Admitamos que no universo poético de Fernando Pessoa, decisivamente caracterizado, entre outros traços, pela pluralidade das figuras de autor, existe uma poética em que encontramos a inscrição e a figuração da necessidade da heteronímia e que comporta e permite compreender as poéticas dos diferentes heterónimos. Essa poética da heteronímia, enquanto forma de fazer e pensar a poesia, tem sido considerada como uma poética da “impessoalidade”. Na tradição crítica, tal poética é geralmente referida à fronteira da modernidade estética na poesia francesa e, designadamente a um poeta como Mallarmé, que em várias circunstãncias se referiu ao desejo de uma poesia que evitasse o autor, a confissão de um sujeito particular e peculiar, e se elevasse ao estatuto de uma “objectividade ideal” , rede em que o sentido se dissemina, “sonho e canto”, “o Texto [...] falando por si próprio e sem voz de autor”. Num ensaio ou longo poema em prosa, intitulado Crise de Vers, escreve: “A obra pura implica o desaparecimento elocutório do poeta, que cede a iniativa às palavras, pelo choque da sua desigualdade mobilizadas; elas iluminam-se de reflexos recíprocos como uma virtual corrente de luzes sobre pedrarias, substituindo a respiração perceptível no antigo sopro lírico ou a direcção pessoal e entusiasta da frase.”

Esta figuração de um “desaparecimentio elocutório do poeta”, construída contra a figura do poeta segundo a vulgata do romantismo, liga-se a outros tópicos ou princípios da modernidade estética: uma crise e a uma crítica da função representativa da linguagem poética, a noção kantiana da obra de arte como tendo a finalidade em si mesma, uma concepção do poema como “objecto ideal” (a expressão é de Husserl), mais como produção de efeitos do que como expressão de intenções como texto ou escrita, que tenderiam a tornar caducas as figuras da voz e as metáforas respiratórias. A maior parte, senão a totalidade destes princípios de uma poética será retomada por uma linhagem de poetas e outros autores do período modernista da modernidade como Valéry, Proust e  Eliot que, de uma ou outra forma, destacaram a importância do momento crítico no trabalho da invenção ou da composição poética ou literária. Entre eles se encontraria também Pessoa.

T.S. Eliot, poeta de línga inglesa, que conhece bem Mallarmé e Valéry e os liga pelo seu comum apreço por Poe, apresentará, o que ele próprio designa no ensaio de 1914, «Tradição e Talento Individual», como  uma «Teoria Impessoal da poesia» que implica um trabalho de despersonalização que também ele apresenta  como uma condição do caracter autónomo ou puro da obra : “O que acontece é uma rendição contínua de si próprio, como ele é no momento, a algo mais precioso. O progresso de um artista reside num contínuo auto-sacrifício, numa extinção contínua da personalidade” (27). “A poesia não é um soltar da emoção mas uma fuga à emoção; não é a expresssão da personalidade, mas uma fuga à personalidade” (34). “A emoção da arte  é impessoal. E o poeta não pode alcançar essa impersonalidade sem se render totalmente à obra a fazer” (35). A despersonalização relaciona-se com um especial “sentido histórico” que passa pela “ percepção não só do passado do passado mas da sua presença; o sentido histórico, continua Eliot, compele o homem a escrever não apenas com a sua própria geração no sangue, mas também com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero, e nela a totalidade da literatura da sua pátria, possui uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea.” ((23). As formulações coincidentes em Pessoa são por vezes impressionantes. Um exemplo apenas: «Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero. / A novidade em si mesma, nada significa, se não houver nela uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novidade sem que haja essa relação. Saibamos distinguir o novo do estranho, o que, conhecendo o conhecido, o transforma e varia, e o que aparece de fora, sem conhecimento de coisa nenhuma» (PIAI 390-391).

Entretanto, os autores que temos vindo a referir não esgotam a diversidade das poéticas do modernismo nas literaturas a que pertencem, nem sequer no que diz respeito às figurações destinadas a ausentar o Autor da (sua) obra ou a sair do sujeuito-autor da vulgata romântica. A “morte do autor”, enquanto destituição do Autor dos papéis de “Pai e Proprietário” do sentido da texto, declarada por Barhes, enquanto lei de toda a escrita e acontecimento histórico referido a Mallarmé, parece-se demasiado com um “anonimato transcendental” (a expressão é de Foucault) que bloqueia uma teoria da escrita  e sobretudo não deixa ver a diferença entre as poéticas da modernidade estética e do modernismo, simplifica em excesso as relações tensas entre a modernidade estética e alguns românticos e reduz demasiado a heteronímia pessoana, na sua relativa singularidade.

Pessoa veio a preferir a palavra heterónimo à palavra pseudónimo de que ainda encontramos o rasto sob a forma de um advérbio de modo, numa carta a Armando Cortes-Rodrigues de 19 de Janeiro de 1915: “Mantenho, é claro, o meu propósito de lançar pseudonimamente a obra Caeiro-Reis-Campos. Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida. [...] O que eu chamo literatura insincera não é aquela análoga à do Alberto Caeiro, do Ricardo Reis, ou do Álvaro de Campos (o seu homem, este último, o da poesia sobre a tarde e a noite). Isso é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele” (TCI 109, subl. nossos). Entretanto, se a palavra à superfície do texto é ['pseudónimo'], a explicação a seguir utliza já o tipo de formulações que justificam o uso de “heterónimo” / “heteronímia”. Já em 1946, Jorge de Sena sublinhava a diferença de signifcação entre pseudónimo e heterónimo: “Da própria etimologia da palavra, das suas obras que por certo conheceis [...], podereis concluir que não são pseudónimos usados pelo poeta em diferentes ocasiões da sua vida. São mais e menos do que isso” (SENA 1959: 178). De facto, pseudónimo é no fundamental um nome falso inventado por um autor para esconder o seu nome próprio, a sua identidade civil. Objecto de um jogo e de determinadas intenções, o pseudónimo implica uma operação de ocultação ou de substitução do nome próprio. Por seu turno, heterónimo é um nome outro, um nome diferente. E no quadro de uma heteronímia plural, como a de Pessoa, implica não a operação de ocultação do nome próprio que o pseudónimo sempre supõe ou para a qual remete, mas uma operação de repetida diferenciação, de continuado estranhamento ou alterização que, no limite, como em Pessoa, é simultaneamente um processo de transformação em outro e de perda do nome próprio. Como estes nomes próprios são nomes de autor, os heterónimos não apenas representam o devir outro (nome de) autor, mas imlicam a alteridade do nome própio enquanto nome de autor. É por isto que Fernando Pessoa passará e continuará a falar dos seus heterónimos quando esses nomes já perderam qualquer função de ocultação do nome Fernando Pessoa; assim como se pode dizer que esse nome “Fernando Pessoa” é o de um outro heterónimo. Como o notou também Jorge de Sena (1959: 166; 1961: 21-23)  é o próprio Fernando  Pessoa a sugeri-lo ou a insinuá-lo: “Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim -  Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa,  e quantos mais haja havidos ou por haver” (PIAI 94). A despersonalização pessoana figurada na heteronímia é também tematizada na sua poética através da dramaticidade interna a certos “graus da poesia lírica” (PETCL 67-699). Num fragmento dactilografdo, datável de 1930, Pessoa estabelece um escala da poesia lírica, cujo grau mais alto corresponde a uma descrição possível da heteronímia e cuja ascensão implica um processo crescente de intelectualização e de despersonalização. Aduzindo sempre exemplos da poesia inglesa, a despersonalização começa no terceiro grau, torna-se plena no quarto, de que são exemplos diferentes “Shakespeare, poeta substancialmente lírico erguido a dramático pelo espantoso grau de despersonalização que atingiu”, e Browning. Até ao quinto grau: “Suponhamos, porém, que o poeta, evitando sempre a poesia dramática, externamente tal, avança ainda um passo na escala da despersonalização. Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos, tenderão a definir para ele uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente [...]” (PETCL 69). Entender-se-á que o que diferencia os heterónimos das personagens dos monólogos dramáticos de Browning é que aquelas são nomes de autores ou de personagens de autor.

Por este caminho, Pessoa leva-nos não propriamente ao “anonimato transcendental”, mas ao singular ponto de encontro entre a tradição moderna da “impessoalidade” e uma outra tradição, a da alterização autoral, a do “JE est un autre” de Rimbaud que, sendo igualmente moderna, tem entretanto um elo com a “capacidade negativa” que forma “o poeta camaleão”, na poética de um poeta romãntico como Keats, para quem também Shakespeare tinha essa capacidade.

 

Bibl.: J. A. FLOR , “Discursos de Alteridade”, pref. a Robert Browning, Monólogos Dramáticos, Lisboa, Regra do Jogo, 1980; J. SENA, Da Poesia Portuguesa, Lisboa, Ática, 1959; J. SENA, O Poeta é um Fingidor, Lisboa, Ática, 1961.

 

Manuel Gusmão