Fernando Pessoa - Teoria Literária
Medium
Fernando Pessoa
BNP/E3, 14-5 – 1-18
BNP/E3, 14-5 – 1-18
Identificação
A EVOLUÇÃO DO TEATRO EM FRANÇA, ATÉ AO “CID” DE CORNEILLE (1636).

[BNP/E3, 145 – 1-18]

 

A EVOLUÇÃO DO TEATRO EM FRANÇA, ATÉ AO “CID” DE CORNEILLE (1636).

 

Em França, assim como em todos os países que têm um drama propriamente dito, dá-se o facto, que não é extraordinário, da tragédia ter a sua origem na religião popular. Este facto, como disse, nada tem de anormal; a sua explicação não é difícil e em todos os casos é a mesma. A origem da comédia, que é diversa, tem a mesma explicação. Mas para bem apreciarmos estes factos, é preciso examinarmos o drama em si o teatro, procurando na sua natureza e nos seus fins a explicação da sua origem.

Em todos os tempos, em todos os países, sejam eles pequenos ou grandes, estejam eles situados nesta ou naquela parte do mundo, o homem tem o amor do espectáculo. O homem, isto é, o homem natural, consagrado na literatura pelo nome de burguês, e consagrado por aqueles que se enchem de desdém por ele, por serem como ele por se sentirem como ele – o homem natural, digo, é essencialmente dos sentidos, vive intelectualmente apenas das representações que lhe vêm do exterior. Passa a sua vida, por assim dizer, fora de si. Reflecte como um lago, tranquilamente e sem deturpações, as nuvens e as coisas que passam; é imóvel e não é profundo.

Sendo assim, o homem natural, no seu estado primitivo, diverte-se apenas com coisas do mundo exterior. Gosta de cores vivas, de sons altos, agudos, variados. Vive, intelectualmente, mais neles do que em si, pois não vê na cor um elemento artístico, que impõe ao som um valor estético; não analisa nem compara. Mais civilizado, isto é, vivendo sob a influência dum meio diferente e melhor, é ainda o homem natural essencialmente o mesmo. Já não gosta só das cores vivas, dos sons agudos; aprecia agora luxos e músicas. As danças barbaras substitui bailes mais regulares – “mais fi-[1]

 

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nos" lhes chama eles; mas é fácil ver nos seus divertimentos a mesma natureza, a mesma origem, o mesmo fim. Entre as danças dos Zulus e o Real Teatro de S. Carlos há apenas uma diferença de grau.

Sob o ponto de vista do valor subjectivo das representações, há entre o homem natural e o seu parente próximo, o macaco, uma diferença intelectual menor do que entre o homem natural e um dos mais altos representantes da sua raça (Miguel Ângelo, Kant, Shakespeare). Isto é certo; não o devemos esmorecer. Mas o que também se não deve esquecer é que o selvagem, o homem natural é a condição do homem superior. A Natureza, pela sua grande lei – a lei da evolução geral – precisa de pouco para chegar ao muito, precisa do selvagem, para chegar ao génio.

Portanto para apreciarmos o teatro, ou, pelo menos, a sua evolução, precisamos saber como ele começa e porque tem assim o seu princípio.

Seria sem dúvida interessante procurar o porquê fundamental do espectáculo, tentar saber a razão subjectiva do impulso para a diversão. E a questão não seria banal, não seria tão estéril como parece; há nela a possibilidade de conclusões interessantes e de considerações instrutivas. Mas não é para uma pequena dissertação este assunto, que me levaria longe da marcha que vou seguir. Basta notar que o impulso natural ao divertimento e à distracção é a manifestação do amor ao movimento e à variedade, no seu lado intelectual, em referência à sucessão e ao desfile das representações. Uma evolução naturalmente irregular fará subjectivar esta tendência, e produzirá no seu curso o homem cuja diversão está, não no desfilar das impressões do exterior, nem no movimento físico, mas no movimento das ideias. No encadeamento dos pensamentos e dos sonhos. O homem natural, o filósofo, o poeta: eis as três ordens de homens de que falo. E a meu ver – e oxalá que assim seja – o perpetuo ennui da mais artística sociedade moderna pa-

 

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rece-me o ponto de transição, na evolução regular da intelectualidade humana, do mundo das representações para o mundo das ideias, e que, na época actual, os homens mais inteligentes mas não anormais enfastiam-se já com as representações, sem todavia ainda acharem nas ideias a diversão e o repouso.

  

Querendo nós achar a origem natural do teatro, e sabendo que ele é feito para o povo, o nosso primeiro passo deve ser procurar saber qual o carácter do povo. E quando dizemos “o povo”, não qualquer público de hoje, nem todos os públicos, mas o público homogéneo e natural com o qual o teatro começou.

Qual é o carácter do povo? Todos, mais ou menos, o sabem; todos, mais ou menos, o possuem. Todos nós o conhecemos e nenhum de nós o define bem. Pertence mais à arte do que à ciência. Tem disso menos estudado do que compreendido. E esses artistas e literatos que afectam (já é instituição artística) um desprezo completo por esse carácter, não o fazem senão porque o sentem em si. “Odi profanum vulgus” dizia o burguês Horácio.

É fácil dizer: o povo é rude, alegre, ingénuo; nada disto elucida, nem torna vivido o carácter do povo. Para o fazer seria precisa uma análise demorada e severa. Assim como em psicologia os factos mais difíceis de analisar mas mais lúcidos são as sensações chamadas simples, assim, em etologia, os caracteres menos susceptíveis de análise são os completamente sintéticos, os demasiado claros e conhecidos.

O que é necessário é um critério, ou antes, um fim, para a explicação do carácter. Ora aqui o que precisamos saber é o carácter do povo no que respeita a inteligência e a sensibilidade. É uma questão de valor, que, pelas naturezas especiais e diferentes da sensibilidade e da inteligência, se refere, na primeira, a qualidade, na segunda, a capacidade, a compreensão. Ora o povo é deficiente, quanto a qualidade da primeira, e quanto a capacidade da segunda; não tem inteligência verdadeira,

 

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nem tem sensibilidade intelectual: é inconsciente e é grosseiro. Inconsciência e grosseria: eis as duas feições do carácter popular. O espírito do povo é sem dúvida muito mais complexo. Mas cremos que estas expressões indicam, de uma maneira geral e sintética o carácter popular.

Mas é preciso analisar e fixar o sentido destas duas palavras que aplicamos ao modo de ser intelectual do povo. É preciso ver a extensão de cada uma, a sua verdadeira significação. Ora isto não é difícil.

A distinção mais fundamental que se tem feito, tanto nas ciências filosóficas, como, intuitivamente, na vida real e a do sujeito e do objecto, ou, fundamentalmente, a da percepção interna e da percepção externa. Todas as diferenças que se tem achado entre psicologia e fisiologia, entre ciências do espírito e ciências da natureza, tem por base, quaisquer que tenham sido as suas formas de exposição e de manifestação, esta distinção fundamental. A tendência a adoptá-la é geral. Spencer admitiu-a. O Dr. Binet, num livro que se pode dizer recente, chega a estabelecer, como a distinção radical entre o espírito e a matéria, aquela entre “o que conhece” e “o que é conhecido” (ce qui connait, ce qui perçoit; ce que est perçu, connu).

A distinção não está só aqui. Assim, alguns etólogos distinguem entre os homens dos sentidos e os homens da inteligência.

Ora quando estudamos o carácter dum homem sob o ponto de vista intelectual, procuramos saber se nele predomina lado subjectivo ou objectivo. Ou o homem vive intelectualmente mais da reflexão, do pensamento, do sonho mesmo; ou vive mais das representações que recebe do mundo exterior. No primeiro caso é intelectual; no segundo caso é primitivo e rude. A vida reflexiva, subjectiva é a que nós denominamos propriamente a vida intelectual. Ora onde predomina a reflexão deve predominar a consciência (no sentido psicológico da palavra).

 

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E quanto mais reflexivo é um temperamento, mais afastado está dos impulsos físicos, da vida das representações.

Há agora a apontar um facto importantíssimo, do qual depende toda a clareza desta exposição: é que a vida intelectual é dupla, como é também dupla a vida do sentimento. Como mostramos, a vida, intelectual ou sensível, tem dois lados, o subjectivo e o objectivo. Não há em caso algum, nem pode haver, ausência de qualquer lado. Não existe homem nem animal que viva sem sentidos, ou sem pensamento, por mais rudimentar que ele seja. Por exemplo, a existência no homem da reflexão exige que ela se encontre também no verme, posto que num estado muito elementar, inconcebivelmente rude. O que há, e o que nos serve de base para o nosso modo de falar usual, é o predomínio de uma destas faculdades. Assim o intelectual é o homem em que predomina a vida interna, do espírito, e não o homem em que houvesse ausência da vida dos sentidos, porque este seria um homem morto.

Ora isto tem importância para explicar os termos inconsciência e grosseria. Estas palavras, na verdade, dão uma ideia da sua significação verdadeira. A palavra inconsciência pela sua forma negativa pode induzir em erro. Ela representa, em verdade, uma forma negativa da intelectualidade propriamente dita, mas, ipso facto, um grau muito positivo da vida das sensações. É isto que há a notar: é que o termo inconsciência é só negativo com referência à inteligência, mas que indica e resume uma série de qualidades positivas, que constituem a vida dos sentidos.

Todas as ideias são forças, isto é, toda a representação tem um lado pelo qual há apetição, impulso à acção. Toda a filosofia de Fouillée é baseada neste facto da ciência. Portanto a inconsciência no seu aspecto positivo (isto é, como vida intelectual dos sentidos) e a grosseria sendo estados do espírito (e as ideias, no sentido em que Fouillée emprega o termo, são todos estados psíquicos), devem ter cada uma um objecto para o qual impulsiona o indivíduo. Quais são estes objectos? Por

 

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antítese os descobriremos, perguntando, em primeiro lugar, qual é o objecto ao qual tende a inteligência propriamente dita, quais os objectos que busca debaixo das suas duas formas. A resposta já é sabida: a inteligência busca a verdade e a perfeição; sob a sua forma puramente ideal, intelectual procura a verdade científica, a unidade filosófica, a clareza; pelo seu lado estético procura a beleza e a perfeição ideal, que também é uma espécie de verdade. Ora a inconsciência e a grosseria, sendo qualidades inteiramente opostas, devem ter tendências diversas. A vida dos sentidos tem por objecto geral as representações; não a verdade, mas a realidade. Tanto a consciência como a inconsciência buscam o que entendem por verdade e compreensão; só diferem nisto: em que a inteligência [quer] compreender e saber as razões das coisas, e para a inconsciência entender é simplesmente ver e ouvir. Uma faculdade procura; a outra aceita. Para o intelectual tudo está na razão; para o povo tudo está na autoridade. A inteligência aceita aquilo pelo próprio esforço (raciocínio) esclarece e compreende. A inconsciência aceita o que lhe é apresentado, logo que o seja com autoridade. Aceita tudo o que vê e ouve no mundo exterior, porque tem a autoridade, para ele suprema, da sensação. Vê e crê, como S. Tomé.

Vemos pois que a inconsciência, pelo seu lado intelectual busca o contrário de claro, tomando-o, evidentemente, por claro, pois ninguém busca conscientemente a falta de compreensão. Simplesmente a inconsciência busca o que, em referência à inteligência, é obscuro. Pelo seu lado estético a inconsciência busca o grosseiro.

A tragédia, nascendo da religião, mostra bem como se prende ao lado intelectual da inconsciência. As religiões, e, especialmente, a religião católica, pela nebulosidade dos seus dogmas, pelas suas pretensões e concepções absurdas e irracionais, satisfazem o espírito popular, que, ao contrário do espírito filosófico, busca o que não compreende, tem o desejo do misterioso e do obscuro. Mas toda a ideia que o povo tem de elevação e

 

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de pobreza vem-lhe da sua religião. Ora o elevado e o nobre sendo os objectos da tragédia, é natural que esta nasça das cerimónias da religião popular.

Na sua evolução, podemos dizer, a tragédia passa por 5 etapas, conquanto nem a primeira nem a última sejam propriamente de desenvolvimento, pois uma é apenas o princípio da tragédia e a possibilidade da sua evolução, e a outra a passagem para uma evolução superior.

Em primeiro lugar temos a introdução dum elemento acentuadamente dramático nas cerimónias religiosas; pouco depois temos já representação de dramas religiosos. No primeiro caso fazem os dramas parte das cerimónias do culto; a cerimónia é o principal. No segundo caso, o drama já está separado da cerimónia religiosa. É já simplesmente um drama; o ser religioso passa a ser apenas um atributo. São estas a primeira e a segunda etapas da evolução da tragédia: o aparecimento do drama dentro da cerimónia religiosa, e a separação do drama da cerimónia propriamente dita. A separação é até indicada por um facto bem material, que é a passagem do local do teatro, da cena, para fora do edifício da igreja.

Logo que se separa a cerimónia religiosa, que é fixa, uma vez nas mãos do povo, a tragédia está sujeita a mudança e a desenvolvimento. Mas a tragédia não pode evolucionar completamente no meio popular, e degenera em farsa.

Vejamos a evolução da tragédia popular, e a razão da sua degenerescência.

Em primeiro lugar há a notar que o povo grosseiro e rude ao tentar compreender os mistérios e os dogmas, deturpa-os e torna-os grosseiros. Isto acontece com todos os inconscientes qualquer que seja o seu grau de intuição, por causa do seu egocentrismo. Assim, o teísmo de Moisés e dos seus contemporâneos é uma concepção grosseira e rude. A mesma impossibilidade de conhecer o nobre nobremente é fatal ao género trágico nas mãos do povo.

 

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O povo gosta de se ver em cena a si próprio, sem se tomar a si mesmo a sério. Quando dizemos que o povo gosta de se ver a si próprio em cena, queremos simplesmente dizer que ele aprecia personagens com o seu carácter e as razões de cujas acções ele mais ou menos entende. De resto não pensa em si quando vê os actores em cena. Toma o personagem em cena como qualquer amigo seu, como qualquer semelhante. E por isso ri dos seus desastres, como, na vida real, acha graça às contrariedades da vida dos outros, porque não pertencem à sua, porque não é ele quem as sofre. É um modo de pensar, se esse nome merece eminentemente característico do egocentrismo inconsciente.

Mas o povo não podia ver em cena, em uma tragédia, outros como ele; faltavam ao seu conceito de nobreza nos personagens. O povo não via ainda bem (nem ainda hoje vê, que é o mesmo) que a nobreza consiste, não no personagem, mas no sentimento. Nobres só os seus heróis e santos conhecidos. É ainda este modo de ver uma prova, uma manifestação do egocentrismo e da vida dos sentidos do povo. É uma prova de egocentrismo porque não vê nos personagens do teatro, que sejam semelhantes ao burguês, sentimentos nobres; vê só sentimentos usuais, de todos os dias, desconhecendo assim todo o espírito da tragédia. É uma prova de fraca vida intelectual, porque dá o nobre, o trágico ao personagem por um critério exterior e rude.

Nada marca melhor este sentimento do homem natural em referência à tragédia do que a definição deste género feita pelos gregos. A definição antiga atribuída à tragédia uma acção triste “onde entram personagens de categoria elevada.” A primitiva tragédia grega apresentava ou deuses, ou heróis, guerreiros importantes (que, está averiguado, tinham sido deuses), ou reis. Também se deve notar que a tragédia de que falamos começou pelo culto de Baco, que teve uma vida infeliz, que foi dilacerado, morto, e que ressuscitou.

Como temos dito, não admira que o povo seja incapaz de apreciar as qualidades nobres. Reduziremos a uma prova desta asserção. Uma qualidade nobre pode ser apreciada de três manei-

 

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ras: ou tomando consciência dela em nós e vendo assim o seu valor; ou tomando consciência da falta dela e avaliando pela falta a sua nobreza; ou admirando nos outros pelas suas manifestações. Ora o povo de nenhuma destas maneiras tem compreensão das coisas elevadas, não tendo consciência intelectual para o fazer. Vê-se imediatamente como a tragédia popular não podia ser senão uma coisa temporária, condenada à morte, fora de correspondência com o meio.

O povo presencia com atenção os dramas, os mistérios que lhe apresentam; quer ver no seu Cristo e nos seus mártires sofrimentos físicos intensos para provocar sentimentos de piedade na sua alma rude e grosseira. Precisa ver sangue, coisa dos sentidos, para despertar o seu horror. Quer ver os seus mártires torturados com toda a barbaridade; precisa ver os instrumentos de tortura, as espadas, as lanças, a cruz. Se lhe quisessem fazer notar os sofrimentos íntimos do Cristo, mais terríveis a verdadeira sensibilidade e a verdadeira imaginação do que os sofrimentos físicos, se os tentassem representar por palavras de perturbar, por frases e por versos vividos, tudo isto (que era naquele tempo impossível) passaria despercebido à plebe grosseira e rude. E note-se que o único verdadeiro sentimento trágico e nobre que o povo compreende é o amor maternal, na Virgem, que é o personagem das peças religiosas, dos mistérios, que parece indicar a possibilidade de fusão entre o elemento místico e o elemento popular, sem que a tragédia ficasse prejudicada. Mas assim não foi, nem podia ser; houve o princípio de uma fusão incompleta; seguiu-se uma transformação que foi uma degenerescência.

 

A passagem das cerimónias do culto para os primitivos dramas religiosos é tão simples e tão natural como a conversão em farsas e comédias representadas das ebulições particulares, familiares, constantes, da inconsciente alegria popular. Mas a comédia é mais natural ao povo; ele de alguma maneira a produz, usualmente e por intuição. Em toda a parte há comédia,

 

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todos os dias a há, na vida real. Há também tragédia, é verdade, mas noutro sentido. Não se busca a tragédia; a comédia busca-se naturalmente, procura-se e faz-se. Entre buscar divertir-se pelo ridículo e ir a um teatro ver ridículos representados há uma ligação muito natural, que não existe tão directamente, do sentimento para a manifestação, no caso da tragédia. O caso da tragédia é diferente; o povo não a produz; é feita para ele, pois a inconsciência intelectual (amor ao mistério) que ela vem primitivamente satisfazer sendo intelectualmente negativa, não pode produzir nem criar.

Se ainda hoje existe uma comédia baixa, é porque os sentimentos estéticos do povo são os mesmos, ou quase os mesmos, do que eram na Idade Média. E se hoje a comédia popular não é tão grosseira como era no século XV não se deve julgar que é por causa da evolução que isto se dá: é simplesmente por causa da censura oficial. Quanto a comédia fina, se ela existe ao lado da comédia popular, é porque o género foi adoptado pelas classes mais educadas, e nessas tem havido uma transformação sensível, uma evolução intelectual e artística.

Com a tragédia acontece quase o mesmo que acontece com a comédia fina: não há uma evolução propriamente dita; há uma mudança de meio e uma nova evolução. Pela razão que já indicámos – a fraca compreensão pelo povo dos sentimentos nobres – uma vez constituída a tragédia pela fusão do elemento popular com o elemento trágico, ou antes místico, como não havia correspondência entre o género e o meio, começou logo, não uma evolução, mas uma degenerescência. A tragédia vai precisando, para ser aceite pelo povo, de elementos da farsa, até que, no fim, estes elementos predominam (como não podiam deixar de predominar) e a tragédia popular tem o seu fim natural. É por isto que, uma vez feita, a tragédia parece chegar muito depressa ao seu auge; isto é porque não teve que esperar a evolução do povo, tendo saído desse meio para outro. A tragédia mostrou bem que não era um género do povo, passando das mãos dele para as mãos da so-

 

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ciedade mais culta. Quando morreram os mistérios, morreu a tragédia popular.

 

Resumindo, são as seguintes as etapas na vida da tragédia em França:

  1. Separação do elemento dramático das cerimónias do culto religioso.
  2. Dramatização das lendas e dos mitos religiosos.
  3. Fusão do elemento místico com o elemento grosseiro, predominando este último.
  4. Degenerescência e morte da tragédia como género popular.
  5. Passagem da tragédia para as classes cultas e consequente evolução regular.

 

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A tragédia em França começou, como já dissemos, pela dramatização das cerimónias religiosas. Todo o sentimento do belo e do grandioso que o povo francês tem nesse tempo vem-lhe das cerimónias do culto católico; com a sua pompa pesada e vã elas falam aos seus sentidos, são a única fonte da sua emoção estética. Punham em cena na Grécia os dramaturgos as vidas dos deuses e das outras personagens da mitologia desse tempo, que já eram conhecidas do seu público. Também o povo francês já conhecia a Paixão, os milagres de vários santos, as suas vidas. No princípio a acção importa pouco; o principal é a mise-en-scene.

O povo francês não sabia ler e não entendia o latim; pensaram portanto os padres em figurar de uma maneira mais nítida e agradável os mistérios da fé cristã, do que na missa se via. Nesta cerimónia, na verdade, há um elemento dramático, dialogado; o elemento espectacular é enorme e evidente. Começaram por os clercs a fazer interpolações dramáticas na missa, especialmente nos actos que comemorava o ofício do dia. Primeiro foram os tropes muito curtos; depois os dramas litúrgicos, representados antes da missa, nos quais o cenário se torna mais rico os personagens em maior número, e a acção mais complicada. De-

 

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pois fazem-se dramas, composições sobre as principais festas do ano. No Natal era costume representar-se um drama chamado “Les Prophetes du Christ,” fundado sobre um sermão apócrifo de Santo Agostinho, e que variava, tanto na mise-en-scene como no número dos personagens, de cidade para cidade. A tendência deste drama, ou antes, dos dramas inspirados pelo sermão referido, é sintetizar, reunir em um, toda a história do Velho Testamento. Estes dramas foram acumulando matéria, foram-se complicando, ampliando, até que se dividiram em pequenos dramas distintos. Cada um em volta dum dos personagens.

O drama religioso, como dissemos, complica-se e desenvolve-se, mas, complicando-se, desenvolvendo-se, torna-se profano. Passa a representar-se fora do edifício da igreja. Emancipa-se da missa. Daí a pouco tempo, a língua vulgar substitui gradualmente o latim. A mise-en-scene é ainda muito complicada, sumptuosa; mas isto é de esperar, atento o carácter do povo. Os dramas religiosos por muitos destes caracteres mostram bem que já são como os mistérios do século XV.

No século XII as composições mais notáveis neste género são uma peça sobre a ressurreição e um drama normando intitulado “La Representation d’Adam”. Mas ainda nestas peças o latim é usado, fora do diálogo, mas como que para dar à peça um valor religioso e moral. A Representation d’Adam tem o mesmo assunto que o mais antigo drama Les Prophetes du Christ, mas, como aconteceu aquela peça, complicou-se, desenvolveu-se e, finalmente, dividiu-se em vários dramas – neste caso em três. As duas primeiras partes deste drama mostram algum valor literário, um sentimento dramático e poético. É superior às Tentations do século XV.

O género dramático torna-se mais profano no fim do século XII no drama Jeu de Saint Nicolas que foi representado em Arras por Jean Bodel. Há aqui o que parece o princípio da fusão entre o místico e o grosseiro, mas mostra bem o que era essa “fusão.” Mistura os elementos em lugar de os fundir. “Com esta peça,” diz Lanson, “o drama devoto torna-se uma farsa: o lugar que a religi-

 

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ão tem nesta peça é a mesma que lhe dá a alma burguesa na vida real.”

O teatro da Idade Média nada produziu superior a este drama de Bodel. Pelo contrário, usando e repetindo os personagens do drama deste, torná-los-á convencionais, apresentá-los-á sem aquela vida, sem aquela concisão e simplicidade que caracterizam o drama original.

No século XIII abundam os “milagres da Virgem”, objecto, para a Idade Média, da adoração intensa. Ela era geralmente escolhida para patrona das associações. Era natural que milagres seus fossem postos em cena. Estas peças são, como era de esperar menos graves que os antigos dramas litúrgicos, mais sérias que o Jeu de Saint Nicolas. Não sendo senão muito raramente cómicas têm contudo um caracter familiar, intensamente popular.

Os quarenta e tantos Milagres representados nesta época não tem valor real. Podem servir para mostrar a concepção popular da religião na Idade Média. Mostram bem quão grosseiras, imorais, absurdas e extravagantes eram as formas pelas quais passava neste tempo o culto, a adoração da Virgem; resultado natural do povo querer compreender e tornar compreensíveis os mistérios e os dogmas da religião católica. Mesmo no caso da Virgem há a exigência do milagre, como que para justificar o culto, que o povo só entende recebendo proveito e recompensa dos santos que reconhece e consagra; dá-se assim uma materialidade, um comercialismo, por assim dizer, ao culto, que é às vezes intensamente repugnante. De resto, as ideias literárias desse são, quanto à arte dramática, muito rudes. Qualquer concepção mais ideal, mais graciosamente fantástica que um cérebro inspirado pelos dogmas da religião possa produzir é de tal maneira estragado na execução, são tão fracos os versos, tão fraca a acção, que esse drama não se pode dizer uma obra literária. E as peças religiosas, os mistérios, não deixam de marcar de uma maneira bem clara a diferença entre teatro e literatura. 

   Nestes dramas aparece já um indício de desorganização moral do tempo; os papas, os cardeais, os bispos são por eles

 

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maltratados e apontados como criminosos; os reis são fracos ou maus; o poder inspira uma revolta inconsciente, cheia de ódio e de desprezo.

 

Da ruína da cultura antiga, greco-romana, ficou a parte menos literária – espectáculos grosseiros, pantomimas, jogos e cenas de saltimbancos. Destes espectáculos tão rudes, das canções, dos fabliaux, nasce naturalmente o género cómico. Também devemos notar a influência da tradição literária da antiguidade pois os clrecs das Universidades escreviam a maior parte das obras cómicas do tempo, e eles conheciam as comédias antigas. Finalmente, há a influência da tragédia, ou, melhor dizendo, dos jogos litúrgicos e sagrados que deram à comédia a sua forma dramática, por imitação.

No século XIII há a notar apenas as composições de Adam de la Halle, uma das obras do qual (Le Jeu de la Feuillee) se tem dito que ela faz evocar os nomes de Aristófanes e de Shakespeare. Do século XIV quase nada temos; mas o que temos serve apenas para nos mostrar que foi mui lentamente que a comédia surgiu das peças, ou antes, dos espectáculos que temos indicado.

Já neste período começam a aparecer as obras que hão de tirar a comédia da farsa pura, inutilmente realista: são as obras não-dramáticas que contêm análises psicológicas, intuições de carácter, por mais rudes e por mais inconscientes que primitivamente elas sejam.

 

A literatura dramática dos séculos anteriores vem a das no século XV os mistérios. Primeiramente (1400) esta palavra designava representações puramente figuradas, sem diálogo dramático, cujos assuntos podiam ser mitológicos, ou alegóricos, ou da religião cristã. Em 1440 este nome passou para as representações dramáticas propriamente ditas.

Os mistérios eram uma espécie de enciclopédia popular da história religiosa. E têm isto de comum com os dramas litúrgicos que quase nunca trata senão de assuntos religiosos. Todas as fontes eram igualmente boas para os que os escreviam; a falta

 

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de crítica é notável e natural.

Sobressaem três mistérios: o Mistério do Velho Testamento, o Mistério da Paixão e o Mistério dos Actos dos Apóstolos. Formam uma espécie de história religiosa do mundo. A tendência cíclica destas obras é evidente, assim como o é a das obras que antecedem ou seguem estas. O autor do segundo destes mistérios, de parte do terceiro, e que por esta obra influenciou a composição do primeiro foi Arnoul Gréban. O seu colaborador no Mistério dos Actos dos Apóstolos foi seu irmão Simon.

No século XV há só dois casos conhecidos em que o autor do mistério saísse da história religiosa: um é o do Mistério do Cerco de Orleans, que se explica por um sentimento religioso de devoção local, e o outro o do Mistério da Destruição de Tróia, obra de um letrado que quer interessar dando à sua composição forma literária usual. Não é certo, nem é mesmo provável, que este segundo mistério fosse alguma vez representado. Não é ainda o tempo dos mistérios profanos; esses só vêem na decadência do género. Os mistérios têm geralmente uma intenção religiosa; muitas vezes os actos de devoção precedem a representação.

O custo destas representações era elevado; os actores eram de todas as classes; e as representações duravam muito tempo – muitas vezes alguns dias, por vezes algumas semanas. Não há noção alguma da unidade; nem o lugar nem o tempo têm importância nos mistérios. Os mais variados lugares, desde o céu até ao inferno estão na mesma cena. O Mistério do Velho Testamento representa um período de 4000 anos. O principal dos mistérios era a mise-en-scene; era complicada sumptuosa, tinha todo o aparato para as trovoadas e para os fogos do inferno.

Estas peças apresentam, à parte os seus grandes anacronismos, uma mediocridade de forma e de expressão que entristece, pois estraga, às vezes, concepções delicadas e finas. Mas alguns méritos têm elas; há bocados de intuição dramática acertada e correcta, posto que puramente popular. Há uma simplicidade por vezes encantadora. Mas o elemento cómico penetrava no mistério e a sua morte não tardou. O decreto do parlamento em

  

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1548 que proibiu a Confrerie de la Passion e representação de mistérios sagrados foi a principal causa dessa morte; pois que proibir a essa associação esse direito era matá-la. Em 1598 o mistério teve o seu fim.

 

As peças profanas e cómicas abundam no século XV. Os comediantes de profissão não aparecem antes do século XVI; no século XV as representações são especialmente dadas por associações que para esse fim se constituem. Há duas principais e que deixaram nome, em Paris: são os Basochiens e os Enfants sans souci. Os primeiros representavam mistérios onde entrava muito a pantomima; dava representações dramáticas. Os segundos são provavelmente os actores que tomavam parte na conhecida, e proibia da paródia a religião chamada fete des fous. Os basochiens eram por assim dizer uma associação de classe; os sots não, e é por isso difícil determinar quem eles eram. Os sots representavam uma espécie de parada, imitação directa dos espectáculos rudes, ou antes, mais rudes ainda, do tempo anterior. Os basochiens representavam farsas e moralidades. Mas houve um acordo entre as duas sociedades pelo qual se combinavam. Foi depois o costume fazer um espectáculo consistir em três peças, uma de cada género.

A moralidade é um género dramático que tem lugar entre o mistério e a farsa e a sottie. Como diz Sibilet, se o seu final fosse triste, sempre triste, a moralidade seria uma tragédia. Ela é às vezes patética. Há também moralidades cómicas, há as alegóricas, e há as políticas, que eram às vezes perigosas. Estas últimas aproximam-se muito das farsas. Na moralidade alegórica e na sottie há uma tendência para o geral; a farsa tem por objecto puramente o particular. O seu fim é produzir un ris dissolu. A farsa é, segundo nos dizem, inconcebivelmente grosseira e rude. Cinge-se a personagens do tempo em que é representada. Em todo o caso, a farsa não é um género literário; será um género dramático, mas é essencialmente popular.

As farsas do século XV e do século XVI são quase todas mas sob o ponto de vista literário. A obra-prima deste tea-

 

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tro é a farsa chamada Pierre Patelin. Mas não é propriamente uma farsa; é já propriamente uma comédia. E é menos parecido com a farsa de que com certos fabliaux. A farsa não fez progressos. O povo é sempre o mesmo. E só acidentalmente tocou na literatura.

 

Posto que não seja bem exacto dizer que a Renascença francesa foi uma repetição da Renascença italiana, ainda assim em França as coisas passaram-se mais ou menos como na Itália. Em primeiro lugar vieram os humanistas que traduziram para latim as obras mais célebres do teatro grego, que depois tentaram imitar em dramas originais. Duas destas obras assim imitadas – o Jephté de Buchanan e a Jules Cesar de Muret – tiveram, mesmo até mais tarde, uma fama considerável.

Ao mesmo tempo iam sendo traduzidas para a língua francesa diversas obras antigas, entre elas vários poemas dramáticos. Jodelle faz escola. De 1552 aos primeiros anos do século XVII aparece um grande número de poetas dramáticos, um grande número de tragédias.

Há entre os sucessores de Jodelle dois grandes poetas – Carnier e Montchretien, um nervoso, sentencioso, firme; outro lânguido e melancólico, com a forma que hoje se denomina lamartiniana. Todos estes poetas estão sob a influência de Ronsard.

Séneca e Aristóteles tiranizam o drama, um como exemplo outro como lei. A teoria de Aristóteles, mal compreendida no que ela tem de elevado e de abstracto, é adoptada nos seus detalhes pouco importantes, mas altamente tiranizadores. Na verdade neste tempo há poucos verdadeiros dramaturgos; os que escrevem dramas e tragédias são puramente poetas. Não tratam o drama como drama, mas sim como um assunto para sucessivos temas poéticos. Mas há tragédias deste tempo que mostram alguma coisa do verdadeiro instinto do drama. Os assuntos antigos, assim como aqueles onde se procura abrir caminho e fazer novidade, são tratados mal e friamente. Só onde o autor se encontra inconscientemente desprendido da tirania da antiguidade – só aí há verdadeiro sentimento, verdadeira intuição dramática.

 

[18r]

 

Não se pode dizer que a Plêiada tivesse fundado a tragédia francesa, pois a Cleópatra de Jodelle marca apenas um progresso sobre as obras de Baïf e de Buchanan. As tragédias deste tempo, até 1500, são tragédias de salão.

 

O fundador do teatro francês foi Alexandre Hardy. Apesar de rude como poeta. Hardy tinha incontestavelmente o instinto da cena, a intuição dramática. É variada a obra de Hardy – tragicomédias, comédias e pastorais – e não está sujeita a regras. Estas peças são hoje ilegíveis.

Hardy prestou ao teatro um grande serviço, pois foi devido ao seu esforço que ele passou a ser frequentado pelas classes altas. Desde que o teatro se torna mais apreciado, são numerosos os poetas que querem seguir as passadas de Hardy. São mais artistas do que ele mas não têm o instinto da cena. É só em Corneille que encontramos o justo equilíbrio, ao mesmo tempo um grande poeta e um grande dramaturgo.

A primeira obra onde aparecem as unidades de tempo e de lugar é a Silvanire de Mairet. Foi nesta obra que as unidades foram pela primeira vez definidas. Mairet não conhece as regras pelo teatro clássico do século XVI, pois estas obras estavam esquecidas. Num prefácio a uma tragédia de Schelandre (“Tyr et Sidon”) Ogier escreve a mais vigorosa defesa que se tem feito da liberdade do teatro. A “Sophonisba” de Mairet foi a primeira tragédia regular do teatro do século XVII. Dois anos e meio depois Cornneille dava-nos o Cid, que é a primeira obra-prima dentro das regras. Na Sophonisba há já uma acção simples e lógica, o estudo dos caracteres, e um estilo nobre e oratórico.

É escusado agora notar como passou a tragédia, na sua evolução, da Sophonisba para o Cid. É uma passagem perfeitamente natural. Estava tudo preparado para o aparecimento dum grande poeta dramático com uma grande obra.

Em 1636 aparece o Cid.[2]

 

 

[1] [1v]

Evolução do Teatro em França.

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[2] [18v]

A evolução do teatro em França até à época do “Cid”

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