Durante muito tempo a alquimia foi considerada matéria pouco científica — situando-se entre a magia primitiva e a química. Só no nosso tempo, devido aos estudos de Carl Gustav Jung e Marie-Louise von Franz, foi entendida como matéria de dimensão espiritual, simbólica e mística de grande valor para o estudo dos arquétipos universais, a esfera do inconsciente colectivo. Seria excessiva a listagem dos textos que desde os primórdios da era cristã, em Alexandria, chegaram até nós. Diga-se apenas que é sobretudo desde o Humanismo e o Renascimento europeus que passou a verificar-se, com a tradução do Corpus Hermeticum por Marsilio Ficino, um especial interesse pela dimensão espiritual da alquimia. A dimensão espiritual é ampliada sobretudo no século XIX com a obra de Mary Anne Atwood Suggestive Inquiry into the Hermetic Mystery (1850). Distingue-se aqui a verdadeira alquimia da falsa, tratando-se, na verdadeira Obra, de alcançar um estado extático e perfeito, e não de fazer ouro. As tentativas laboratoriais eram tão inúteis como erradas do ponto de vista de uma iniciação superior. Surge a partir desta época uma divisão da alquimia entre esotérica e exotérica.

Mas é o grande estudioso que Pessoa leu atentamente, A.E. Waite (1857-1942), quem reconhece que na alquimia é sempre de doutrina filosófica que se trata, e nunca de outra coisa. Daí que os adeptos se referissem a si mesmos como “filósofos herméticos”, logo desde Zosimo, no século III da nossa era.

A alquimia espiritual floresceu no século XVIII, e assim vemos a integração dos seus temas e símbolos nos ritos maçónicos e Rosa-Cruz de Alemanha, de Inglaterra e França. Liam-se as obras de Jacob Böhme, teósofo e cabalista cristão, Kirchwegen (com a célebre Aurea Catena Homeri, de 1723 que influenciaria Goethe), Martinez de Pasqually (1727-1774), judeu de origem possivelmente portuguesa que fundou o rito maçónico dos Elus-Cöens, combinando elementos alquímicos e teosóficos; e, não menos importante, Louis Claude de Saint--Martin (1743-1768) cuja doutrina é a do Homem-Deus, tendo influenciado com L’Homme de Desir autores como Goethe e muitos outros, de gerações posteriores, como Pessoa e o Mago Crowley.

Mais uma vez é A.E. Waite o grande estudioso e divulgador em The Secret Tradition in Alchemy (1926), que Pessoa terá conhecido. Refere a Ordem da Golden Dawn e nesse círculo restrito todas estas matérias eram debatidas.

Fernando Pessoa conhece o conceito e o tema, que aborda no sentido filosófico e hermético, mas nunca laboratorial. A sua biblioteca contém os autores que divulgaram as doutrinas referidas. Mas nunca Pessoa se auto-definiu como alquimista. Foi, isso sim, um leitor atento. Para encontrar uma estructura simbólico-  -alquímica na sua obra teremos de ler a sua poesia, onde mais uma vez encontramos exemplos de magnífico entendimento e exercício do que os alquimistas chamavam de “jogo de contrários” e de “conjunção final”; na doutrina dos princípios (três: corpo, alma, espírito); ou dos elementos (quatro: a terra, a água, o fogo, o ar).

Com estas “matérias primas” simbólicas ergue o poeta a sua Pedra, o seu Graal, o seu Elixir de vida. O poema “Chuva Oblíqua”, incluído no Cancioneiro e sem data mas pertencendo provavelmente ao período de 1913-1914, pode ser lido como uma “grelha” simbólica e alquímica tendo em consideração o movimento. “Atravessa esta paisagem o meu sonho de um porto infinito”, a escolha das cores, a presença dos elementos água/terra/fogo/ar, os opostos sol/sombra e, não menos importante, a dimensão onírica muito sublinhada. Toda a paisagem “passa para o outro lado” da sua alma. A inspiração pode ter sido bebida nas experiências dos futuristas. Pois sabemos que até em Duchamp se nota a marca alquímica.

Conclui Pessoa o seu poema com a imagem do andrógino hermético: “E os dois grupos encontram-se e penetram-se / Até formarem só um que é os dois…” A hora “é dupla” e nela o “Pó de oiro branco e negro” cai sobre os seus dedos.

 

É a filosofia hermética, com os seus símbolos alusivos à ânsia de saber, à iniciação, a transformação sofrida, ao conhecimento que se adquire (ou ao qual se aspira sem se chegar a obtê-lo), que nos serve de chave, que nos serve de guia, em muitos dos seus poemas. A sua concepção da filosofia hermética é a de uma forma superior de conhecimento e de revelação. O oculto é para o poeta “o interno, a outra face das coisas”, como escreve num projecto de conto cujo título é “O Filósofo Hermético”, e que se encontra no espólio (Esp 2719 M3/8: ms. s.d.).

Quer se trate de Maçonaria, de Cabala, de Rosicrucismo ou de alquimia, são profundos os conhecimentos de Fernando Pessoa em todos estes domínios, e a sua investigação data de cedo. Em 1906, num caderno de Alexander Search datado de Setembro, encontramos uma referência a um livro sobre alquimia — “de Berthelot: La Synthèse chimique” — e outra a um livro de Papus, L’Occultisme et le spiritualisme; e ainda neste mesmo caderno de 1906 outro livro nos surge, ligado à filosofia hermética: “de Paulhan, Josef de Maistre: sa philosophie” (cf. ESP 144H/7, 13 e 26 respectivamente).

A inquietação metafísica de Charles Robert Anon, ou sobretudo de Alexander Search, ou de Fernando Pessoa ele mesmo, é de repente cortada pela “objectividade mística” de Alberto Caeiro. É outro heterónimo de Pessoa, Thomas Crosse, quem escreve de Caeiro e da sua filosofia: “he is certainly a kind of mystic”; e ainda “the great discovery of Caeiro — the mysticism of objectivity” (ESP 143/1 e 9, mss. s.d.). À voz de Caeiro outras se sobrepõem: Ricardo Reis, Álvaro de Campos. Mas o centro permanece, imutável, em Fernando Pessoa ele mesmo e no seu misticismo hermético. É a filosofia hermética que lhe estructura a vida e a obra”.

 

Bibliografia

Dictionary of Gnosis and Western Esptericism. Wouter J. Hannegraaff (ed.), Brill, Leiden – Boston, 2005.

Fernando Pessoa, Os Trezentos e Outros Ensaios, Ed. Presença, Lisboa, 1988

Fernando Pessoa, Magia e Fantasia, Ed. Asa, Lisboa, 2003.

 

Yvette Centeno