Filho de um capitão da marinha francesa e, ele mesmo, viajante incansável de países, desertos e correntes marítimas, Rimbaud partiu para África em 1875 resignando à poesia. Antes disso, deixou fixadas algumas vertigens e rupturas decisivas na Arte Literária e no pensamento da modernidade. Lugares onde a voz poética de Rimbaud ressoa em conceitos construídos a partir de expressões suas, tais como: changer la vie, alchimie du verbe e Je est un autre. Nas chamadas “Cartas do Vidente”, de 13 e 15 de Maio de 1871, Rimbaud propõe a experiência poética como o processar mágico e alquímico de um imenso e racional desregramento de todos os sentidos na busca incessante do sentimento e da transgressão de todas as sensações, que a consciência do eu ser um outro torna possível. A esta forma de experiência poética, o Álvaro de Campos de Pessoa replica: «Os outros também são eu»; «Sentir tudo de todas as maneiras». E Sá-Carneiro replicará com o verso «Eu não sou eu nem sou o outro», que, tivesse ou não sido uma resposta consciente, jamais deixaria de soar como um eco daquele eu é um outro.

Na edição de 2003 de O Silêncio dos Poetas, Alberto Pimenta pressentiu um eco e uma réplica de tons semelhantes, ao confrontar o soneto Le Dormeur du Val de Rimbaud com as seis quintilhas de O Menino da sua Mãe de Pessoa: o soldado jovem dorme morto no vale sangrando as duas balas dentro do peito e, no plaino abandonado, de balas trespassado, duas, de lado a lado, o menino jaz morto, e arrefece; ambos, dormeur e menino, jovens fardados e, em ambos os poemas, a omissão do cair da arma — omissão relevante já que, desde a guerra que se seguiu ao rapto de Helena, a descrição do cair da espada ou da espingarda da mão do guerreiro fatalmente ferido é um topos literário a que poucos fogem. Mas só no campo das probabilidades é que Pimenta, ou um outro, poderia afirmar que houve em Pessoa uma réplica consciente ao soneto de Rimbaud: era preciso que aparecesse um documento qualquer com a confissão de Pessoa que, mais do que a litografia que viu numa pensão onde jantou, O Menino da sua Mãe foi inspirado pelo desejo de responder a Le Dormeur du Val. Caso exista, esse documento ainda não apareceu. Mas, em 2005, especuladores e cépticos puderam finalmente ver testemunhada uma réplica consciente de Pessoa ao poeta vidente nas, até esse ano inéditas, seis quintilhas e uma sextilha de A Vida de Arthur Rimbaud: «Eu que nunca verei a aventura de perto / Que nunca beijarei os lábios da Distância / […] Eu que nunca serei mais que o que anseia / E já sabe, ao nascer, que não alcança / Aquilo que parece ser a esp'rança / […] // Invejo a tua vida arremessada, / Atirada p'ra longe, p'ra perder-se... / Vida que abre as velas, e ei-la a encher-se / De si sem pensar em ter uma chegada, / E de estar longe sem pensar em ver-se. // Invejo a tua vida e tenho dela / Que não foi minha, como que saudades, / Descem em mim obscuras ansiedades / Um mar em mim tormentas encapela» (FP I 141-142: nesta edição lê-se “tormentas em capela”, lapso aqui corrigido).

O poema é datado de 20-11-1912. Neste ano, Sá-Carneiro encontra-se em Paris e, separados pela distância geográfica, ele e Pessoa vão aproximar-se literariamente numa intensa troca de correspondência. Datam de 16 e 20 de Outubro de 1912 os primeiros envios de Sá-Carneiro: a 16, um postal de duas linhas; a 20, uma carta mais longa que termina num «grande abraço de sincero amigo». Talvez naqueles versos de Pessoa não esteja apenas o eco das ondas encapeladas que “Le Bateau Ivre” de Rimbaud vai singrando: pressente-se neles a réplica, por exemplo, a certos versos e topoi de Sá-Carneiro nos poemas A um Suicida: «Oh!, quantas vezes deses’prançoso, / Não invejei a tua esp’rança!». (PCSC 232); Partida: «Sei a Distância, compreendo o Ar […] / Sou taça de cristal lançada ao mar, / […] O meu destino é outro — é alto e é raro. / Unicamente custa muito caro: / A tristeza de nunca sermos dois…». (PCSC 27); e Dispersão: «Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim. / […] (As minhas grandes saudades / São do que nunca enlacei. / Ai como eu tenho saudades / Dos sonhos que não sonhei!...)». (PCSC 33 e 35). Claro que, como estes poemas são de 1913, pode a réplica ter sido em sentido contrário: é Sá-Carneiro quem responde a Pessoa. Mas, qualquer que seja o sentido da réplica, talvez, por eventual lapsus calami de Pessoa, o 11 (XI, no manuscrito) na datação de A Vida de Arthur Rimbaud apareça no lugar de um 10: poderia o poema de Pessoa ter a intenção de assinalar e celebrar um e outro acontecimento — o aniversário de Rimbaud e a leitura da primeira carta que lhe enviou de Paris o seu sincero amigo Sá-Carneiro, a 20-10-1912. Por exemplo, segundo a leitura de Alberto Pimenta, uma celebração semelhante terá acontecido, anos mais tarde, com O Último Sortilégio: «uma interpretação dramática da “magia da transgressão”» que data do aniversário bimilenar de Virgílio: 15-10-1930. Este exemplo, por afinidades de datação, liga-se a um outro que ocorre em Aniversário: em carta a Gaspar Simões de 4-7-1930, Pessoa diz ter escrito o poema no seu aniversário, a 13-6-1930, mas percebe, talvez mesmo ao escrever, que nos seus versos o outro é um eu e, por isso,fixa o poema com a data de 15-10-1929, e, desta forma, oferece Aniversário à obra de um outro aniversariante: o engenheiro naval sensacionista, conhecedor desregrado de imensos cais e alfândegas dispersos pelas sete partidas, Álvaro de Campos.

 

 

Bibl.: PIMENTA, Alberto, O Silêncio dos Poetas, 2.ª ed., Lisboa, Cotovia, 2003; Id., A Magia que Tira os Pecados do Mundo, Lisboa, Cotovia, 1995; RIMBAUD, Arthur, L’œuvre Intégrale Manuscrite (edição de Claude Jeancolas), Paris, Textuel, 1996.

 

Marco Alexandre Rebelo