Imprimir

Medium

Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP/E3, 14-1 – 23-30
Imagem
[Sobre a crítica]
PDF
Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre a crítica]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 141 – 23-30]

 

Um dos erros mais graves, porque dos mais vulgares, e tanto mais vulgar porque se apoia na vaidade, que é a mais vulgar das qualidades humanas, é o do crítico, ou o simples leitor, se erigir, espontaneamente, em crítico absoluto, em autoridade universal. Isto sucede com grande frequência em matéria artística; por vezes, até, em matéria científica.

 

Há quem chegue ao ponto de, sem saber nada, a valer, de medicina, emitir opiniões sobre doenças e casos clínicos. Há, mas isto é mais raro.

 

Um indivíduo qualquer, desconhecedor do que seja o cálculo diferencial, não diz, ao folhear um livro sobre o assunto: “isto é incompreensível”, ou, “este homem não sabe o que diz”; diz simplesmente, “não compreendo isto.” Mas o mesmo indivíduo, se for também desconhecedor de metafísica, já vulgarmente não diz, ao folhear um livro sobre esse assunto: “não compreendo isto”; a sua tendência é para dizer: “que confuso que é este homem!”, ou, “isto é incompreensível”. É que o ponto técnico da metafísica consiste em pensamentos e ideias, e não nas palavras empregadas, que são as correntes. E se o mesmo indivíduo folhear um livro em que essas ideias metafísicas estejam expostas em verso, redobrarão as suas acusações ao autor por aquilo que é, afinal, a ignorância dele que está lendo.

 

Ninguém, desconhecedor de medicina, pasma de que não compreenda determinado passo de um livro médico escrito cerradamente na terminologia da matéria. Mas qualquer indivíduo, ignorante de metafísica em geral e da de Hegel em particular, se acha apto a querer compreender, a criticar, e, se for sincero, a censurar, o verso hegeliano de Antero:

 

Não-ser, que és o único absoluto!

 

São assim a maioria dos leitores e dos críticos. Outros, em menor número, não levam a tal ponto a sua vaidade instintiva, a sua divinização de si mesmos. Não levam a tal ponto, mas a algum ponto a levam. Poderão reconhecer certo poema, ou certo verso, como metafísico, e, sabendo-se incompetentes na matéria, desistir de o apreciar. Mas raras vezes se sentirão incompetentes para apreciar certo tipo de emoção, mais subtil, mais intensa ou mais complexa, do que as que em si conhecem; aí cairão no “é muito mau”, no “que trapalhada”, no “isto é incompreensível.”

 

[24r]

 

Essa presunção, assim vulgarmente tida, assenta contudo num triplo erro. O primeiro erro está em não se reparar que na literatura, visto que a sua matéria, a linguagem, é o veículo das ideias e das emoções, se reflectem, de um modo ou de outro, todos os conhecimentos humanos, e que portanto ela pode incluir elementos derivados da história, da filosofia, das outras artes, das ciências todas. Certa imagem pode derivar o seu fulgor de um pensamento metafísico. Certa expressão pode derivar o seu brilho de uma alusão matemática ou médica. Certo passo pode derivar toda a sua força de uma alusão histórica. Na proporção em que formos ignorantes da matéria onde a imagem, a frase ou o trecho foi buscar o seu fundamento, nessa mesma proporção seremos incompetentes para nos pronunciar a seu respeito. A crítica exige portanto, como primeira condição, uma cultura vasta, ainda que não profunda, para que convenientemente se compreendam os reflexos literários de fenómenos culturais estranhos à vida comum.

 

O segundo erro está em não se reflectir que na literatura – visto que a sua matéria, a linguagem, é o veículo de todas as emoções, sobretudo das mais profundas, das que não podem caber na acção, das que excedem a capacidade da vontade – se reflectem os temperamentos, isto é as somas das emoções mais profundas, dos que por ela se exprimem. Ora as nossas emoções mais profundas, por isso mesmo que são profundas, são as que mais nos separam do ambiente, imediato ou mediato, social ou cultural, em que vivemos. Mas a mesma circunstância de que são profundas as torna, visto que somos homens, mais próximas na essência, qualquer que delas seja a forma, das emoções comuns a todos os homens de todos os tempos. O que nos afasta dos homens aproxima-nos da humanidade. Quanto mais profundas forem as emoções, mais alto será, dado o necessário poder de expressão, o mérito da obra ou das obras. E quanto mais profundas as emoções, mais alto será, também, o seu grau de humanidade, de universalidade. Por isso os maiores poetas da humanidade são também os mais humanos, e porque são os mais humanos são os mais universais.

 

Sucede, porém, que quanto mais nos aproximamos da universalidade, tanto mais nos afastamos da particularidade. O poeta que, no seu tempo, mais se aproxime da universalidade humana, é, por isso mesmo, o que mais se afasta do espírito desse seu tempo, a não ser que nele haja elementos acessórios que, por si, o aproximem do tempo em que vive. Shakespeare, o mais humano e universal dos poetas, não foi compreendido no seu tempo senão como criador de figuras cómicas, como Falstaff; e o Falstaff que os isabelianos apreciavam era, não o Falstaff-comédia mas o Falstaff-farça, não a humanidade inteira que ele é por dentro mas o palhaço que era por fora. (não no Hamlet que elle é por dentro, mas o Yorick que elle é por fora): Shake-

 

[25r]

 

speare é de todos os tempos por o que nele houve de fundamental, a intuição humana; foi do seu tempo por um elemento que nele havia de acessório, a piada.    

 

Resulta de aqui que, quanto maior o poeta, menos será compreendido no seu tempo, ou, pelo menos, na sua geração – isto, acentuo, nos elementos fundamentais que o fazem imortal, não nos superficiais que o fazem célebre. E aqui nos aparece a segunda condição da crítica – o não ser o crítico um homem do seu tempo, o haver nele o poder de, quanto possível, se despir das influências do ambiente, imediato ou mediato, de não tomar como bitolas as figuras do passado, por grandes que sejam e seguras em sua justa grandeza; de saber, de se esforçar por aprender, a distinguir o universal do particular, a humanidade eterna da humanidade contingente da sua geração. Só assim poderá distinguir a originalidade da excentricidade, a extrema originalidade da loucura. Às vezes certa semelhança temperamental entre o crítico e o criticado pode levar aquele a um recto juízo que, sem esse acidente, não seria dado. É caso de fortuna, que dificilmente se repetirá, pois a mesma originalidade dos grandes escritores, distinguindo-os entre si, também fará que essa coincidência temperamental, que acidentalmente com um autor, se torna a dar com outro. Felizmente para os críticos, os poetas ou escritores verdadeiramente grandes são em número escasso, e a distância entre a humanidade fundamental e a aparente extravagância superficial nem sempre tão grande que seja preciso mergulhar muito, da segunda, para chegar à primeira.

 

Deixando, porém, esses píncaros da crítica, acheguemo-nos às simples encostas da crítica corrente. Aqui o perigo, na ordem do erro que venho citando, é o de se confundir a originalidade com a loucura ou a brincadeira, a singularidade com o mau-gosto, a novidade de expressão com a incompetência para exprimir. Às vezes convém fazer um verso frouxo, errar, até, um verso para obter determinado efeito rítmico, que o ritmo regular, em que o poema esteja escrito, estorvaria ou impossibilitaria. Que nesse caso o crítico que o verso errado quer dizer ritmo certo. Mas até isto, e o mais de que isto é exemplo, é tantas vezes, e para tantos, tão difícil!

 

[26r]

 

O terceiro erro vulgar da crítica prende-se tanto com o segundo: é, aliás, o mesmo erro de outra maneira, ou produzindo um outro efeito. As emoções profundas, se no fundo produzem a universalidade e a humanidade, produzem à superfície, isto é, ao passar para a expressão através dos conceitos, das impressões acumuladas, de tudo quanto constitui o nosso ser social e comunicável, um efeito parecido com a originalidade, mas que não é a originalidade – efeito que pode coexistir com a originalidade, ou existir sem ela. É o que convenientemente chamaremos a singularidade. Ambas as coisas se baseiam na novidade, mas, ao passo que a originalidade é a novidade no campo mental, a singularidade é a novidade no campo emotivo. Um grande poeta pode não ser, psicologicamente, um “caso” curioso; pode sê-lo um poeta de menor relevo. O primeiro é forçosamente mais original; o segundo evidentemente mais singular.[1]

 

Ora as dificuldades que cercam a crítica no caso de distinguir entre originalidade e excentricidade acompanham-na no de distinguir entre personalidade e afectação (?). Há entre estas duas a diferença que, no físico e visível, existe entre a elegância natural e a que é artificialmente produzida por incidentes de trajo e preparo; e todos sabem que por vezes – e neste campo os olhos, mais expertos que o cérebro, decidem – a distinção entre as duas oferece certa dificuldade. Para distinguir entre a personalidade verdadeira e a falsa, força é que o crítico consiga perceber quem o artista é, para ver se é esse quem, ou um quem postiço, que está expresso na obra. O caminho para isso é perguntar-se, ante a obra: Em quem, em que espécie de alma, é que esta expressão seria natural? Se a expressão for artificial, copiada ou de outro modo errada, o crítico sentirá isto: esta expressão não seria natural em ninguém; ou, esta expressão seria natural em X, que este copiou. /?/

 

[27r]

 

Segue de aqui que o verdadeiro crítico há que reunir duas qualidades: uma cultura vasta, embora não seja profunda, para que possa compreender o que de diversos ramos da ciência, da arte ou da especulação, se encontre, de um modo ou de outro, reflectido nas obras de arte; e um grande poder de despersonalização, para que prontamente se integre em estados de espírito alheios aos que lhe sejam frequentes ou conhecidos, e assim possa sentir os sentimentos alheios, os sentimentos que não sente. Desta segunda qualidade nascerá naturalmente a imparcialidade.

 

Referi-me aqui aos defeitos instintivos e naturais dos que pretendem ser críticos; não me referi aos defeitos artificiais e acidentais, como seja a intromissão, em crítica de arte, de qualquer elemento, moral, político, filosófico ou religioso. Não há mister que me refira a tais defeitos, pois, ainda que sejam vulgares, todos os reconhecem como defeitos, e o crítico que censura o livro de um católico por ele crítico ser anticatólico, sabe perfeitamente que está sendo mau crítico. Essa espécie de crítica vale tanto como o que procede de uma antipatia pessoal pelo artista; e é, de facto, no fundo a mesma coisa, pois é uma antipatia pessoal por um motivo impessoal.

 

[28r]

 

Para se avaliar do mérito de um poeta, ou, aliás, de qualquer artista, há três coisas que perguntar, sucessivamente: (1) que pretende ele exprimir? (2) de facto exprime o que pretende? (3) exprime só o que pretende? Se estas três circunstâncias se dão, pode desde logo afirmar-se que o artista é um artista de mérito; o grau ou nível de mérito é outro assunto, mais difícil de provar ou de definir, pois que na nossa opinião dele intervêm elementos individuais, intransmissíveis, como o gosto, a simpatia pelos temas tratados, e outros assim.

 

A primeira pergunta, disse, é esta: que pretende o artista exprimir? Não podemos culpar Cesário Verde de não ter o poder de pensamento de Antero de Quental, porque Cesário não o pretendia ter nem exprimir. Se, porém, determinado poeta, por igual destituído de capacidade filosófica e especulativa, tentar fazer poemas dessa natureza, legitimamente o culparemos de não ter tal capacidade, visto que pretende tê-la. E os versos desse poeta serão maus, desde logo, sem mais; ou pelo menos serão defeituosos em certo pormenor, que é esse.

 

Segue de aqui, corolariamente, que quem exprime de facto o que pretende – é a segunda pergunta – tem necessariamente mérito; pois, se exprime de facto o que pretende, é que pode exprimi-lo; e, se pode exprimi-lo, é que essa coisa está “certa” com a personalidade do expressor. O poema, ou obra, será “individual”, haverá nela “personalidade”.

 

A terceira pergunta, que fecha o ciclo, é esta: exprime o artista só o que pretende? É a pergunta aparentemente mais obscura de todas. Resume-se ela, porém, em se querer saber se à expressão do que se pretende exprimir se agrega matéria estranha, ou por dispensável para a expressão {…}                

 

[29r]

 

Isto, que só rara e só grotescamente se dá em matéria científica, sucede com frequência em matéria artística, e sobretudo literária.

 

Raro é quem, desconhecedor de medicina, pasme de não compreender um livro ou um artigo puramente clínico, escrito cerradamente na terminologia da matéria. Mais raro ainda é quem, ignorante do cálculo diferencial, estranhe não compreender um livro sobre o assunto e trate o autor de confuso ou incompreensível. E digo “mais raro” porque, ao passo que o livro sobre cálculo é visivelmente técnico, nos próprios símbolos matemáticos que emprega e em cuja exposição ou discussão essencialmente consiste, o livro de medicina, por técnico que seja, mais frequentemente se servirá de linguagem corrente, e aqui e ali, nos interstícios da técnica, não será a um leigo senão incompreensível.

 

Quando porém passamos de matéria visivelmente técnica, isto é, como tal reconhecida pelos leigos nela, para matéria, em certo modo também técnica, mas que se não serve senão de palavras quase todas do uso corrente culto, começa a aparecer a confiança vulgar do crítico na sua competência para apreciar, por escassa que verdadeiramente seja. Assim é que criaturas totalmente destituídas de capacidade metafísica ou de cultura filosófica frequentemente não hesitam em ter opiniões sobre escritos que versam assuntos de filosofia ou teologia. O mais ignorante dos sub-homens do Registo Civil julga-se apto a ter o que se chama “ideias” sobre a existência de Deus e a Trindade Divina. E porque é isto? Não só pela mesma razão que torna mais reconhecível como técnico o livro sobre cálculo diferencial que o livro de medicina – e mesmo os assuntos filosóficos tratados em linguagem que pouco difere da corrente; mas também porque a filosofia, tratando de matéria objectivamente indemonstrável, não é uma ciência, e para o que não é ciência cada homem se julga natural e erradamente tão competente como qualquer outro.

 

Se isto já é assim frequente com a filosofia, que todavia ainda conserva – não tanto nas mesmas palavras, porém no uso e agrupamento delas – qualquer coisa de palpavelmente técnico, especial e separado, muito mais frequente se torna com a literatura, que usa palavras correntes no sentido corrente, que não as agrupa senão na modalidade externa chamada estilo, e que não tem outra técnica senão a, facilmente compreensível, de ser em verso ou em prosa. Aqui quase toda a gente que presume de lida ou de culta se julga competente para ter opinião. Aqui não se diz já, “Não compreendo”; diz-se “É incompreensível”. Aqui já não é, “Isto é técnico de mais”; é “Como isto é mau!”, “Como isto é confuso!”  

 

[30r]

 

O homem de génio, dizia Goethe, é do seu tempo só pelos seus defeitos. A frase é incompleta: não é só pelos seus defeitos, senão também pelos seus méritos inferiores.

 

/A inversa também é, em geral, verdade. Das figuras literárias altamente apreciadas no seu tempo podemos em geral profetizar um correspondente desapreço da posteridade: diminuem, quando de todo não esqueçam. Quando me falam de Paul Valéry (?) lembro-me sempre de Delille. Mas pode dar-se o caso inverso do que sucede com aqueles grandes poetas que têm méritos inferiores, susceptíveis de o seu tempo os entender: pode haver num poeta cheio de virtudes de terceira ordem, e portanto célebre na sua época, uma pequena dose, lá no fundo, de universalidade: por ela se salvará./

 

/Por isso todo crítico prudente deverá abster-se, quanto possa, de entrar em grandes avaliações de autores contemporâneos, sobretudo se neles houver qualquer elemento que se preste à confusão fácil entre originalidade e excentricidade, ou qualquer confusão de semelhante espécie. Mais vale estudar, quanto possível, o “caso” psicológico desse autor, evitando a concessão de valores (?), que o próprio dedicar a um autor um estudo desses prova suficientemente que o crítico algum mérito encontra nele.

 

Não só dou este conselho pelas razões que já expus, mas também por outra razão. Qualquer contemporâneo nosso, e mormente se for também nosso conterrâneo, vive no mesmo ambiente que nós, sofre as mesmas influências de ambiente, é portanto igual a nós em certos respeitos, é nós-mesmos em certos respeitos. E a nós-mesmos dificilmente criticamos, por motivos que não são já críticos, mas simplesmente mentais.

 

[1] singular. /(pessoal­-)\

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/4219

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

Palavras chave

Locais
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Publicação parcial: Rita Patrício, Episódios - Da Teorização Estética em Fernando Pessoa, Braga, Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, 2008 [cf. Rita Patrício, Episódios - Da Teorização Estética em Fernando Pessoa, Vila Nova de Famalicão, Húmus, 2012, pp. 439-440].
Exposições
Itens relacionados
Bloco de notas