[BNP/E3, 72 – 20–23]
PREFÁCIO
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O progresso da poesia, isto é, o das formas poéticas – pois da mesma poesia, que é a verdade viva, não pode haver progresso, nem Homero foi ainda superado –, obedece àquela dura lei a que todo progresso obedece; em outras palavras, é um caso particular de um fenómeno geral. Designa-se por progresso a aquisição de uma coisa que é uma vantagem social por meio da perda de outra coisa, que era uma vantagem social também. É caso típico o da formação da Europa moderna: surgiu através da criação, diversa e colorida, das nacionalidades distintas; resultou na perda do influxo romano e do uso universal da língua latina, pelos quais as nações da Europa tinham naturalmente a fraternidade que hoje se busca em vão, porque artificialmente.
As formas poéticas, adentro da nossa civilização – isto é, da Grécia até nós –, atravessaram três estádios distintos: o estádio quantitativo, da poesia grega e latina, em que o ritmo se fundava na quantidade das sílabas, pressupondo e exigindo uma exactidão e musicalidade de dicção e pronúncia que hoje nem sequer concebemos; o estádio silábico, em que o número das sílabas no verso, a acentuação, e artifícios como a rima e a estrofe rimada faziam por compensar a perda da antiga precisão quantitativa; o estádio rítmico, em que se não cura de quanto seja regra, ou o pareça, mas se reduz a poesia, tão-somente, a uma prosa com pau-
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sas artificiais, isto é, independentes das que são naturais em todo discurso e nele se indicam pela pontuação.
Cada estádio, ou, antes, cada forma pela qual cada estádio se distingue, tem, como tudo, vantagens e desvantagens. A poesia quantitativa, apertadíssima, obrigava todavia a uma disciplina verbal de tal ordem que se reflectia no mesmo pensamento; por isso a poesia grega e latina é de uma notável clareza e limpidez. A poesia silábica, menos apertada, se dissolve a disciplina do pensamento, mantém contudo a da emoção; é preciso sentir claro, por obscuro que se pense, para lançar equilibradamente o movimento estrófico, alinhando e rimando. A poesia rítmica nem disciplina a inteligência nem a emoção, a não ser que estas estejam disciplinadas em, e por, si mesmas; segue, porém, todos os movimentos do espírito, como a sombra os do corpo, mas, como esta, se nos não precavermos no onde estamos, com grandes e desmedidas distorções. A primeira estorva a emoção em proveito do pensamento; a segunda estorva o pensamento em proveito da emoção; a terceira a ambos estorva, ou tende a estorvar, em proveito do que, transcendendo pensamento e emoção, é a mesma individualidade.
É regra de toda a vida social que, quanto mais liberdade nos é dada, menos podemos dar a nós mesmo. Se nos fecharem num subterrâneo, tenho liberdade de fazer muita coisa sem risco de cair do telhado abaixo. No
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telhado, em pleno ar livre, tenho que ver melhor onde ponho os pés. A vantagem e desvantagem da poesia rítmica, ou livre, é que ela exige de nós que nos disciplinemos com uma força e uma segurança que as poesias menos livres nos não exigiam, pois elas mesmas tinham em si com que disciplinar-nos. Isto é vantagem porque a disciplina assim adquirida é mais íntima e profunda; é desvantagem porque é muito mais difícil de adquirir.
O livro de Luís Pedro, a que estas considerações abstractas servem de breve prefácio, é escrito quase todo em verso puramente rítmico; e a tal ponto isso é natural em seu autor que aqueles mesmos poemas, que são compostos em verso que ele quer que seja regular, abundam em fugas e dissonâncias, o que aliás já sucedera ao meu velho amigo Álvaro de Campos, no Opiário que precedeu a emergência rítmica da Ode Triunfal.
Para livro de quem principia, o de Luís Pedro é bom princípio. Depois de o escrever, o que lhe compete é investigar o seguinte: se a poesia livre, em que o livro é composto, representa uma incoordenação a que há que dar, mais tarde, uma disciplina externa; se uma coordenação imperfeita, em que há que formar, mais tarde, uma disciplina interna.
Diz-se que todos os caminhos vão dar a Roma; mas se assim é, alguns hão de ir para lá muito tortos. Há dois caminhos direitos entre dois pontos: o que vai de um ponto ao outro em linha recta; e o que dá a volta ao
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mundo até chegar lá, em complemento da mesma linha. Figura o primeiro, no caso presente, a poesia livre; figura o segundo a poesia presa. O segundo é mais fácil, porque dá mais espaço para se dar por ele; o primeiro é mais difícil, porque temos que estar certos desde o princípio.
São estas as considerações que submeto a Luís Pedro, que mas pediu. Submeto-as também a várias outras pessoas, que se esqueceram de mas pedir.
FERNANDO PESSOA
[1] [22V] PREFÁCIO
[2] [23V] PREFÁCIO
Versão datilografada do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «Prefácio», in Luiz Pedro, Acrónios, Lisboa, U. P. Oficinas Gráficas, 1932, pp. 5-8.