Não é muito vasta a produção poética pessoana em francês. Apesar de ter sido iniciado nesta língua, ao que parece pela mãe, e de ter frequentado a disciplina de Francês na High School de Durban, com muito bom aproveitamento (tendo obtido mesmo um prémio), Pessoa não tinha uma fluência  e um trato íntimo com esta língua de cultura. Isto é visível, sobretudo, nos textos em prosa, quer nas cartas de negócios que, muitas vezes, tinha de escrever no exercício da sua actividade profissional, quer nas composições de carácter literário (como, por exemplo, as atribuídas a Jean Seul de Méluret), onde, a par de uma tentativa de observância das regras gramaticais, se nota um imperfeito uso do léxico e da linguagem corrente. Contudo, H. D. Jennings (1984: 134-135) chama a atenção para o profícuo ensino que o poeta teve, apresentando como prova disso um Rondeau, sátira dedicada ao professor de francês Hardress O’Grady, na High School (Durban), assinada «Ardrèce Augrédi» e os restantes «elegantes» poemas conhecidos. Pelo seu lado, Teresa Rita Lopes dá a conhecer alguns versos constantes de um caderno dos tempos da África do Sul, com o título Quelques vers, que classifica como «muito incipientes». Destaca, porém, um ou outro «que têm já que ver com os grandes temas pessoanos, como, por exemplo: “Ne chantez pas ! / Ne chantez plus! / Votre voix enchanteresse / Me laisse / Las / Ému / Autrefois, dans une autre vie, / J’ai eu peut-être / Une fenêtre / Ouverte sur la nostalgie»; ou um outro que anuncia Caeiro e que termina com o verso «Dieu est toutes les fleurs» (Pessoa por Conhecer, I, 106-107). Ainda em 1907-1908, data de muitos rascunhos e poemas lacunares, parece que o jovem Pessoa teria a veleidade ou alimentaria a ideia de poder publicar-se também em francês. Mas foi talvez por ter consciência das suas limitações que usou com parcimónia o francês na sua poesia, embora o uso desta língua estivesse literariamente na moda. Foi cedendo ao gosto, por assim dizer, decadente, que Pessoa publicou na Contemporânea 7 (1923), Trois Chansons Mortes, conjunto de três poemas cujo tema é o amor. Do facto se lamentaria mais tarde, numa carta de 9-11-1931 a Moitinho de Almeida que lhe pedira opinião para um livro de versos (portugueses e franceses), a publicar. Aí, escreve: «Nunca se deve escrever – entendendo-se por “escrever” o “escrever literariamente” – em uma língua que se não possua de dentro, isto é, com os pensamentos formados organicamente nela. // Eu mesmo, como sabe, sei alguma cousa de francês, mas não escreveria um livro nessa língua, a não ser sob ameaça de fuzilamento sumário ou cousa parecida. Publiquei três poemas em francês – por sombra de brincadeira – em um número da Contemporânea, e um amigo meu, profundo conhecedor do francês, pediu-me para não repetir a proeza. Os meus poemas eram decentemente em francês, mas, apesar disso, simplesmente não existiam…» (Correspondência, II, 244). É possível que o amigo referido fosse Alberto Teles Machado (de quem a Contemporânea insere vários textos em francês), a quem Pessoa convidara para colaborar na revista Athena com o pedido expresso de o fazer com literatura «nacional»: «Francês não: é absurdo inserir francês, ou outra qualquer língua estrangeira, em revista portuguesa» (Correspondência, II, 50). Apesar dos reparos, a verdade é que Pessoa continuará a expressar-se poeticamente em francês até bem próximo da sua morte. Data de 22-11-1935, o poema que começa por «Le sourire de tes yeux  bleus, / Ma blonde», dedicado a uma mulher a quem o sujeito poético confessa, no final,: «Mais qu’y faire? Je t’aime bien/ De mon amour toujours lointain./ Laisse-moi te le dire en vain, / Ma blonde» (Obra Poética e em Prosa, I, 509). H. D. Jennings (1984: 133) quis ver neste poema uma homenagem à loira cunhada inglesa, Eva Rosa… De qualquer modo, é bom lembrar que uma irmã (loira?) da sua outra cunhada (Eileen, casada com João Nogueira Rosa), de nome Madge Anderson, esteve em Portugal e se correspondeu durante algum tempo com o poeta. Uma sua missiva mostra uma relação de proximidade, com o tratamento carinhoso de «Fernando my Dear» (E3 1152-108v.). O poema remete-nos para um outro (de 28-4-1935), também publicado por Teresa Rita Lopes, no qual o sujeito desabafa: «Oh, elle / Celle/ Qui est si belle / Est toujours la femme d’autrui» (Pessoa por Conhecer,  I, 107). O que é significativo, no entanto, é que os poemas em francês, sobretudo os dos últimos anos, tenham, de um modo geral, um conteúdo amoroso manifesto, com referência frequente à figura feminina. A este propósito, considera aquela investigadora que o francês surge a Pessoa, «como uma forma de balbuciar a ternura – o que, para ele, lhe é mais fácil numa língua que lhe seja, de facto, estrangeira» (ibidem). É assim que, salienta ainda, um dos últimos poemas que escreve em francês e que começa «Maman / Maman, maman. / Ton petit enfant / Devenu grand / N’en est que plus triste» (27-4-1935), «soa ao choro de um menino perdido da mãe na floresta da vida» (ibidem). É certamente a pensar neste poema que Patrick Quillier (responsável pela tradução da poesia pessoana para francês e pela publicação de um conjunto apreciável de poemas originais nesta língua – «Bibliothèque de la Pléiade», Gallimard, 2001) se refere a uma nostalgia, a uma espécie de «regressão» à infância, visível nas composições dos anos trinta, onde parece ser um contemporâneo do Chevalier de Pas que aí se exprime. Esta língua da infância, à beira da «gaguez» e da «afasia», na qual não pode atingir a maturidade expressiva, é, portanto, o francês. Quillier sublinha que a falta de domínio linguístico em francês é responsável pela evidente fraqueza de alguns poemas, colocados, de resto, «aux frontières de la littérature». Encontramos, contudo, no acervo publicado pela Gallimard, poemas em diferentes estádios de elaboração: esboços e poemas lacunares, mais abundantes no período de 1907-1908, onde os temas se aproximam dos que surgem na poesia em português ou inglês da mesma época (dor, morte, absurdo,  loucura); poemas completos e mais cuidados, nos anos de 1913-1915, como é o caso de «Nous étions trois… Nous étions trois…», Rue Transversale, «Aux volets clos de votre rêve épanoui»; poemas do final da vida, mais escorreitos, sem dúvida, na sua simplicidade: «Dans l’abîme d’un rêve fait / D’inquiétude et de tristesse / Mon coeur inutile et distrait  / A survécu à tes caressses»; ou poemas que valem por um ou outro verso, à altura do Pessoa em português – «Qu’est-il arrivé d’ombre aux limites des sens» de um poema de 7-10-1915 que começa assim: «Il fait douleur. Mon coeur se serre comme un noeud». 

 

BIBL.: H. D. Jennings, Os Dois Exílios, Porto, Centro de Estudos Pessoanos, 1984; Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, I, II e III, ed. António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão, 1986

 

Manuela Parreira da Silva