O Paulismo foi um dos ismos literários de transição, no âmbito do Modernismo Português, que permitiu, sobretudo a Fernando Pessoa e a Mário de Sá-Carneiro mas, também a outros poetas de Orpheu, estabelecer uma ponte entre a herança neo-simbolista, com uma presença muito marcada ainda no início do século XX em Portugal, e o nascimento de um entusiasmo, por parte de toda esta geração, pelas novas tendências das vanguardas europeias. Derivando etimologicamente da primeira palavra do poema Impressões do Crepúsculo - «Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro …», poema que, aliás, rapidamente passou a ser conhecido por Pauis, esta atitude literária foi, simultaneamente, um reflexo nítido das preocupações estilísticas e temáticas do simbolismo francês e do de Pessanha, muito em particular, se bem que já se apresentando como um enorme progresso face a todo esse simbolismo francófono (francês e belga) ou mesmo português. Segundo Almada Negreiros, este termo paulismo, ou mesmo a própria metáfora de pauis utilizada por Fernando Pessoa no seu poema, teria sido inspirado em Paludes de André Gide, reforçando deste modo a natureza e a herança francesa neo-simbolista deste ismo.

Se quisessemos tentar datar o nascimento do paulismo, como a primeira corrente literária do modernismo português, poderíamos dizer que, oficialmente, por assim dizer, ele nasce em 1913, data do poema Pauis, se bem que este poema só tenha sido publicado em 1914, na revista A Renascença. Mas, na verdade, não é assim tão facilmente datável o aparecimento deste ismo, já que a atitude literária, sobretudo de Fernando Pessoa ortónimo e a da sua alma gémea Mário de Sá-Carneiro, foi sempre profundamente neo-simbolista e decadentista, nunca apagando completamente a influência e o modo de ser poeta em permanente spleen que herdam, muito em particular de Mallarmé, Baudelaire e Pessanha. No entanto, há um momento realmente datável entre 1913-14 em que Pessoa e Sá-Carneiro sonham com a criação deste ismo, fazendo sucessivos projectos para a sua divulgação, nomeadamente, quanto à criação de uma revista paúlica, semente que, como sabemos, só irá dar fruto em 1915, com a publicação da revista Orpheu.

De facto, entre 1913-14, Pessoa e Sá-Carneiro partilham, por carta, este entusiasmo da criação do paulismo. Sabemos que Pessoa envia o seu poema Impressões do Crepúsculo a Sá-Carneiro, poema que o nosso poeta parisiense irá considerar como uma coisa maravilhosa, uma das coisas mais geniais que de Pessoa ele, então, conhecia (in carta datada de 6 Maio 1913). Sabemos também que outros poetas do grupo que, então, se começava a constituir como o grupo de Orpheu, tais como Raul Leal, Cortes-Rodrigues, Ângelo de Lima, entre muitos outros, se deixaram também entusiasmar, sobretudo por uma linguagem poética que deixava reflectir bem um estado de alma absolutamente taciturno, enigmático, vago, subtil, estagnado e crepuscular. Princípios que são, aliás, os principais deste sentimento paúlico, presentes de modo lapidar e emblemático nos dois poemas de Pessoa, Impressões do Crepúsculo e Hora Absurda (este último publicado, pela primeira vez, na revista Exílio, em 1916) mas que para além dos princípios estéticos a imitar ou a renovar eram, sobretudo, para o poeta da Mensagem, como aliás, para todos os outros desta geração, o reflexo em bruma de um estado de alma nacional, absolutamente estagnado na sua mórbida decadência de um país sem luz, sem acção, mergulhado na triste hipocrisia inculta de lepidópteros burgueses (nas palavras de Sá-Carneiro), ou na insignifância de vida de inúmeras D. Restitutas, D. Procópias, D. Bibliotecas e tantas outras, nas magníficas palavras de Raúl Brandão (in Húmus, 1916).

Aliás, este estado de alma finissecular, herda Pessoa e toda a sua geração, numa linhagem ainda mais directa, dos poetas em torno da revista A Águia, nomeadamente de Teixeira de Pascoaes, revista onde Pessoa (ortónimo) se estreia como ensaísta, em 1912, com o longo estudo intitulado, A Nova Poesia Portuguesa, onde já deixa pressentir, quer as suas raízes ainda um pouco nefelibatas, profundamente simbolistas e saudosistas, quer a sua vontade de modificar os pilares de uma nova poesia que se desejava vaga, subtil e complexa. Como defendeu, logo nesse ensaio, o poeta moderno deveria tentar conciliar a «materialização do espírito» com a «espiritualização da natureza» (in Fernando Pessoa – Crítica – Ensaios, Artigos e Entrevistas, Ed. Fernando Cabral Martins, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999), numa harmonia de contrários procurada entre uma poesia simultaneamente objectiva e subjectiva, uma poesia da alma e da natureza. Estariam lançadas já aqui, as bases do paulismo, tal como Pessoa o teorizou e praticou. Como o seu poema Impressões do Crepúsculo muito bem o exemplifica, o paulismo utiliza diversos recursos formais e estilísticos, tais como a utilização da forma verbal reflexa («oco de ter-se»; «mar sobre o não-conter-se»), a sucessão de imagens/metáforas que desenvolvem estados de alma crepusculares e estagnados de modo vago e complexo, como aliás, os simbolistas já o faziam («o Azul esquecido em estagnado», «Fluído de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se…»), para além de outros recursos paralelos, tais como as primeiras exercitações de estilo heteronímico que Pessoa, já então ensaiava, quanto a um interseccionismo pessoal, entre um eu e um outro, bem visíveis em versos como «o Mistério sabe-me a eu ser outro».

Nesta sucessão, por vezes caótica ou quase aleatória de imagens, que pretendem ser uma fusão entre paisagens e estados de alma, nota-se já, se bem que de modo talvez ainda inconsciente, os princípios do cubismo que, desde pelo menos 1909, já tinha em Paris as suas primeiras manifestações. De facto, por vezes, temos a sensação que a construção de poemas como Impressões do Crepúsculo obedece já a um processo analógico equivalente às colagens utilizadas pelos cubistas, se bem que saibamos que em 1913, era ainda cedo demais para, em Portugal, se ouvir falar ou conhecer bem este ismo de vanguarda. Sabemos que, ao contrário de Sá-Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso ou Santa-Rita Pintor, Pessoa não estava, nem nunca viria a estar, em Paris e, que de cubismo só um ano mais tarde, ouvirá Sá-Carneiro falar por carta, de modo aliás ainda muito confuso e pouco entusiasmante. No entanto, e se realmente houve em Portugal um cubismo literário, há indícios dele em alguns dos poemas mais acentuadamente paúlicos que estes órficos nos deixaram.

Para além de Impressões do Crepúsculo de Pessoa, em Mário de Sá-Carneiro, poemas como por exemplo, Além e Bailado deixam sugeridos alguns pontos de contágio entre o poeta profundamente paúlico que ele é, e o poeta enebriado pelo álcool das vanguardas parisienses que já se deixa pressentir, nomeadamente, pelo cubismo que, a pouco e pouco tenta entender e exercitar, não tanto pela influência directa da pintura de Picasso, de Braque ou de Gris, mas, sobretudo, por mediação literária da poesia de Apollinaire.

Este contágio entre ismos vai ser aliás, uma das características principais, não só das vanguardas europeias do início do século, como muito em particular, do modernismo português. De facto, a rapidez quase vertiginista com que as novas correntes surgem, pouco tempo deixa para um amadurecimento ou consolidação de cada um deles. Quando Pessoa e Sá-Carneiro parecem já aptos a avançar no seu projecto paúlico, os primeiros ecos do cubismo e do interseccionismo começam a fazer-se ouvir e, a verdade é que, num espaço sensivelmente de dois anos, o tempo necessário para que esteja formado o grupo de Orpheu e os dois números da revista publicados, existem já em Portugal, à imagem e semelhança de outros países europeus, cerca de seis a sete ismos, entre os estritamente nacionais e os igualmente estrangeiros – paulismo, interseccionismo, cubismo, futurismo, sensacionismo, simultaneísmo, vertiginismo. No entanto, também é verdade que o espírito da vanguarda não dá tempo a grandes gestações: ela é por definição, rápida no seu passo, efémera na sua duração.

 

Apesar desta permanente contaminação ou intersecção de ismos, há de facto alguns textos, em poesia e em prosa, destes órficos que revelam bem uma linguagem poética, paralela a um modo de ser e de sentir, profundamente paúlica. Assim, e para além dos exemplos já assinalados, poemas de Sá-Carneiro como, Álcool (1913), Além-Tédio (1913), Rodopio (1913) Salomé (1913), Apoteose (1914) Distante Melodia …(1914) e Taciturno (1914), entre muitos outros, denotam bem uma escrita simbolista-decadentista que se deixa inserir nesse projecto do paulismo sonhado a meias com Fernando Pessoa. Versos como «- Ó pântanos de mim - jardim estagnado…» (de Apoteose, 1914) ou «Rangem, de vago, neblinas; / Fulcram-se poços e minas, / Meandros, pauis, ravinas / Que não ouso percorrer…» (de Rodopio, 1913) denotam bem a atmosfera paúlica partilhada com a poética pessoana desta altura. Também alguns dos  contos de Céu em Fogo (1915) de Sá-Carneiro e a sua novela A Confissão de Lúcio (1913) trazem uma mistura de registos literários e de modos de ser moderno, absolutamente diversificados, que se deixam ler numa encruzilhada de ismos que vão desde um tom neo-romântico, passando pelos fortes indícios de um simbolismo- paúlico, até às vozes mais arrojadas da vanguarda cubista e futurista.

Paralelamente, em Fernando Pessoa ortónimo, o drama estático O Marinheiro, escrito em 1913, mas que só publica, pela primeira vez, na revista Orpheu em 1915, é também um bom exemplo duma atitude paúlica que deixa transparecer, agora de forma mais dramática, se bem que não menos lírica, a influência do teatro simbolista do belga Maeterlinck, assim como todo um estado de alma não defenível, hesitante e dilacerado entre a realidade, o sonho e a loucura, em que o poeta-dramaturgo assiste passivamente às imagens que passam, já não tanto pela retina dos seus olhos, como em Pessanha, mas pela sua alma e pelo seu pensamento, drama interior que desdobra em três vozes de veladoras que sugerem sucessivos planos de sensações, inquietações da complexidade de sentir. Se bem que Pessoa se tenha referido a este seu texto, num dos muitos esquemas de tentativas, muitas vezes goradas, de arrumação de ismos, como um bom exemplo daquilo a que ele chamou de sensacionismo integral ou fusionista, lado a lado com a novela A Confissão de Lúcio de Mário de Sá-Carneiro, a verdade é que estes dois textos, apesar das suas acentuadas diferenças temáticas, estilísticas, para além das de género, aproximam-se também do paulismo pela atmosfera, encenação absolutamente subtil, vaga e complexa que recriam, aspectos que, como já dissemos, definiriam o mais puro ensejo paúlico. De facto, todo o cenário de sombras, de fantasmas, de mistério, de estranho e de maravilhoso que é encenado pelos dois autores, um sob a forma de teatro, outro de novela é, na sua complexidade ísmica e de sensações, susceptível de ser entendido, quer nas fronteiras movediças de um paulismo que se começa a delinear em 1913 (data destes dois textos), quer de um hibridismo de outros ismos que, de modo quase profético, já consentem, nomeadamente, o interseccionismo e o sensacionismo que, logo de imediato, começa a irromper da amizade e das empatias literárias destes dois autores.

Num sentido ainda mais lato, e segundo o mesmo esquema das três dimensões do sensacionismo de Fernando Pessoa, um outro texto que exemplificaria bem o paulismo, seria A Cena do Ódio de Almada Negreiros. Estranho exemplo, pensamos, se atentarmos na violência deste tipo de texto, profundamente diferente dos exemplos anteriores. De facto, A Cena do Ódio de Almada Negreiros, datada de 1915 e prevista a sua publicação para um terceiro número da revista Orpheu, em 1916 que, como sabemos, nunca se chegou a concretizar, nada parece ter, numa primeira aproximação, quer ao texto, quer sobretudo ao seu autor, de registos brumosos, de pântanos e de choupos de alma ou de fanfarras de ópios, para usar uma expressão do poema Impressões do Crepúsculo, que o situe na esfera do paulismo. No entanto, esta enorme ode, só semelhante em alguns aspectos às odes de Álvaro de Campos (a quem, aliás, é dedicada), segue alguns dos recursos, mais estilísticos do que temáticos, do programa paúlico: a forma reflexa do verbo, o jogo entre as maiúsculas e as minúsculas, a intersecção entre o Eu e o Me/ Mim, como em Pessoa e Sá-Carneiro, para além de um narcisismo decadente, reflectido em inúmeras metáforas, tais como «Sou trono de Abandono, mal fadado, / nas iras dos bárbaros, meus Avós.» ou «Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio, / órfão da Virgem do meu sentir.» que, lembram sem esforço, algumas das imagens do poeta dos Indícios de Oiro. No entanto, e conhecido o perfil inconformista de Almada, o rebelde mais novo de Orpheu, este texto alarga o paulismo de Pessoa e de Sá-Carneiro, mais estético, mais contido nos limiares de uma interioridade metafísica de estados de alma crepusculares, do que propriamente socialmente interventivo, para uma dimensão não apenas de efeito meramente poético mas, também de ruptura e de um ódioincontido para com uma sociedade, uma cultura estagnadas, emblematicamente representada e parodizada, por Almada, na figura de Júlio Dantas. Neste aspecto, A Cena do Ódio já ultrapassa largamente os objectivos de um programa paúlico, aproximando-se rapidamente, da força panfletária e da luta contra todo o passadismo que os futuristas já, então, reclamavam.

De facto, esta aventura ísmica apenas se inicia com o paulismo, estando por isso, por esta altura, entre 1913-14, longe de estar pacificamente resolvida. No entanto, este patamar ísmico, foi decisivo para que estes órficos, sobretudo Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, se lançassem e começassem a experimentar os seus exercícios retóricos, as suas diversas paisagens interiores, numa indefinição de formas e de modos de ser moderno ainda muito pautadas por heranças sofridas do hermetismo de Mallarmé, da musicalidade velada de Verlaine, da dilaceração entre spleen e idéal de Baudelaire, do princípio de uma alteridade pressentida no grito de Rimbaud - «Je est un autre» -, e do modo absolutamente invulgar com que a poesia de Camilo Pessanha também já tinha conseguido absorver e somatizar todos estes modos diferentes de ser um poeta simbolista-decadentista. No patamar de outras fronteiras internas, a voz saudosista de Pascoaes e de António Nobre, para além da metafísica também taciturna de Antero de Quental e ainda do desejo absurdo de sofrer já sentido por uma poética igualmente muito pouco solar de Cesário Verde, ajudavam a suportar este clima de uma indefinição, muito ao gosto paúlico, sentido pelos nossos modernistas que, por isso mesmo, se sentiram absolutamente reflectidos, nas águas barrentas e estagnadas de versos como Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro …

 

BIBL.: Fernando Guimarães, Simbolismo, Modernismo & Vanguardas, Porto, Lello & Irmãos Ed., 1992; Júdice, Nuno, A Era do «Orpheu», Lisboa, Editorial Teorema, 1986.

 

Paula Cristina Costa