Publicado na Presença (n.º  39, Julho de 1933), datado de 15 de Janeiro de 1928, é o poema emblemático de Álvaro de Campos, senão de Pessoa: do ponto de vista da popularidade ou do ponto de vista do escrutínio especializado, não deve haver versão de Pessoa que o dispense ou, quando menos, o desvalorize. «Todo o Álvaro de Campos nele se concentra» , escreveu Eduardo Lourenço (Pessoa Revisitado, p. 191). Na imensa bibliografia, há mesmo pelo menos um livro inteiramente consagrado ao poema — e que é um livro inteiramente consagrado a «toda» a poesia de Pessoa: Carlos Filipe Moisés, em O Poemas e as Máscaras, tenta demonstrar que a Tabacaria é «uma síntese da problemática pessoana em geral» (p. 12), que ali se pode apreender «um modelo estrutural básico, recorrente em toda a poesia pessoana» (p. 14), sendo «ao mesmo tempo, um centro receptor  e irradiador das linhas de força que percorrem a obra de Pessoa» (p. 16).

As noções de «síntese», «cume» ou «ponto culminante» tendem a ser solidárias de noções não menos problemáticas de «percurso» ou «trajectória», «formação» ou «completude»: há nelas implicada, além da noção temporal, a teleológica, com a consequente ilusão retrospectiva da marcha no sentido do cume, da expressão mais alta como revelação da ordem que sustenta o todo. Por isso, para Eduardo Lourenço como para Carlos Filipe Moisés, a Tabacaria não é mero paradigma da poética pessoana, o que quer que isso signifique: não é substituível sem perda de alguma ideia de processo. A valorização do poema releva de um laço mais ou menos explícito com a ideia de «maturação», que atribui ao heterónimo espessura biográfica e até envolvimento — ainda que ficcional — na biografia — ainda que intelectual — de Pessoa. Eduardo Lourenço marca o ano de 1926, o de «Se te queres matar, por que não te queres matar …», nele vendo o «eco do acontecimento único» da morte da mãe, e assim traçando certa fronteira definida pela «orfandade metafísica», pela «imagem materna definitivamente perdida», que também encontrará no segundo Lisbon Revisited, e daí se espalhando: «A verdade — escreve — é que todos os poemas a partir dessa data têm um lado de sobrevivência e por vezes de agonia de si mesma cansada. Deles emerge como resumo mítico de Álvaro de Campos, poeta da universal Ilusão e por isso mesmo dilacerantemente amada e interrogada, acaso o mais grandioso e memorável poema de Pessoa, a Tabacaria.» (p. 191.) Eduardo Lourenço chega então a interpretar além da singularidade do poema, descortinando nele a própria lógica do ensemble heteronímico: «Na plenitude da sua trajectória vemos melhor como e porquê no drama vivo de Pessoa, Álvaro de Campos é o grande discípulo de Caeiro.» (p. 193.) Aqui interessa menos a razão apontada do que a estrutura do argumento que remete a interpretação do sorriso do Dono da Tabacaria ao «âmago da visão de Pessoa» (p. 194). No lance interpretativo, a espessura de Campos desvaneceu-se: confunde-se com Pessoa?

É inegável que, num plano muito imediato, a Tabacaria presta-se razoavelmente a repertório de tópicos da heteronímia e da tradição que gerou: o sonho e a realidade, o nada e o absurdo, o eu fragmentado ou múltiplo, o sentido e o tempo, a felicidade e a derrota… Porém, de um modo ou de outro, a fortuna da Tabacaria envolve necessariamente a crise da heteronímia no sentido em que a sua instituição crítica como poema-súmula ou poema-síntese não se sustenta senão pela afirmação, expressa ou encoberta, tanto da unidade fundamental da voz de Pessoa — em que cada heterónimo, e Campos não seria excepção, se arrisca a figurar como acidente — como da singularidade irredutível de uma irredutível trajectória-Campos. Ou seja, como escreveu Fernando Cabral Martins, Álvaro de Campos «não é um heterónimo, mas a heteronímia» (p. 22). Mas nada disto teria especial importância se não fosse essa a tensão própria que define a singularidade do poema. De facto, em certo sentido, a Tabacaria é um poema que não chegou a ser escrito: no preciso sentido da lógica que nele introduz o elemento definidor da trajectória-Campos.

Entre o incipit de Lisbon Revisited (1923) — «Não: não quero nada» —, o «Nada me prende a nada» de Lisbon Revisited (1926), e o «Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada» da Tabacaria, há algum trajecto que se possa definir como progresso? O «eu» dividido aparece agora situado no espaço pequeno e modesto, um quarto entre «um dos milhões do mundo»: espaço da contingência, solidário de certo rol conhecido: a janela, a rua, a tabacaria, a tabuleta, o Dono da Tabacaria, a menina que come chocolates, a filha da lavadeira, o Esteves. «Realidade plausível», precária e quotidiana, o poema já se dispõe contra a metafísica pela insinuação do plano do corruptível e do contingente, através da descrição duma situação e do esboço duma pequena história: é o romanesco. O que distingue a Tabacaria dos dois Lisbon Revisited é desde logo essa inserção do romanesco: o eu, que não é nada ou não quer nada ou não se prende a nada, surge ali no quadro dum cenário onde ocupa lugar a um tempo poético e prosaico, gerador de descrições simbólicas e espectador do pequeno imprevisto. Nisso, de resto, o primeiro parêntesis, cumpre acção decisiva: não imediatamente pela associação entre chocolate e metafísica, decerto significativa, mas pelo súbito da interrupção, que é o modo como a pequena irrompe no cenário e perturba o discurso do «eu» que não é nada sobre si mesmo e o universo. No entanto, para lá da diferença entre ser tudo ou ser nada, entre fracassar ou vencer, entre sonho e realidade, o imprevisto da menina que come os chocolates com verdade ainda consegue ser assimilado pelo recurso do símile que repõe a continuidade do discurso: ainda no interior do parêntesis, o «eu» que não é nada, porque «pensa», deita tudo fora, o chocolate junto com o estanho, a vida junto com o chocolate. Do chocolate, que é no poema a primeira emergência do prazer sem propósito (a outra será o cigarro), fica um resto, o papel de estanho, vestígio ou resíduo de onde emana a possibilidade de fazer da menina uma espécie de recapitulação da ceifeira. Ou seja, o «eu» que não é nada entra no terreno da poética, na dupla acepção de composição e memória. Não surpreende, então, que os versos imediatamente seguintes se salientem aos olhos do menos experimentado poetista, por definição sempre ávido daqueles momentos em que o poema «fala» de si mesmo: «Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei / A caligrafia rápida destes versos». Pouco adiante: «E vou escrever esta história para provar que sou sublime.» E quase no final, enfim: «Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) / E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. / Semiergo-me enérgico, convencido, humano, / E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.» O cenário completa-se, então, com o romanesco orientando-se para a referência à própria escrita do poema: eis o imprevisto do homem que entra na tabacaria, que se enlaça com a realidade plausível», que cai sobre o «eu» que não é nada, o afecta e logo por sua vez o conduz à intenção de escrever os versos que «dizem o contrário». Uma sucessão de laços, portanto, que, não obstante de diferente natureza, ligam a contingência da entrada do homem na tabacaria à (necessidade?) da entrada em cena da poética do fingimento. Aqui surge a acção a que se propõe o «eu» que não quer ser nada: tencionar escrever «estes versos que dizem o contrário». No «tencionar», de resto, reside boa parte do problema. Se a poética do fingimento oferece a possibilidade técnica de «dizer o contrário»  — o que implica a reunião «destes versos» ao homogéneo pessoano e, em particular, o resgate do poema à contingência de onde emerge —, a delimitação precisa do «tencionar» respeita a quê? O «eu» que não é nada resolve-se àquela precisa intenção porque, não sendo nada nem podendo querer ser nada, não pode senão decidir isso mesmo — ou diferentemente porque nada lhe resta senão a caligrafia dos versos, os quais necessariamente dirão «o contrário»? Por outras palavras, a delimitação do «tencionar» é imposta por alguma unidade da poética pessoana, a sobrepor-se a qualquer específica caligrafia de versos, ou pela singular trajectória-Campos, a resistir a qualquer poética bem sucedida no resgate do poema ao contingente?

O ponto interessante não está em não ter resposta esta pergunta: isso é de pouca novidade para o leitor experimentado. Está antes em que a resposta apenas poderia ser oferecida por estes versos e estes versos não chegam a ser escritos. Por outras palavras, a resposta à pergunta pressupõe a unidade do poema, a eficácia da referência do poema a si mesmo, e ambas estão arruinadas pelo paradoxo da auto-referência: estes versos, precisamente porque são estes, já escritos, já presentes, são também versos que a própria inscrição difere enquanto versos de inscrição dependente do «tencionar». A referência aos versos e à intenção de os escrever integra o romanesco, a situação descrita, o cenário, a narrativa da pequena história, desde a miúda dos chocolates ao aparecimento do Esteves — mas essa história não se fecha com a acção de escrever os versos, nem a inclui em nenhum momento: fecha-se justamente com a ausência de qualquer acção e ausência de reflexão sobre a ausência de uma e outra, acção e reflexão. O cigarro, diferimento da acção de escrever estes versos, é por assim dizer a ruína do «intencionar». Nem acção nem omissão, fumar é trivial gesto de nenhum propósito além do gozo de si mesmo e que de si mesmo não deixa senão cinza; improdutivo, mas libertador, opõe-se pela passividade constitutiva à própria oposição entre a poética que resgata o poema da contingência e o predomínio do contingente. A obnubilação do fumo no desfecho do poema é provavelmente o que o mesmo poema chama «metafísica»; o «momento sensitivo e competente» é provavelmente o que aqui se chama sobrevivência do romanesco à oposição entre poética e singularidade: a possibilidade de ligar a inconsequência de tencionar escrever versos à legibilidade de versos que não chegaram a ser escritos.

 

 

Bibl.: LOURENÇO, Eduardo, Pessoa Revisitado, Porto, Inova, 1973; MARTINS, Fernando Cabral, Poesias de Álvaro de Campos, Lisboa, Comunicação, 1985; MOISÉS, Carlos Filipe, O Poema e as Máscaras, Coimbra, Almedina, 1981.

 

 

Abel Barros Baptista