Numa nota autobiográfica de 1935, Fernando Pessoa afirma, quanto à sua profissão, que a designação mais própria é a de «tradutor». De facto, para além das traduções relacionadas com a sua actividade de «correspondente estrangeiro em casas comerciais», muito do seu tempo foi dedicado à tradução literária, quer a feita por encomenda como meio de subsistência, quer a de iniciativa própria com fins artísticos e culturais. Sabe-se que já desde 1902, pelo menos, Pessoa se exercitava na tradução de poemas ingleses para português, estabelecendo um diálogo frutuoso entre as suas duas línguas, que não mais abandonaria. Em 1985, José Blanco publica na revista Colóquio/Letras 88 (pp. 29-30), a tradução das 9 primeiras estrofes da Elegy Written in a Country Churchyard de Thomas Gray, feita antes de 1904.

É, no entanto, a partir de 1911, que se encontram sinais de uma continuada actividade tradutiva de carácter estritamente literário. Documentam-na as cartas do americano Warren F. Kellogg, representante em Lisboa da Biblioteca Internacional de Obras Célebres, editora com sede em Londres e com redacção sediada em Portugal, na Rua do Comércio, 31, 2º, e também uma outra assinada por M. Thorn (outro provável funcionário da redacção lisboeta da editora). A carta mais antiga data de 21-7-1911, ainda que Gaspar Simões observe, na sua Vida e Obra de Fernando Pessoa (1950, 1991: 138), que, por volta de 1910, se estabelecera em Lisboa «um súbdito inglês, Mr. Killoge [sic] que estava preparando a edição de uma grande antologia em língua portuguesa dos maiores prosadores e poetas mundiais», acrescentando que Fernando Pessoa foi contratado para traduzir os poetas de língua inglesa, sendo a remuneração compensadora (700 réis por cada página da tradução impressa).  Nessa carta, Warren Kellogg limita-se a pedir com urgência as traduções juntas, não sendo, portanto, possível determinar a que autores e textos se reporta. Numa carta de 23-12-1911, refere-se a Dryden. Segundo Arnaldo Saraiva, que a este assunto dedica grande parte do seu Fernando Pessoa: Poeta-Tradutor de Poetas, Dryden aparece no vol. IX da Biblioteca apenas com um fragmento, «Zegris e Abencerragens», de The Conquest of Granada, sem indicação do nome do tradutor, embora se saiba que Pessoa chega a iniciar essa tradução. Por sua vez, em 8-11-1911, M. Thorn pede, com a habitual urgência, a tradução de cerca de 20 páginas de Pilpay’s Fables. Arnaldo Saraiva não faz, porém, qualquer referência a esta tradução na lista que apresenta, quer dos trabalhos realmente editados, entre 1911-1912, com o nome de Pessoa como tradutor (e que inclui poemas de Alfred Tennyson, James Russell Lowell, Luís de Góngora, Francisco de Quevedo, Wordsworth, Thomas Moore, Elizabeth Barrett Browning, John Greenleaf Whittier, Kipling), quer das traduções anónimas que aventa como sendo muito provavelmente da autoria do poeta português, casos de poemas de Garcilaso de la Vega, Quevedo, Shelley, Coleridge e Robert Browning. É muito possível que Fernando Pessoa não tenha chegado a concluir ou sequer a começar algumas destas traduções.

A última carta conhecida de Kellogg, de 19-2-1912, dá conta do seu agastamento pelo facto de Pessoa não ter ainda terminado a tradução dos prometidos poemas espanhóis e do Cid, que ameaça entregar a outro tradutor (Correspondência Inédita, p. 199). A relação de Pessoa com a Biblioteca Internacional de Obras Célebres ou com Warren Kellogg não terá terminado, porém, em 1912, pois numa carta-bilhete, de 8-3-1919, a amigos não identificados, Pessoa pede emprestados 5 mil réis, justificando a necessidade por não ter conseguido contactar «o Americano» das suas traduções. Em 1913-1914, para fazer face a uma necessidade económica ou por vontade de dar a conhecer a cultura portuguesa, Pessoa empreende a tradução de 300 provérbios para inglês, destinados a serem publicados em Inglaterra, num pequeno volume, tarefa que completou, conforme se comprova pela correspondência trocada entre Pessoa e os editores Frank e Cecil Palmer. Em carta inédita de 5-5-1914, é Cecil Palmer que acusa a recepção da compilação, mas em Outubro do mesmo ano, informa Pessoa de que, devido à guerra, é impossível publicar os Provérbios Portugueses, recusando, apesar dos elogios quanto à sua competência como tradutor, o pedido que este fizera de um adiantamento de cinco libras.

Em 1915-1916, Pessoa empenha-se num outro projecto de envergadura, traduzindo para a Livraria Clássica Editora algumas obras teosóficas fundamentais: Compêndio de Teosofia, A Clarividência e Auxiliares Invisíveis, de C. W. Leadbeater; Os Ideais da Teosofia, de Annie Besant ; A Voz do Silêncio e Outros Fragmentos Selectos do Livro dos Preceitos Áureos traduzido para inglês e anotado por H. P. B, de Helena  P. Blavatsky; Luz sobre o Caminho e o Karma, transcritos por M. C. (Mabel Collins). Em 20-6-1923, em carta dirigida a João de Castro Osório, gerente e sócio da Lusitânia Editora, propõe a tradução das principais obras de Shakespeare, assim como de outras obras, de menor extensão e vulto, mas de igual interesse e novidade para o inculto público português, sugerindo inclusive o modo como estas suas traduções deveriam ser publicadas e organizadas. A lista de obras é enorme, incluindo nove peças de Shakespeare (A Tormenta, Hamlet, Principe da Dinamarca, O Rei Lear, Macbeth, Othello, António e Cleópatra, O Mercador de Veneza, Sonho de uma Noite de Verão e mais duas ainda não definitivamente escolhidas) e os «principais poemas» de Edgar Poe, Robert Browning, Wordsworth, Coleridge, Mathew Arnold, Shelley, Keats e de poetas menores como Sedley, Suckling, Lovelace, O`Shaughmsay, Dowson, Lionel Johnson.

Importa aqui sublinhar que, num longo texto em que define as bases do seu próprio projecto para a editora Olisipo (que inicia a sua actividade em 1921), Pessoa chama a atenção para algumas deficiências de que enfermam as editorias portuguesas: não procurarem atrair o «público medianamente culto» de Portugal e do Brasil, oferecendo-lhe traduções em português de obras notáveis estrangeiras; não saberem encontrar em Portugal tradutores competentes para essas obras (O Comércio e a Publicidade,p. 155). Pessoa seria certamente um desses tradutores competentes. Reconhece, no entanto, a enormidade da tarefa e tudo indica que o projecto acaba por não ter concretização, embora, na carta de 1923, garanta ao destinatário ter já praticamente prontas a tradução de A Tormenta e a dos «Principais Poemas» de Edgar Allan Poe, e muito adiantada a dos «Principais Poemas» de Robert Browning, e estar em vias de acabar a do Hamlet. No seu espólio encontram-se, porém, apenas alguns esboços destas traduções: 16 páginas manuscritas de A Tormenta; 4 de Hamlet; fragmentos de poemas de Poe, como The Haunted Palace e For Annie, sabendo-se que deste autor fez publicar na revista Athena  O Corvo (no n.º 1, Outubro de 1924) e Annabel Lee e Ulalume (no n.º 4, Janeiro de 1925). De resto, as obras cuja tradução Pessoa propõe a João de Castro Osório constam igualmente do ambicioso plano editorial de Olisipo, juntamente com muitas outras, a traduzir de inglês para português ou de português e castelhano para inglês. Da infindável lista fazem parte, por exemplo, as traduções para português de O Príncipe de Maquiavel, contos selectos de O. Henry e W. W. Jacobs, Rima do Velho Marinheiro de Coleridge, poemas persas de Omar Khayyam, o Laocoonte de  Lessing, A História do Cristianismo de J. M. Robertson, The Student of Salamanca de Espronceda, A Renascença de Walter Pater, ou as dos Sonetos de Camões e Antero de Quental e das Canções de A Botto, todas a realizar por F. Pessoa; e outras, cuja tradução é atribuída ao heterónimo Ricardo Reis – Prometeu Preso de Esquilo, Poemas de Safo e de Alceu, poemas da Antologia Grega, A Política de Aristóteles – ou a outras personalidades literárias, como Thomas Crosse – Poemas Completos de Alberto Caeiro, para inglês – e um enigmático A. L. R., que traduziria e prefaciaria os controversos Protocolos dos Sábios de Sião.

Curiosamente, a tradução do original espanhol de Espronceda, atribuída na lista a Pessoa, e cuja primeira parte foi mesmo passada a limpo, apresenta como autor Alexander Search, sendo a segunda parte, de que existe rascunho, subscrita por Herr Prosit (personagem central do conto em inglês da autoria de A. Search, A Very Original Dinner). De tudo isto, Pessoa terá efectivamente realizado pouco, tendo sido publicadas em sua vida oito textos da Antologia Grega, sem indicação do nome do tradutor (Athena 2) e três contos de O. Henry (Athena 3 e 5), um pequeno ensaio de Walter Pater, «La Gioconda» (Athena, nº 2). Mas, no seu espólio, encontram-se ainda rascunhos de 31 sonetos de Antero, em inglês, duas páginas de Prometeu Preso, em português. De salientar, é também a existência de outros projectos de tradução existentes no espólio, para além de fragmentos de O Marinheiro, em francês, ou de 18 páginas da obra de Jean Baptiste Pérès, Comme quoi Napoléon n’a jamais existé, traduzidas para inglês e 2 páginas para português. Traduções completas inéditas aí se encontram igualmente: o opúsculo Calígula, do alemão Ludwig Quidde; Child, tradução do poema Menino de Bourbon e Meneses (1931); o romance autobiográfico de Eliezer Kamenesky, intitulado Eliezer, 209 páginas em inglês. Convém ainda destacar a tradução do «Hino a Pã» de Aleister Crowley (Mestre Therion), publicada na presença, nº 33, Julho-Outubro de 1931; a de O Caso da 5ª Avenida, de Anne Katherine Green, publicado em folhetim no jornal Sol, nºs 1 a 28 (com excepção do nº 12), de Outubro a Dezembro de 1926; ou a do romance de Nathaniel Hawthorne A Letra Encarnada (The Scarlet Letter), editada como inédita em 1988 pela Dom Quixote, mas que surgira, de facto, também em folhetim (de Janeiro de 1926 a Fevereiro de 1927) na revista Ilustração (vd. introdução de Richard Zenith à reedição do romance, Assírio & Alvim, 2002). E destacar igualmente algumas traduções póstumas: «Dying speech of an old philosopher» / «Não combati: ninguém mo mereceu», por erro atribuído ao próprio Pessoa, em Fernando Pessoa, Novas Poesias Inéditas, Lisboa,: Ática, 1973; a tradução inglesa de «Alma minha gentil» de Camões, in A Inglaterra e os Escritores Portugueses, de Charles David Ley, Lisboa: Seara Nova, 1939; as Songs / Canções de António Botto, por este publicadas em 1948, com prefácio de Teixeira de Pascoaes. Pessoa previu também traduzir para inglês, para uma Antologia Sensacionista a editar em Inglaterra, as principais produções suas, ortónimas ou heteronímicas («Chuva Oblíqua», «Além-Deus», «Ode Marítima», «Ode Triunfal») e dos seus companheiros de Orpheu; e para uma chamada Portuguese Anthology, poemas de Guerra Junqueiro, Pascoaes, António Nobre, Cesário Verde. Alguns fragmentos nos ficaram, mas apenas isso. Era, realmente, um programa de dimensão incomensurável, mesmo para um homem que se afirmava «vários».

A designação de «tradutor» revela-se, sem dúvida, apropriada a Pessoa. E tanto mais apropriada, se pensarmos nos textos de reflexão sobre tradução que nos deixou (Pessoa Inédito, pp. 219-221 e 385-388). Deles decorre a ideia de que os princípios que orientam um tradutor no seu trabalho de recriação são os mesmos a que obedece um poeta no seu acto criativo: «Um poema é uma obra literária em que o sentido se determina através do ritmo. O ritmo pode determinar o sentido inteira ou parcialmente. Quando a determinação é inteira, é o ritmo que talha o sentido, quando é parcial, é no ritmo que o sentido se precisa ou precipita, Na tradução de um poema, portanto, o primeiro elemento a fixar é o ritmo» (Pessoa Inédito, p.386). Ao reflectir sobre Tradução, Pessoa entra no campo da teoria estética em geral e da linguagem; para ele, no fundo, ser tradutor é ainda uma forma heteronímica (ou invisível) de ser poeta. 

 

 

Bibl.: PESSOA, Fernando, O Comércio e a Publicidade, Lisboa, Cinevoz, 1986;  BAPTISTA, Maria Rosa, Pessoa Tradutor, dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1990; SANTOS, Maria Etelvina, O Poeta é um Tradutor - Fragmentos para uma Poética da Tradução em Fernando Pessoa, dissertação de Mestrado, FCSH da UNL, 1996; SARAIVA, Arnaldo, Fernando Pessoa, Poeta – Tradutor de Poetas, Porto, Lello Editores, 1996; Fernando Pessoa, Correspondência Inédita, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Horizonte, 1996.

 

 

Manuela Parreira da Silva