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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/4_37
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Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 6 de Maio de 1913.

 

 ***

Paris – Maio de 1913 Dia 6

Meu querido amigo,

 
Agora são cartas quotidianas!

Mas hoje é porque recebi a sua, embora vão juntamente mais versos. Você, é um santo!...

Muito interessante e subtil o que diz sobre o Beirão. Concordo plenamente com a necessidade de mais de um estilo.

Quanto aos «Pauis». Como pede, vou-lhe falar com franqueza. E peço-lhe que me acredite. É uma vaidade realmente, mas peço-lhe que me acredite. Eu sinto-os; eu compreendo-os e acho-os simplesmente uma coisa maravilhosa; uma das coisas mais geniais que de você conheço. É álcool doirado, é chama louca, perfume de ilhas misteriosas o que você pôs nesse excerto admirável, aonde abundam as garras.

Assim, além do sublime primeiro verso que lista fogo, há estes magistrais que destaco:

«Ó que mudo grito de ânsias põe garras na hora
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora?»

«Fluido de auréola transparente de foi, oco de ter-se...
O mistério sabe a eu ser outro... luar sobre o não-conter-se.»

e isto que me faz medo, não sei porquê: «A sentinela é hirta, e a lança que fixa (?) no chão – É mais alta do que ela», para lhe não copiar toda a poesia.

Há unicamente um pedaço que me parece transviado; que pelo menos eu não adivinho; em suma que não acho belo. São os dois versos e meio que começam em «Onda de recuo» e terminam «me sinto esquecer». O que acho falhado é o conjunto, pois o verso «e recordar tanto o Eu próprio que me sinto esquecer» é admirável e até evidente. O que não atinjo é ligação da «Onda de recuo que uivada» com os dois versos que lhe seguem. Em suma: a única coisa que não sinto são essas 4 palavras. Devo-lhe também dizer que gosto pouco da frase final «tão de ferro». Não acho suficientemente louca nem bela, para a desculpar da sua rudeza raspante. E abstraindo o que digo (que não é nada) todo o conjunto é sublime. Quem escreve coisas como esses versos, é que tem razão para andar bêbado de si. Desculpe-me não me alargar mais, em considerações. Confesso-lhe que isso é uma maravilha; pormenores trocaremos este Verão, logo no começo de julho (isto dentro de apenas 2 meses) aí em Lisboa. Suplico-lhe que me acredite. Eu posso errar, mas digo-lhe o que penso, só o que penso. E sabe: Eu não acho os «Pauis» tão nebulosos como você quer; acho-os mesmo muito mais claros do que outras poesias suas. Talvez por uma circunstância física.

(O Ferro em carta de ontem falava no «Pauis», dizendo-mos muito belos, mas encontrando-lhe no entanto «enigmas» – a palavra é dele – a mais.)

Curioso o que diz sobre as recitações. E acho especialmente significativo e confortador para você o caso do Ponce. É que há Arte que se aprecia melhor antes de se procurar compreendê-la. Pressentir é mais do que sentir.

Junto vão duas pequeninas poesias, n.os da Dispersão. No «Inter-sonho» emoldurei três frases do «Bailado» que eu reputo das coisas mais belas que tenho escrito e que de forma alguma quereria perder. Gosto, afecciono estas duas poesias embora das menos importantes da Dispersão. Já tenho o plano completo do conjunto. Além dos versos que você tem, que são os feitos até hoje, haverá os seguintes n.os «Mentira», «Rodopio», «Como eu não possuo», «A Queda» e, talvez (quase certamente), «Aquele que estiolou o Génio», volvido poema.

«Mentira» – Não é nas outras pessoas só que eu me engano, é também em mim próprio. Corro para uma aventura. Tudo está certo. E ela não me acontece. – O mesmo sucede comigo próprio, dentro de mim. Olho para as coisas que crio, julgo-me príncipe. Mas olho-as mais de perto: todas se dispersam, não «são» também; pelo menos não creio nelas. (Isto não se pode explicar, só executar.) Não só não me acontece a realidade como também me não «acontece» a fantasia.

«Rodopio» – Volteiam dentro de mim as coisas mais heterogéneas:

Volteiam dentro de mim Num rodopio, em novelos, Milagres, uivos, castelos, Forças de luz, pesadelos, Altas torres de marfim...

Descrever a angústia de apanhar tudo quanto possa; o que é impossível. Cansaço, mãos feridas. (A seguir a este n.º, grifando-se nele, virá a «Vontade de dormir».)

«Como eu não possuo» – O que eu desejo, nunca o posso obter nem possuir, porque só o possuiria sendo-o. Não é a boca daquela rapariga que eu quisera beijar, o que me satisfaria era sentir-me, ser-me aquela boca, ser-me toda a gentileza do seu corpo agreste (gosto muito deste n.º).

«A Queda» – A descrição duma queda fantástica, aonde enfim jazo esmagado sobre mim próprio.

Estas poesias serão todas curtas, um pouco mais longa talvez «Aquele que estiolou o Génio», que no entanto eu ainda posso renunciar a incluir nesta série. É uma questão do momento em que o principiar a compor.

Parece-me que afinal publicarei a série, numerada, mas com títulos. Ela abrirá por um pedaço não numerado «Partida» que é a segunda parte do «Simplesmente», e que será como que um prefácio, uma «razão» do que se segue. O soneto que lhe enviei terá o título de «Escavação», e a «Dispersão» passará a chamar-se «Sono». Diga-me você o que pensa sobre tudo isto e se entende preferível só numerar as poesias. E por amor de Deus, diga-me rudemente o que pensa de cada uma delas destacando as melhores. Suplico-lhe à sua amizade! E o mais brevemente possível!!

O conjunto de Dispersão ficará talvez um pouco monótono. Mas essa monotonidade dar-lhe-á um sabor especial. E é preciso atender a que o folheto se lerá em menos de meia hora.

Os metros que emprego são de talhe clássico. Não é que eu os prefira. Simplesmente as poesias têm-me saído assim – talvez porque a toada certa facilita o trabalho.

Pode ir a minha casa desde terça-feira próxima para o caso Gomes Leal. Isto porque o meu pai está em Tancos vindo porém a Lisboa, mas só aos domingos-segundas. Só pois nestes dias poderá dar a ordem necessária. Eu digo que você vá a partir de terça para haver certeza completa.

Como é bem certo, magnificamente exprimido o que você diz sobre a «ânsia transbordante de outro, que é como que uma tortura física». Oh! não há dúvida, é uma tortura física – quantas vezes o tenho pensado.

Recebi o Teatro. Gostei muito do seu artigo e sobretudo do «novo género de caricatura».

Renovo-lhe todos os meus perdões, todos os meus abraços pelos seus versos geniais e, infantilmente, lhe rogo que faça um esforço e me responda o mais breve possível.

o seu Sá-Carneiro

Quanto ao «Homem dos Sonhos», faça-o sair como está que eu no livro lhe farei as pequenas emendas.

Na «Vontade de dormir», seria preferível em vez de «quero dormir... sossegar...», «quero dormir... ancorar...»? Diga!

Parece-me melhor o ancorar que emendei na poesia, riscando o sossegar. Diga, no entanto.

 

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/5276

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas 5 folhas lisas e timbradas; 4 folhas quadriculadas; sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1913 Maio 6
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados
António Cardoso Ponce de Leão
Gomes Leal

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
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Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.