Identificação
Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 1 de Abril de 1913.
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Paris 1.º abril 1913
Meu querido Fernando Pessoa,
Pelo mesmo correio envio-lhe um n.º do Mercúrio de hoje aonde o Ph. Lebèsgue fala do meu livro. Saiu pois certa a profecia de você. Curiosa a evocação do nome do António Patrício ao lado do meu, e do António Patrício autor do Homem das Fontes... Peço-lhe que na sua próxima carta me acuse a recepção do n.º do Mercúrio.
Actualmente trabalho na conclusão daquela peça Irmãos que você conhece em esboço. O nome porém de forma alguma se pode conservar pelas razões que lhe vou expor:
A peça é, no seu foco, o estudo do carácter do «Irmão» e, sobretudo, desta circunstância psíquica: um homem cometeu um crime; demonstram-lhe que se enganou. E ele que se torturava por o ter cometido, mais desoladoramente torturado fica ao saber-se inocente. Porque tudo então foi inútil, todos os seus combates de alma, toda a sua vida, numa palavra. E depois, sobretudo, vê-se despojado da beleza – beleza dolorosa, mas em todo o caso beleza – que a tanta ânsia amarga suscitava na sua vida. A anedota dos irmãos que não são irmãos, o amor incestuoso, apenas servem de armadura ao caso psicológico que se pretende evidenciar e, mais importantemente, para estabelecer a atmosfera torturada, perturbadora. Logo chamar ao trabalho Irmãos seria um erro. O leitor imaginaria sem dúvida que o fim principal do artista fora estudar um drama de família e um caso passional, um mero caso passional. E eis do que se não trata. O título muitas vezes pode ter importância sobre a obra. E é este um dos casos, em que a deturparia, obscureceria – erraria.
De dois títulos me lembrei e ambos me agradam, optando entanto pelo 1.º.
1.º – «Um Estudo a Ruivo»
2.º – «Crime Perdido»
«Crime Perdido» é um belo título mas peca talvez por defeito contrário ao primeiro. Ilumina, aclara em demasiado o pensamento do autor e restringe demasiadamente também. Enquanto que o outro, estranho, bárbaro na consonância, não localiza nem obscurece – é lato, envolve toda a acção. Com efeito não se deve de forma alguma desprezar o carácter da irmã e o caso destes dois moços que se esquentam a imaginação numa hiperintelectualização e resvalam para o abismo.
«Estudo a Ruivo» – ruivo simbolizando na sua cor indecisa, artificial e perturbadora as almas dos dois protagonistas.
Diga-me você o que pensa deste título que à primeira vista pode chocar, mas que me parece não só próprio como belo. E diga também se prefere porventura o «Crime Perdido».
Devo-lhe dizer que espero muito deste meu trabalho. Muitas alterações tenho feito e farei no já escrito. O 3.º acto já em rascunho o compus de novo muito a meu contento. O 2.º em que actualmente trabalho parece-me, quanto à forma, uma das coisas mais belas que tenho escrito.
Esta peça, infelizmente, nenhum teatro português a poria em cena. Como sabe, ela é destinada a completar, com A Confissão de Lúcio e Gentil Amor, o meu volume.
Perturbadoramente duas novelas e um episódio
Mais uma vez lhe peço desculpa das contínuas estopadas que lhe dou.
Até breve e responda depressa, sim, contando muitas coisas e em muitas páginas!
Obrigado por tudo! E um grande abraço
o seu muito muito amigo o
Sá-Carneiro
Classificação
Dados Físicos
Dados de produção
Dados de conservação
Palavras chave
António Patrício