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Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 107 – 23–25
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre "António" de António Botto]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 107 – 23–25]

 

Ao deus infante a que chamaram Eros, e que conhecemos antes pelo nome romano de Cupido, opuseram os Gregos um outro deus, menino também, a que chamaram Anteros, isto é, contra-Cupido. Suas figuras nos aparecem nas presentações helénicas com a forma de duas crianças que lutam. Por este símbolo perspícuo entenderam figurar seus criadores aqueles dois impulsos da sensualidade que perpetuamente se gladiam na mente do homem racional – o amor pelo amor, e o amor pela beleza. Busca o primeiro, amando segundo o instinto, sempre o sexo oposto; o outro, amando segundo a razão, frequentemente o sexo próprio. Não tem o instinto senão sexo, nem sexo a razão. E o dilema assim representado na briga dos dois meninos não é mais que uma forma particular da oposição universal do instinto e da inteligência – um favorecendo a vida e propagando-a, a outra favorecendo a vida e a não propagando.

 

Têm Eros e Anteros iguais razões, direitos pares; nem a luta, que dos dois se figura, alguma vez presenta qualquer deles vencido. Pecara o símbolo se não fora assim. Nem há problema humano da vida que tenha solução justa (é esta a origem da tragédia), ou solução absurda (é esta a origem da comédia). Em todo o racional é a vida uma balança que não assenta; em que o peso relativo, portanto, se nunca determina.

*

A repugnância, que muitos – porém menos que esperamos – cuidam ter pelo amor contrário, procede de que o supõem definido e exemplificado, já no invertido, já no que se prostitui, já ainda no que, não sendo um nem outro, se emprega viciosamente em esse amor. Qualquer dos casos, porém, é insignificativo.

 

O invertido é um ser organicamente predisposto para o amor sexual contrário, e só para esse amor; em esse amor é instintivo, que não racional, e, como o instinto são busca sempre o sexo oposto, tal ser é uma monstruosidade, um aleijão, que, como todos os monstros, repugna nossa justa sensibilidade.

 

O prostituído ao próprio sexo, repugnamo-lo como todo prostituído; se o repugnamos mais, é que é menos natural a maneira de vender-se que elegeu. É um monstro também, porém psíquico ou social: não tem a escusa do instinto, nem a justificação da razão. Repugnamo-lo em maior grau, que não de diverso modo, que a mulher que, por dinheiro, se faz amante de um velho, de um aleijado, ou de um ascoroso.

 

O vicioso repugna-nos, não por ser tal vicioso, senão que porque é vicioso. Vício é a absorção degradante do espírito em qualquer emprego do desejo: a caridade pode ser um vício, não menos que a sensualidade. Se a caridade é menos

 

[24r]

 

vulgar como vício é que os impulsos altruístas pesam menos em nós que os egoístas. Nem deve deslumbrar-nos, como se fora força, a persistência do vicioso em seu vício: é uma força de fraqueza, como a epilepsia. Não é defensável o vício, qualquer que seja, senão por um espírito degradado, ou por um sofista que não crê em sua mesma defensão.

 

Postos, porém, de parte estes casos mórbidos, cujos exemplares repugnamos quase sempre – nem sempre, porque a beleza e a graça, que não são incompatíveis com eles, podem abrandar em nós o enjôo moral –, o amor sexual contrário é um caso particular do mesmo amor, do amor universal, afastando-se do uso só no mesmo amor, do amor universal, afastando-se do uso só no pormenor insignificante da igualdade de sexo. Há nele os desejos, os pudores, os ciúmes que há no amor entre sexos opostos. Presta-se ele portanto a uma presentação artística idêntica à do amor cruzado.

 

No drama "António" trata-se de um caso normal de amor contrário. O episódio de amor cruzado, que nele aparece, não é mais que a maneira natural de fazer sobressair o verdadeiro amor, sobretudo pela falsidade, talvez mais que unilateral, desse amor intruso.

 

Há três casos de amor contrário neste drama: o de Duarte por António, amor de paixão; o de António por Duarte, amor de emoção; o de Luís por António, amor de afeição. No amor de Duarte por António a paixão se revela com seus atributos – a excessividade, o egoísmo absoluto, o ciúme cego, a imoralidade da emoção, a que a paixão nunca atende. No amor de António por Duarte a emoção transparece, com seus pudores, seus receios, seus movimento errados, sua natureza feminina. No amor de Luís por António a afeição não sabe que é amor: é, em maior grau, como o obscuro impulso sexual que faz – segundo a universal observação, comentada assim pelos psicólogos – os pais mais amigos das filhas, as mães mais amigas dos filhos.

 

A estas três personagens duas outras se acrescentam – uma, visível, Adriana; outra, invisível, a Arte. Para além deles todos paira, avatar do Destino dos Gregos, uma força anónima e terrível, a Natureza, que castiga sempre tragicamente os pecados, voluntários ou não, contra o seu mandamento, que é parir. Castiga-os porém tanto no amplexo de amantes de igual sexo, como no amor de espírito entre homem e mulher; na castidade do asceta, como no amor mental do místico; na esterilidade involuntária, como na querida. Diversos são os castigos, porque diversas as culpas; mas há sempre castigo, que a Natureza não distingue propósitos, não recebe desculpas, não sabe de arrependimentos. A Natureza premeia só, não a cópula, mas a cópula fecunda. Tudo mais não é para ela senão como a flor de lótus, sereia letal dos pântanos e da podridão.

 

[25r]

 

O desenvolvimento desta tragédia, realizou-o António Botto – assim na matéria como na forma – com singular novidade, proba destreza, triste desprendimento. O seu drama de amor é livre da mancha da sensualidade e da mácula da moralização. Tudo se passa exactamente como se passa. O resto é silencio, como Hamlet disse.

 

FERNANDO PESSOA

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2259

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria
Contemporâneos

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
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Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Fernando Pessoa, Prosa Publicada em Vida, edição de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 252-254.
Exposições
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