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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP/E3, 14-1 – 22
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[Sobre a tradução]
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre a tradução]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 141 – 22]

 

A virtude principal da literatura – o não ser música – é ao mesmo tempo o seu principal defeito. Tem que ser composta e expressa em uma língua qualquer. Tem, portanto, por mais largamente que essa língua seja falada ou conhecida, que se não dirigir plenariamente à maioria do género humano. Aquilo por onde é mais explícita que qualquer outra arte, por isso é mesmo é menos universal que ela.

 

Ocorre, pois, perguntar por que processo, em literatura, é alguém universalmente célebre, como, ainda que poucos, há relativamente tanto que o são; porque processo são célebres no espaço, e sobretudo no espaço e no tempo, quando forçosamente, e mormente na poesia, que é a espécie literária mais alta, nenhuma tradução, supondo que existe, pode dar conhecimento da obra em sua completa e verdadeira vida.

 

Porque o certo é que, a maioria de nós, não mentimos nem fingimos quando, ignorante do grego, sofremos o entusiasmo de Homero, ou, hóspedes e peregrinos no latim, temos o culto de Horácio ou de Catulo. Não mentimos nem fingimos; pressentimos. E esse pressentimento, feito de não sei que misto de intuição, de sugestão e de entendimento obscuro, é uma espécie de tradutor invisível, que acompanha pelas eras fora, e torna universal com a música, a arte dada em linguagem, esse produto de Babel, com cuja queda o homem pela segunda vez caiu.

 

O que há de mais alto neste mundo fala, quer queira quer não, uma linguagem simbólica, entendida por poucos com a verdadeira chave hermética, a inteligência, entendida por mais com o instinto de que há que entender, que é a intuição. São os primeiros, para o caso da obra literária, os que conhecem como naturais a língua em que ela está escrita: são os segundos os que e não conhecem assim, ou de todo a não conhecem, mas que, não conhecendo a língua, conhecem todavia a obra.

 

Mas há mais, e mais estranho. Podemos, por intuição, ou o que quer que seja, figurar-nos a alma e a vida de uma obra poética de que não conhecemos nada, ou, no melhor, não conhecemos mais que uma tradução em prosa, que é outra forma, mais complicada, do mesmo nada. Muitos de nós, porém, nos figuramos, com razoável exactidão, a alma e a vida de obras que nunca lemos, por vagas reminiscências de referências, por obscuras e casuais

 

[22v]

 

alusões, ou de obras, ainda, em idiomas estranhos, e de que não há, ou pelo menos nunca lemos, tradução em idioma que no-lo não seja. Aqui o tradutor invisível opera invisivelmente. Já não intuicionamos: adivinhamos. É como se houvesse em nós uma parte superior da alma que soubesse por condição todos os idiomas e tivesse lido por natureza todas as obras.

 

Afinal, que é uma obra literária senão a projecção em linguagem de um estado de espírito, ou de uma alma humana? E essa obra é o símbolo vivo da alma que a escreveu[1], ou do momento dessa alma – uma pequena alma ocasional – que a projectou. Porque não haverá de alma para alma uma comunicação oculta, um entendimento sem palavras, pelo qual adivinhemos a sombra visível pelo conhecimento do corpo invisível que a projecta, e entendemos o símbolo, não por o conhecermos visto, mas por sabermos aquilo de que é símbolo?

 

Quem sabe, até, se em qualquer estado antenatal, não vimos frente a frente a obra em seu espírito, que não no corpo verbal que aqui tem; que, ouvindo aqui só falar nela, desde logo sabemos de quem se trata, na sua verdadeira essência e vida; e que, pois, lendo mal, ou nem sequer lendo, não é em nós suscitado, não um entendimento, ainda que intuitivo, mas uma funda e subtil recordação?

 

Quem sabe, ainda, se, nesse estado antenatal, livres ainda do espaço e do tempo, não vimos já tudo, aqui hoje passado ou aqui hoje futuro, sub especie aeternitatis; e assim, se pudermos despertar em nós essa anamnesis, não estamos hoje, nós mesmos nossos tradutores invisíveis, senhores inconscientes das obras ainda por nascer no decurso futuro do mundo?

 

Não sorrio por isso – ou, melhor, não sorrio sempre, nem prontamente dos que me falam de Shakespeare sem que saibam inglês – e escolha Shakespeare para exemplo porque ele é dos poetas mais fielmente casados com a índole e as possibilidades do idioma em que compôs, e, como bom marido, com as maneiras e formas de enganar esse idioma. Não sorrio. Quem sabe se, em qualquer incarnação anterior, o que me fala não conheceu Shakespeare como aqui foi, não falou com ele como aqui falou, e não está sendo, sem que ele ou eu o saiba, o tradutor invisível de um grande amigo ignorado?

 

 

[1] escreveu /(compôs)\

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/4218

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
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Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer, Tomo II, Lisboa: Editorial Estampa, 1990, pp. 109-111.
Exposições
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