O ortónimo é o nome de autor que corresponde ao seu nome próprio. É, no texto pessoano, sinónimo exacto de autónimo.Assim, tal como Pessoa o explica na «Tábua Bibliográfica» de 1928, tudo o que escreve «pertence a duas categorias de obras, a que poderemos chamar ortónimas e heterónimas» (Crítica, p. 404). No entanto, as obras ortónimas contêm diferenças de orientação temática em grau e complexidade superiores às obras heterónimas. É isso que mais tarde explica a Casais Monteiro: na carta de 13 de Janeiro de 1935, citando «as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo» (Correspondência, II, p. 338); e, numa carta seguinte de 20 de Janeiro de 1935, dando como exemplo a sua «faceta subsidiária representada pela Mensagem» (Correspondência, II, p. 349). Estas variações, aliás, dada a maior extensão das «obras ortónimas» e a caracterizada mutabilidade do seu autor, não poderiam deixar de acontecer.  

Um dos textos em que a relação ortónimo-heterónimos é apresentada directamente, e de forma ficcionada, são as Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro, que integra o ortónimo e os heterónimos no mesmo plano. Do mesmo modo, é conhecido um fragmento em que esta situação de integração ficcional se exprime claramente: «Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quantos mais haja havidos ou por haver» (Páginas Íntimas, p. 94). O ortónimo não é, portanto, qualitativamente diferente ou «mais digno de crédito» do que os heterónimos, pelo que não é possível fazer a equivalência simples ortónimo=Fernando Pessoa. Nessa descoincidência reside a maior dificuldade e a maior riqueza da literatura de Pessoa – como se pode exemplificar por este fragmento:  «Que importa que Caeiro seja de mim, se assim é Caeiro? / Assim, operando sobre Reis, que ainda não havia escrito alguma coisa, fez nascer nele uma forma própria e uma pessoa estética. Assim operando sobre mim mesmo, me livrou de sombras e farrapos, me deu mais inspiração à inspiração e mais alma à alma. Depois disto, assim prodigiosamente conseguido, quem perguntará se Caeiro existiu?» (Páginas Íntimas, p. 110). É assim que os heterónimos existem exactamente da mesma maneira que o ortónimo.

De notar que não é possível nunca esquecer que a heteronímia tem uma história, que é também a da sua autoconsciência poética. Assim, até 1928 e à “Tábua Bibliográfica” publicada na presença, o ortónimo é o nome do autor, por oposição aos heterónimos, que são um “drama em gente” escrito pelo autor enquanto uma espécie de dramaturgo. Depois de 1928 e do recomeço do Livro do Desassossego, finalmente associado ao nome de Bernardo Soares, a distinção que é operada antes com toda a clareza vai sendo turvada por um inquietante processo de apagamento. O ortónimo passa a ser uma figura amiga dos heterónimos nas Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro, que são escritas por volta de 1930; Bernardo Soares não se comporta como um heterónimo mas como uma personagem de autonarrador numa ficção; e a Carta sobre a Génese dos Heterónimos manifesta a última indiferenciação entre o estatuto das figuras imaginadas e a difícil prevalência do autor real. Pelo que este é o modo final a que a sua história conduz.

É claro que há aqui sempre, pervasiva, uma distinção necessária e evidente: entre o “eu” da Carta sobre a Génese dos Heterónimos – que é o “eu” do autor real, sem mais – e o “eu” que assume e assiste aos textos literários múltiplos e de diversa índole assinados pelo nome de Fernando Pessoa. Estes dois “eu” não são o mesmo, um é histórico e o outro é literário. Um é mortal e o outro imortal.

 

 

Fernando Cabral Martins