A aspiração ou a ligação de F. P. aos Mestres perpassa por toda a sua obra. Encontramo-la, desde novo, em contos intitulados O sonho de Buda, Mestre, No Jardim (Horto) de Epitecto, nas comparações entre Jesus e Buda e nas designações o meu Mestre Caeiro, os Mestres do Concílio Pagão, os Encobertos Rosa Cruzes, os Superiores Incógnitos, os Mestres da Doutrina Secreta, a Grande Fraternidade, os Emissários Desconhecidos, os Mestres ou Sacerdotes da Ordem do Templo, os Mestres das Eras, os Sábios Invisíveis, a Hierarquia Oculta. E ainda nos estudos do Sentido Oculto do Cristianismo e Acerca da Iniciação, do «grande mistério do Grau de Mestre» na Maçonaria, dos mestres da sua alma (o rei D. Sebastião, o arquitecto Hirão, o grão-mestre templário Jacques de Molay, Christian Rosenkreutz e Jesus Cristo) e na indagação e demanda do Mestre interno, de acordo com o que reconheceu por mais de uma vez ser um dos princípios fundamentais da iniciação ou da vida oculta: «Quando o discípulo está pronto, o mestre está pronto também» (E3 54-90).

Se na adolescência criticara Deus e Jesus, com influências de livres-pensadores, ateus e agnósticos, como Nietzche, Binet-Sanglé, Max Nordau ou John M. Robertson, tal foi contrabalançado pela acção do mestre-escola e latinista Nicholas, pelas leituras de Shakespeare («um iniciado divino»), Novalis, Milton (cuja teologia do Paraíso Perdido «vive da luz cabalística»), Shelley («um alto intuitivo»), Carlyle, Henry Drummond, R. W. Emerson, W. Whitman, valorizadoras das qualidades criativas e espirituais dos heróis, sábios, santos e mestres, e sobretudo pelo The Rosicrucians, their rites and mysteries de Hargrave Jennings, transmissor de doutrinas e mistérios dos gnósticos, templários, herméticos e rosicrucianos, com extractos significativos de Fludd e Vaughan, no que foi certamente uma iniciação juvenil, aliás assinalada por três tipos de lápis e tinta a sublinharem ou a anotarem a obra, hoje na Casa Museu Fernando Pessoa.

Desde cedo encontramos muitos poemas espirituais em que F. P. pesquisa sensações e expressões que desvendam o mistério ora da Presença divina ora da Sua ausência, bem como da Sua Luz clarificadora, nas dualidades da vida mas, como rejeitou em vários aspectos a Igreja católica de Roma, embora prossiga na demanda do sentido oculto do cristianismo, o seu labor é no panteísmo transcendental e no paganismo superior, no regresso dos Deuses, culminando em Março de 1914 na criação do mestre  Caeiro, um antídoto contra a especulação filosófica ou mesmo o pseudo-esoterismo, que afastariam da apreensão directa da verdade. Em 1915, porém, a tradução de livros teosóficos põe-lo em contacto com os ensinamentos orientais ocidentalizados da Teosofia e as descrições dos Mestres, os famosos Mahatamas (em sânscrito, as grandes Almas), apresentados de forma algo mistagoga pelos dirigentes da Sociedade Teosófica. Embora impressionado com a abrangência e força de tal explicação do homem e do mundo, reagirá e critica os teósofos, escrevendo, por exemplo, que «Blavatsky era um espírito confuso e fraudoso; mas também é fora de dúvida que recebera uma mensagem e uma missão dos Superiores Incógnitos» (E3 53B-82), reconhecendo assim a acção dos Mestres. Mas prefere procurar nas fontes ocidentais o acesso ao Mestre, ao Espírito e à Verdade, em vez de o receber do Oriente, em segunda ou terceira mão vulgarizadoras.

Proveniente desses livros teosóficos ou de outros, encontramos porém ecos do mais elevado, ou não-dual (advaita Vedanta) magistério oriental: «No ocultismo dos Índios o Mestre, a que os discípulos procuram, é a própria substância monádica do discípulo. «Eu próprio sou o cantor», diz-se no poema sagrado. Só há a procurar o que já se encontrou» (E3 24-75), transmitindo assim a sua compreensão de um dos aspectos mais subtis da realização interior, que escapará sempre aos profanos, e que foi aprofundado, por exemplo, com grande mestria, pela tradição do sufismo iraniano, como o mostram os estudos de Henry Corbin. Esta transversalidade iniciática, não frequente em F. P. até ao Oriente, mas para a qual já fora iniciado com a leitura da obra de Hargraves Jennings (com capítulos sobre a unidade das mitologias), referida por Bernardo Soares («o rio Ganges também passa pela rua dos Douradores»), surge bem mais evidente num dos seus pares da época, o prémio Nobel e ocultista William B. Yeats, que traduzia no final da sua vida, com Purohit Swami, alguns dos Upanishads, que significam em sânscrito os ensinamentos secretos aprendidos junto aos mestres.

Poderíamos ainda referir nessa busca de inspiração superior, a um nível escorregadio, os anos de 1914 a 1917, em que tentou a escrita automática, com o resultado de termos hoje numa letrinha miúda algumas mensagens, uma ou duas mais substanciais, assinadas como provindas de um dos ilustres mestres platonistas de Cambridge, Henry More, designando-se como Frater Rosa Cruz. Numa carta a Mário de Sá Carneiro, de 24/6/1916, revelará as suas expectativas a propósito das escritas mediúnicas e das visões etérica e astral que tivera: «É que tudo isto não é o vulgar desenvolvimento de qualidades de médium. Já sei o bastante de ciências ocultas para reconhecer que estão sendo acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer, que o Mestre desconhecido, que assim me vai iniciando, ao impor-me essa existência superior, me vai dar um sofrimento muito maior do que até aqui tenho tido, e aquele desgosto profundo de tudo que vem com a aquisição destas altas faculdades». Quanto a esta concepção do caminho do despertar sob a égide de mestres, ela surgirá de novo cristalizada em carta, em 29/11/20, desta vez a Ofélia, justificando a sua (primeira) separação: «Que isto de “outras afeições” e de “outros caminhos” é consigo, Ofelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra lei, de cuja existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinada cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam». E se em Junho de 1919 nada resultara da carta escrita aos ocultistas Hector e Henri Durville, directores do Institut du Magnetisme et du Psychisme (E3 20-56), pedindo informações sobre o curso de correspondência de magnetismo pessoal e confessando que «a minha vida psíquica é uma espécie de curso de desmagnetismo pessoal», já em 1930, após corrigir o horóscopo do mago A. Crowley e de uma troca de cartas, este vem a Portugal e encontram-se algumas vezes, numa relação ainda algo enigmática quanto às influências que terá recebido e às consequências na sua própria realização espiritual.

Desde esses anos de 1915 e seguintes, em que fez a sua transição (ou aprofundamento) do paganismo para o caminho mais conscientemente iniciático, F. P. foi lendo obras ocultistas e esotéricas, seja de escritores seja de ordens, como a Maçonaria e a panóplia das inglesas, da Societas Rosicruciana in Anglia à Golden Dawn e à Astrum Argentinum, ou à Stella Matutina, todas elas referidas em textos, além de uma ou outra francesa, como o Martinismo de Papus e a Sociedade Hermética dos Rosa-Cruz, fundadapor Stanislas de Guaita no ano emblemático de 1888., nelas reencontrando a noção dos mestres, que se encontra em quase todos os povos e tempos e indica a existência de uma Tradição viva (e vivida por muitos) de frequentadores dos degraus ascensionais da escada de Jacob (descritos por F. P. numa hierarquia que leva dos «líderes, heróis, mestres aos semi-deuses, deuses e demiurgo, Pai, Filho e Espírito Santo» (E3 53 A-20) e que se consubstancia nos mestres e discípulos, grupos e ordens espirituais de cada época ou povo e que F. P. investigará, teorizará e tentará mesmo ressurgir, primeiro como a Ordem Terceira e a Ordem Sebastianista e, por fim, como a Ordem de Cristo ou Templária de Portugal.

Numa post-modernidade, ainda tão emaranhada em análises labirínticas e em especulações meramente mentais sem referências ou vivências espirituais e nada predisposta a aceitar hierarquias leis e sabedorias (donde o lema "nem Deus nem Mestre"), parecerá estranho esta admissão, no nascimento do Modernismo, dos Mestres e do mundo Espiritual e Divino, mas se olharmos pela Europa fora encontramos os casos exemplares de Rilke, Yeats, Mallarmé, René Guénon, G. Meyrink, Th. Mann, T. S. Eliot, R. Daumal e H. Hesse, aliás já antecedidos, no romantismo, por Goethe, W. Black, Balzac, Nerval, Novalis e Villiers de L’Isle-Adam que dão testemunhos nítidos deles.

A razão fundamental da existência dos Mestres pode ser vista duplamente: «a humanidade é um vasto animal que dorme; o que se passa nela não é mais que os sonhos que lhe são impostos» (E3 54A-70), e «o verdadeiro sentido da iniciação é que este mundo visível em que vivemos é um símbolo e uma sombra, que esta vida que conhecemos através dos sentidos é uma morte e um sono, ou, noutras palavras, que o que vemos é uma ilusão. Iniciação é o dissipar - um dissipar gradual e parcial – desta ilusão» (E3 54A-59). Ora este estado de ignorância e a necessidade de um caminho de inspiração, desvendação e iluminação implicam a existência dos iniciadores, mestres que transmitam as energias, impulsos, influências ou práticas que despertem espiritualmente a alma, a libertem das trevas da ignorância e a abram à luz interna, à linguagem dos pássaros, ao diálogo intuitivo com os símbolos e com a hierarquia subtil dos mestres e anjos, para que finalmente Deus e a Luz da Verdade e o calor do Amor renasçam nela.

         Na história e tradição portuguesa, F. P. considerou mestres, além de certas figuras da Mensagem, como D. Afonso Henriques e D. João I («Mestre, sem o saber, do Templo/ que Portugal foi feito ser»), principalmente Bandarra e P. António Vieira pelo espírito profético que possuíam, capazes de clarividentemente vencerem as limitações do tempo e da mente, e de serem, como ele, arautos do Encoberto e do V. Império. Elos da Tradição portuguesa foram ainda Antero de Quental, Sampaio Bruno, Pascoais e Leonardo Coimbra. Mas certamente que mestres especiais foram D. Dinis, o transmutador dos templários na Ordem de Cristo e sobretudo o Infante D. Henrique, o governador da Ordem de Cristo. E como a aceitação dos mestres implica a dos discípulos, bem como o caminho iniciático, F. P. teorizará as condições de iniciação, essa dissipação das trevas e da ignorância, que nos torna mestres ou pelo menos receptivos e já conscientes deles, ou ainda descreverá as provas ou testes para se atingir o grau de mestre na Ordem Templária de Portugal, desenhando até os rituais e redigindo alguns discursos para os neófitos e irmãos receberem «luz, calor e vida».

Aos Mestres, aos seres que entre a humanidade adormecida e a Divindade pouco conhecida servem de pontes e de guias e que, de modo subtil e invisível, influenciam e inspiram não só os que se querem libertar como a própria evolução da humanidade, F. P. dedicou várias poesias de grande sensibilidade, inteligência e visão, tal a de 9-5-34, intitulado Sup[eriores] Incógnitos: «Nunca os vi nem lhes falei/ E eles me tem guiado/Segundo a forma e a lei/ Do que, ainda que conhecido,/ Tem que ficar ignorado» (E3 62A-2). Mestres, pois, amados, e cuja invocação ardeu no coração de F. P., sendo na sua boca os seus nomes escudos protectores contra os três assassinos do mestre, «a Ignorância, o Fanatismo e a Ambição», que então como agora, tentam impedir ou matar a nossa vida espiritual e a ligação com os mestres e Deus. Isto nos diz em 4/1/1934: «Há cinco Mestres de minha alma/ Por (Em) cinco pontos me levanto/ Da estrela que me resplende calma/ E tem no meio o sinal santo/A letra que nos traz dos céus/ A sigla do nome de Deus.// Foi o primeiro um Arquitecto/ Morreu sob o imperfeito tecto/ Por não dizer nosso Segredo. /Três assassinos (agressores) o mataram/ Nas três portas em que o acharam. //. Seu nome, virgem de traição/ Está em meu ser como um remédio/ Contra o que é fraco em coração, / Contra o dissídio e contra o tédio. /A sua imagem de exumado/ Quando é que serei levantado?» (E3 62-2).

Mestres, designando pois aqueles que, já unificados ao espírito, são capazes de despertar a potencialidade espiritual latente do ser humano que, como a bela adormecida, espera pelo seu príncipe que lhe dê o beijo, ou lhe sopre a palavra perdida, que faz com que a coração e a intuição despertem para o espírito e a revelação da unidade, tal como vemos no poema Eros e Psique, em que F. P. glosa a tradição iniciática grega e o romanceiro popular indo-europeu ( a Bela adormecida ou a Shakti indiana), revelando a unidade do espírito do peregrino com a alma-gémea ou a amada princesa adormecida.

F. P., mestre? De certo modo, não só pela sua genialidade de criador e posterior influência universal, mas também pela procura da Verdade na qual, segundo as suas teorias da iniciação, cumpriu os requisitos, além de ser o demiurgo de Caeiro, a natureza pura e simples revelada por quem sabe ver sem pensamentos e preconceitos, ou em quem está «o nosso espírito apenas como preceptor dessa realidade», tal como ela é, e que no fundo, iniciaticamente, é apenas a intuição directa do neófito (E3 53B-25), Ricardo Reis, mestre do velho paganismo epicurista e estóico, vencendo o amor da vida e o temor da morte (tendo-os...), e Álvaro de Campos, avatar dos tempos modernos e tecnológicos, estilhaçando a estreita e deformada personalidade burguesa e, pela multiplicidade extrema, procurando prometaica, alquímica e perigosamente chegar à Unidade. Três persona que acabam por ser exemplos (ainda que literários, em parte vividos animicamente) dos três graus menores ou requisitos da iniciação na Ordem Templária de Portugal de F. P., o ortónimo, ele próprio, o fino estudioso de linhas e entrelinhas dos ensinamentos: «Para obter o Grau de Neófito é preciso passar as três provas do Pórtico – vencer o Mundo, a Carne e o Diabo. Para obter o Grau de Adepto Menor é mister passar as duas provas do Átrio – vencer o amor à vida como vida e o temor da morte como morte. Para obter o Grau de Mestre do Átrio é mister passar a prova do Altar – vencer o apego à personalidade, a noção de que cada qual é o que é, obter a de que cada qual é o universo inteiro e que estão nele, e são ele todos os outros homens» (E3 53B-25), o que F. P. realiza nos anos finais da sua vida, graus estes explicados também nos termos de iniciação, avanço e completamento ou alcançamento.

Quanto à noção interna de Mestre será muito trabalhada ou interrogada, como se vê no fragmento (E3 53-9) - «A alma da alma é um homem aparte de cada homem e isto é o Mestre, um Anjo da Guarda. A alma desta alma é Deus (ou isto é apenas no génio e inspiração)», perguntas de grande significado na tradição espiritual portuguesa. Noutro texto (E3 53-78), diz que nos primeiros sentidos de interpretação do Mestre, que é o ego íntimo, ele é a alma e, nos mais elevados sentidos, Deus, Cristo e O que não se conhece. De facto, um dos elevados níveis da Grande Obra é a revelação do Mestre, que surge mencionado, por exemplo, nos cinco níveis do Desejado e Encoberto: «o homem, a esperança, o símbolo, o Mestre, o Cristo», a progressão nos quais implica um trabalho iniciático de ascese e conhecimento pelo qual se irá «talhando o corpo espiritual do Rei para que nele, uma vez formado, o Segundo Advento carnalmente se faça» (E3 53A-46), afirmação que está de acordo com a doutrina tradicional tanto do corpo glorioso como dos avatares, as manifestações periódicas da Divindade ou dos grandes Mestres, na Humanidade.

Mas será Jesus Cristo, aquele que depois de desvalorizado ou rejeitado se torna por fim o Mestre, conforme o seu testamento autobiográfico de 1935 no qual se afirma “Cristão gnóstico”, fiel «à Tradição Secreta do Cristianismo, e «iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária Portugal». Não dissera ele na carta a Casais Monteiro, de Janeiro de 1935, que «segundo a nossa afinação espiritual», ou seja pela nossa purificação e capacidade de meditação e contemplação (e aqui está o segredo do Caminho, místico porque unitivo e inefável, incompreensível para os que não se dispuseram a tal "preparação especial"), «poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos», os mestres e as hierarquias celestiais?

 

 

Pedro Teixeira da Mota