Identificação
Petição a favor de William Shakespeare, traduzido.
[BNP/E3, 14E – 82-83]
Balança de Minerva
Petição a favor de William Shakespeare,
traduzido.
Uma torva e peçonhenta maldade – maldade excessiva mesmo para o coração, tão de ofício viperino, de um editor – levou os srs. Lello e Irmão, não sei porque azar póstumo de Shakespeare, a escolher para vítima prolongada aquela, a maior de todas as almas que se têm enganado de mundo. Decidiram fazer passar a Shakespeare tractos de tradutor. E como encontrassem vis e criminosos precedentes, em ambos os lugares onde há más fadas, para que, sem ousadia de originalidade, neles alicerçassem o seu grande crime, escolheram para mestre de obras a figura, doravante laivada de perversão, do dr. Domingos Ramos. E passaram a insultar os descendentes dos navegadores com incutir-lhes a ideia de que é possível traduzir o verso e a prosa eternos de Shakespeare para uma prosa portuguesa excessivamente transitória.
[83r]
Apenas folheei, e nem uma linha li, das traduções que o sr. dr. Domingos Ramos terá imortalmente que expiar. Porque não é com a competência de tradutor-de-inglês do sr. dr. Ramos que eu implico e esbarro. É com a sua competência para traduzir Shakespeare, visto que lhe cai em cima e o reduz a prosa.
Shakespeare só se deve ousar traduzir o verso para verso, e a prosa para prosa, e que verso e que prosa têm de ser! Mas vá que o não seja; o tradutor terá falhado numa boa causa. Agora propõe-se pôr em mera prosa a prosa e o verso de Shakespeare, como se se estivesse traduzindo de uma tradução inglesa de Shakespeare para Rudyard Kipling – isso é que não pode ser, isso é que pede reclamação diplomática; justo ultimatum, intervenção estrangeira…
Apelo, indignado e crítico, para quantos em Portugal conheçam Shakespeare. Bem sei que não são mais que quatro ou cinco. Mas as grandes convicções valem exércitos. Com dois homens se fez o regicídio.
Fernando Pessoa
[83v]
Balança de minerva
Paixão de William Shakespeare.