Dentro do estudo científico das religiões, o conceito de neo-paganismo tem principalmente um significado religioso (por ex. o culto da wicca, as crenças na bruxaria e na reencarnação, etc.) ou um sentido político (por ex. a ideologia neo-pagã do nacional-fascismo alemão). Um outro aspecto do neo-paganismo moderno é muito menos religioso ou político, e pode ser entendido como o aparecimento dos antigos deuses (e geralmente os deuses do mundo grego ou latino) na arte ou na literatura. Depois do Renascimento, algumas revitalizações notáveis dos antigos deuses surgiram a partir do século XVIII na literatura alemã, e particularmente nas obras de Johann Wolfgang Goethe, de Friedrich Schiller, de Heinrich Heine, e sobretudo na obra de Friedrich Hölderlin para quem os deuses antigos não eram simplesmente representações artísticas, mas sim seres vivos que dominam a vida humana em praticamente todas as situações (por ex. Hyperion 1797/1799). Um segundo regresso dos deuses gregos e romanos, ou uma nova modernização do mundo antigo dentro das artes e da literatura, aconteceu no início do século XX e foi animado, indirectamente, pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Assim, a antiguidade está presente nas obras de artistas como René Magritte, Man Ray, Giorgio de Chirico ou Max Ernst, de escritores como Marguerite Yourcenar, Jean Cocteau, Rainer Maria Rilke ou Stefan George, ou dos compositores Igor Stravinski ou Sergej Prokofiev. Uma das razões mais importantes para esta enorme revitalização dos deuses antigos encontra-se num acontecimento que Nietzsche descreveu através da sua conhecida proclamação da “morte de Deus” que abriu, por sua vez, todas as portas para um estado mental marcado por uma insegurança religiosa, política e ética, ou em geral por uma certa convicção de uma certa insustentabilidade da existência.

Uma das mais brilhantes e fascinantes análises literárias desta situação espiritual que se viveu na Europa do princípio do século XX foi talvez feita por um insignificante guardador de livros. O semi-heterónimo Bernardo Soares escreveu no seu Livro do Desassossego as frases seguintes: “Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. (…) Mas o criticismo frustre dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que a tivéssemos; se nos legou descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos legou a indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentemente, porque viviam numa época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem destruir sem sentir o edifício rachar-se. Nós herdámos a destruição e os seus resultados.” (F. Pessoa, Livro do Desassossego [175], Assírio & Alvim, Lisboa 1998, pp. 187-188).

Muito provavelmente foi esta “impossibilidade de ser cristão” e a falta de “contentamento” que despertou em Fernando Pessoa uma extensa retrospecção para o mundo antigo a partir da qual nasce um neo-paganismo literário absolutamente invulgar, acompanhado muitas vezes de um carácter programático. Neste sentido, Álvaro de Campos escreve nas suas Recordações: “O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um pagão, o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é um pagão por carácter, o António Mora é um pagão por inteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é, por temperamento. Em Caeiro não havia explicação para o paganismo; havia consubstanciação.” (F. Pessoa, Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, Estampa, Lisboa 1997, p. 42). Analisando este esquema, podemos rapidamente afirmar que Alberto Caeiro foi pensado como a peça central neste projecto neo-pagão, em volta do qual circulam os heterónimos enquanto discípulos do mestre, em conformidade com as suas características próprias. Qual era então a função de Alberto Caeiro? Um dos fundamentos mais importantes para o neo-paganismo pessoano consiste no reconhecimento da impossibilidade moderna em regressar – depois de 2000 anos de cristianismo – para um universo habitado por uma pluralidade de deuses. Assim, Pessoa (ou especialmente Reis e Mora) sublinhou várias vezes que um simples retorno aos pés do Olimpo está fora de alcance para um homem moderno cuja mentalidade já não funciona de uma outra maneira do que racional-abstracta. Antes de estabelecer uma nova ligação entre os deuses e os homens, torna-se necessário o regresso da (ou à) essência que possibilita um sistema politeísta. No neo-paganismo de Pessoa, esta essência é representada por Alberto Caeiro, tal como explica Ricardo Reis: “A obra de Caeiro representa a reconstrução integral do paganismo, na sua essência absoluta, tal como nem os gregos nem os romanos, que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer. A obra, porém, e o seu paganismo, não foram pensados nem até sentidos: foram vindos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão.” (F. Pessoa, Ricardo Reis – Prosa, Assírio & Alvim, Lisboa 2003, p. 46). Uma das partes mais importantes e maiores da obra pessoana está intimamente ligada à apresentação e explicação desta essência. Ou seja, trata-se por uma lado do aparecimento “imprevisto” da poesia emocional-concreta de Alberto Caeiro, e por outro do seu “objectivismo absoluto” que os seus discípulos Reis e Mora examinaram através de longos ensaios teóricos. Embora o próprio Alberto Caeiro tenha repetido várias vezes não ter filosofia nenhuma nem religião, a sua poesia surge como a base filosófica e religiosa do neo-paganismo em Pessoa que desenvolve aqui, em termos de história filosófica e religiosa do Ocidente, uma reflexão bastante notável e invulgar. O moderno homem ocidental, cuja mentalidade está marcada pelos 2000 anos de monoteísmo cristão, já não pode admitir a natureza como uma pluralidade, tendo em conta que existe entre recepção visual e entendimento das coisas um pensamento racional. Este pensamento racional obriga o homem moderno a reconhecer a natureza como um “todo” em vez de encarar a mesma como uma multiplicidade interminável de pedras, rios ou árvores. Na lógica pessoana, este esquema racional impede também de reconhecer a natureza, enquanto habitat privilegiado para uma pluralidade infinita de seres divinos. Desta forma, o neo-paganismo tem de começar pelo renascimento da essência pagã, ou seja pela eliminação da racionalidade abstracta e pela rejeição da metafísica ocidental. Apenas esta anulação permite um paralelismo absoluto entre ver e compreender, representado por Caeiro quando afirma: “Creio no mundo como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender... / O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... / Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...” (F. Pessoa, Alberto Caeiro – Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa 2001, p. 24). Esta simultaneidade “anti-filosófica” entre ver e compreender marca o ponto de viragem para o entendimento da natureza como uma pluralidade, sendo esta o pedestal necessário para uma divinização posterior das coisas: “Vi que não há Natureza, / Que Natureza não existe, / Que há montes, vales, planícies, / Que há árvores, flores, ervas, / Que há rios e pedras, / Mas que não há um todo a que isso pertença, / Que um conjunto real e verdadeiro / É uma doença das nossas ideias. / A Natureza é partes sem um todo. / Isto é talvez o tal mistério de que falam.” (Ibid.: p. 84). A sequência “A Natureza é partes sem um todo” é especialmente celebrada por Reis e por Mora como o renascimento do “objectivismo absoluto” em Caeiro, e considerada como a frase culminante para um novo começo da religião politeísta. A argumentação de Reis e Mora torna-se ainda mais clara se sublinharmos a declaração de Caeiro a partir da qual o pensamento significa uma doença de olhos que já não permite ao homem ver as coisas na sua forma plural, ou seja a tendência em ver o universo como um conjunto singular. Assim, Reis interpreta Caeiro da forma seguinte: “Por isso, muito bem disse Caeiro [A Natureza é] partes sem um todo. O Universo, como conjunto, síntese e não soma das coisas, é uma ideia abstracta. (…) O monoteísmo é uma doença das civilizações, um estigma da sua decadência. A nossa civilização monoteísta foi sempre uma civilização doente.” Trata-se de uma referência repetida várias vezes: “(…) aquela frase culminante de O Guardador de Rebanhos, A Natureza é partes sem um todo, onde o objectivismo vai até à sua conclusão fatal e última, a negação de um Todo, que a experiência dos sentidos não autoriza sem a intromissão (…) do pensamento.” (F. Pessoa, Ricardo Reis – Prosa, Assírio & Alvim, Lisboa 2003, p. 74 e 141). Neste sentido, a exegese seguinte de Mora pode parecer quase uma sinopse de Caeiro e Reis: “A religião pagan é polytheista. Ora a natureza é plural. A natureza, naturalmente, não nos surge como conjuncto, mas como «muitas cousas», como pluralidade de cousas. Não podemos affirmar positivamente, sem o auxilio de um raciocínio interveniente, sem a intervenção da intelligencia na experiencia directa, que exista, deveras, um conjuncto chamado Universo, que haja uma unidade, uma cousa que seja uma, designavel por Natureza. A realidade, para nós, surge-nos directamente plural. (…) A pluralidade de deuses é, portanto, o primeiro characteristico distinctivo de uma religião que seja natural.” (F. Pessoa, Obras de António Mora, INCM, Lisboa 2002, pp. 179-180). Por outras palavras, uma religião monoteísta significa metaforicamente também uma “doença dos olhos”. Assim, Reis e Mora, enquanto discípulos de Caeiro, declaram-se abertamente como crentes ortodoxos do panteão dos antigos. Ricardo Reis confessa: “Creio nos Deuses como na verdade e numa salvação. (…) Neptuno é para mim uma personalidade real, Vénus um ente verdadeiro, o Júpiter o pai terrível e existente dos calmos deuses todos.” Ou numa carta ao seu mestre Caeiro: “Sabeis bem como, para mim, Júpiter, Vénus, Apolo e as mais presenças imorredouras que presidem à nossa vida transitória, são realidades e existências concretas.” (F. Pessoa, Ricardo Reis – Prosa, Assírio & Alvim, Lisboa 2003, p. 187 e 167-168), e muitos das suas Odes parecem tábuas votivas nos altares dos antigos deuses. E António Mora compõe, principalmente sob o título O Regresso dos Deuses,extensos estudos sociológicos, históricos, filosóficos, políticos, religiosos ou éticos sobre paganismo, para declarar depois surpreendentemente que “a repaganização do mundo” já começou (F. Pessoa, Obras de António Mora, INCM, Lisboa 2002, p. 217).

Para além dos ortodoxos Reis e Mora, também Fernando Pessoa e Álvaro de Campos podem ser entendidos como pagãos, embora o paganismo deles tenha aparecido bastante mais heterodoxo. Todavia, Campos declara-se “pagão por revolta, isto é, por temperamento” sem se preocupar muito com qualquer crença religiosa ou deuses clássicos embora tenha celebrado modernamente o regresso da antiguidade nas turbulências e no ruído do progresso na era industrial: “Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, / Porque o presente é todo o passado e todo o futuro / E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas / Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, / E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, / Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Esquilo do século cem, / Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, / Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferrando, / Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma. (…) Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares! / Novos entusiasmos de estatura do Momento!” (F. Pessoa, Álvaro de Campos – Livro de Versos, Estampa, Lisboa 1997, p. 87-88). Fernando Pessoa, que pode ser entendido neste projecto neo-pagão como heterónimo, desenvolve uma forma própria de paganismo (Paganismo Superior) com fortes referências ao neo-platonismo e ao antigo imperador romano Julião Apóstata que tentou restaurar no século IV d.C., numa derradeira tentativa, os já destruídos templos dos antigos deuses. Fernando Pessoa teve um profundo conhecimento da vida e da obra deste imperador, sentindo-se até uma reencarnação de Julião: “Outr’ora / No crepusculo do Imperio, / Eu, Julião o Apostata, mandei / Os templos dos meus Deuses reerguer. / Não é era minha a Hora. / Tua era, ó Christo, e (…).” (F. Pessoa, Pessoa por Conhecer II, Estampa, Lisboa 1990, p. 82).   

Em suma, Fernando Pessoa ultrapassa dentro do seu complexo programa neo-pagão evidentemente os limites do poeta, já pisando o terreno da sociologia, da política, da ciência das religiões ou da filosofia. Porém, Pessoa teoriza neste programa também dois aspectos que trazem claramente algumas novidades em comparação à religião dos antigos gregos ou romanos. Por um lado, encontramos em Pessoa algumas indicações para uma certa “interiorização” do antigo politeísmo. Ou seja, Pessoa fala indirectamente da interiorização de uma pluralidade exterior que podia ser entendida como uma chave para a percepção teórica da sua heteronímia. Por outro lado, Pessoa entende Jesus como aquele “deus que faltava” introduzindo-o modernamente no seu panteão, enquanto muitos antigos, tal como o filósofo grego Celsus, consideraram esta ideia absurda, vendo em Jesus simplesmente um cadáver pendurado numa cruz. Especialmente o Paganismo Superior de Fernando Pessoa aparece como uma espécie de paganismo para os tempos modernos, ou seja uma moderna pluralidade religiosa: “(…) todos os protestantismos, todos os credos orientaes, todos os paganismos mortos e vivos – fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior. Não queiramos que fóra de nós fique um único Deus. Absorvemos os Deuses todos!” (BN/E3, 55F-41).

 

 

BIBL.: Dix, S., Heteronymie und Neopaganismus bei Fernando Pessoa, Würzburg 2005; Dix, S., “Pessoa e Nietzsche: deuses gregos, pluralidade moderna e pensamento europeu no princípio do século XX”, in: Clio V.II, Lisboa 2004; Rebelo, L. S., “Alberto Caeiro e o Neopaganismo”, in: Poemas Completos de Alberto Caeiro, Lisboa 1994.

 

 

Steffen Dix