar a escrita de Martins no Portugal contemporâneo ao produto de uma atividade febril, desqualificando por completo a abordagem do historiador em sua tentativa de sistematizar o sebastianismo como fenômeno cultural. Para Bruno, o que há de sobra em Martins é mau gosto, literária e analiticamente falando, sendo “quimérica” sua interpretação do sebastianismo como “idiossincrasia moral da gente portuguesa, quando (...) o sebastianismo sempre foi aberrante maluquice, peculiar de escassa data de alienados pacíficos, como tais julgados pelos seus contemporâneos e por seus conterrâneos como tais tidos”.

Na esteira dessa refutação, Bruno empenha-se em reforçar o caráter universal do messianismo enquanto fenômeno – o que, em sua opinião, jogaria por terra a teoria defendida por Martins de que se tratava de uma peculiaridade portuguesa – e na distinção entre sebastianismo e messianismo (“o primeiro considerado irrisório e pertença de maníacos; o segundo reputado intangível, como inviolável timbre da dignidade coletiva”). Quanto a Sérgio, para além de escrever a “Interpretação não romântica do sebastianismo” (1917) de olho no que Oliveira Martins havia dito sobre o assunto, explica o miguelismo do historiador (associável a uma tendência messiânica) como resultado de sua incapacidade de “assimilar a ideia do dom de universalidade da consciência do homem, a do Eu absoluto, a da Razão”.

As atitudes de Bruno e Sérgio dão a medida da importância de Oliveira Martins nesse processo de investigação dos sentidos assumidos pelo messianismo, seja ele sebastianista ou de outra natureza, no âmbito da cultura e do imaginário portugueses no final do século XIX e início do XX. Na esteira do que Garrett havia feito em Frei Luís de Sousa, Martins aborda o messianismo sebastianista de modo a problematizá-lo, não se restringindo a registrá-lo superficialmente como fruto de uma alma nacional dada a quimeras para, em seguida, rechaçá-lo ou incensá-lo. O resultado daquela espécie de psicanálise avant la lettre levada a cabo pelo historiador, paralelamente à caracterização do tipo de messias representado por D. Sebastião, é a identificação entre rei e reino pela via da loucura, o que, em termos da elaboração de uma auto-imagem coletiva, tem um peso considerável, dada a ambigüidade com que Martins a reveste – daí a permanência da inquietação que se vê despontar nas palavras de Sampaio Bruno e António Sérgio, que, mais de vinte anos passados desde a publicação da História de Portugal, ainda estão às voltas com Oliveira Martins e sua interpretação do sebastianismo.

Se, no que diz respeito à recepção crítica de que é objeto, a abordagem martiniana encontra restrições que a invalidam, quando transposta para o cenário da literatura imaginativa transforma-se em verdadeira referência para os autores que se interessem em figurar o rei como símbolo do homem que tem como meta a superação de todas as constrições e discutir, a partir da trajetória de D. Sebastião e de seus desdobramentos, os limites entre esperar e agir, e, conseqüentemente, as implicações de uma e outra opção. Fora de sintonia com a reflexão mais cientificista do período, o messianismo sebastianista descrito por Martins tem profunda afinidade com o que se lê nos poemas “O Desejado”, de António Nobre, “San Gabriel” e “Depois da luta, depois da conquista”, de Camilo Pessanha, mas é na Mensagem de Pessoa que o aproveitamento da temática/problemática messiânica, nos moldes com que ela aparece em Martins, apresenta-se de forma mais elaborada. Nesse sentido, exemplar e incontornável é “Louco, sim, louco porque quis grandeza/ Qual a Sorte a não dá”, poema em que se concentra a discussão acerca do sentido simbólico da trajetória do rei, no qual se observa a completa superação da leitura literal de seu destino – que acabou por estender-se a toda a coletividade sobre a qual reinava D. Sebastião.

Do simbolismo ao modernismo, os temas messiânicos têm lugar garantido na produção literária portuguesa, quer pelos conteúdos decadentistas e decadentes a eles associáveis – as imagens de perdição e estilhaçamento das individualidades e do coletivo nacional –, quer pela força de recomposição que representam. Assim é que entre o Pessanha de “San Gabriel” e o Almada de “Modernismo” estabelece-se um vínculo que lembra aquela polarização entre expectativa e ação que marca o messianismo. Enquanto, no poema de Pessanha, o eu-lírico pede, desnorteado, “Vem-nos levar à conquista final”, como quem vê diante de si a decomposição de todos os sonhos e a falta de saída sem remédio, a prosa de Almada, dedicada a esclarecer o leitor acerca da natureza do modernismo, tem, no gesto afirmativo de D. Sebastião, o suporte para a ação transformadora, pois, no dizer do companheiro de Pessoa, “os nossos portuguesíssimos sebastianistas confundem tremendamente o que D. Sebastião disse em Alcácer-Kibir. D. Sebastião não disse tal: Esperem por mim que eu hei-de voltar um dia. O que El-Rei nos disse a todos nós e para que nós o ouvíssemos de uma só vez para sempre foi: Rapazes, façam como eu! Eu sou o Rei, eu dou o exemplo: dou a vida pela nossa Pátria!” Conhecendo-se minimamente as concepções de Almada sabe-se que este dar a vida pela Pátria está longe de ser um convite à imolação. É, ao contrário, uma exigência de entrega à vida. De resto, se a marca da literatura moderna é a revolução, não deve surpreender, nas experiências formais e conteudísticas a que se entregam os autores do período em questão, a presença desse messianismo que, nascido da esperança de novos tempos, é promessa de mudanças ininterruptas. 

 

BIBL.:

COHN, Norman. Na senda do milénio. Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Lisboa: Editorial Presença, 1981.

SERRÃO, Joel. Do Sebastianismo ao Socialismo. Lisboa: Livros Horizonte: 1983

HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado. A construção do sebastianismo em Portugal. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998   ou

BERCÉ, Yves-Marie. Le roi caché - Sauvers et imposteurs. Mythes politiques populaires dans l'Europe moderne. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1990.

 

 

Patrícia da Silva Cardoso