Identificação
Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 31 de Maio de 1913.
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Paris – Maio de 1913
Último Dia
Meu querido amigo,
Perdoe-me. Você está-se atrasando um bocadinho desta vez... Aqui me tem pois a maçá-lo... E de caminho envio-lhe as duas últimas poesias da Dispersão que é obra completa agora, pois decididamente, mesmo que o tratasse em verso, não incluiria nesta série «Aquele que estiolou o génio». O que porém – apesar do que lhe disse numa das minhas cartas – incluirei nesta série é o soneto «Escavação» pois, dentro de mim, sinto-o em verdade um número. Assim teremos 12 poesias.
As duas que hoje lhe envio – uma das quais talvez já conheça pelo Ponce de Leão – afiguram-se-me menos artisticamente valiosas mas estimo-as entre as mais pelas ideias que encerram: No «Além-Tédio» sobretudo estes versos: «De as não ter e de nunca vir a tê-las, fartam-me até as coisas que não tive».
– No «Como eu não possuo» a ideia geral é esta quadra «Não sou amigo de ninguém», etc., onde está condensada a ideia duma das minhas futuras novelas A Confissão de Lúcio (perdoe «Pró» desta quadra tanto mais que será o único da plaquette pois o do «Simplesmente» – hoje «partida», foi emendado). Há outra quadra que pela sua violência me agrada muito nesta poesia e que começa: «Eu vibraria só agonizante» etc. Agrada-me a expressão «aglutinante» e «seios transtornados» bem como na quadra antecedente a «carne estilizada». Esta poesia tem talvez uma certa falta de unidade. Entanto julgo-a assim bem. É torturada, contorcida – como torturado e contorcido é o que ela pretende esboçar. Peço-lhe que me estabeleça a ordem em que todas as 12 poesias devem ser publicadas e, se tiver pachorra, a sua ordem de preferência conforme a opinião do meu querido amigo. A «Bebedeira» intitulei-a definitivamente «Álcool». Não lhe parece bem este título? Outra pergunta: Na capa do livro que pôr abaixo de Dispersão versos, poemas, poesias, 12 poemas de Mário de Sá-Carneiro, 12 poesias de Mário de Sá-Carneiro? E se se fizesse isto: 344 versos de Mário de Sá-Carneiro (344 ou o número deles, quero dizer). Isto porém, que seria novidade, é talvez (quase com certeza) de mau gosto. Indicar por fora que o livro é em verso, é forçoso pois eu sou conhecido como prosador. Ainda outro subtítulo: Série em verso. Diga o que pensa sobre isto e que pouca importância tem. (Diga-me: Seria melhor em vez de: «De embate ao meu amor todo me ruo»; «de embate ao meu ansear todo me ruo»?) Sobre esta pequeninas coisas de viva voz me aconselharei consigo.
Uma ideia nova: Um indivíduo cuja ânsia é de criar mistérios só pelo pertubador que um mistério é. Assim contará crimes só para ter a glória de todo o mundo andar ansiante por descobrir o mistério. (Crimes dum género especial: Suponhamos: o roubo da Jucunda – isto para exemplificar grosseiramente qual a minha ideia.) Este homem por fim será morto, despedaçado, pelo mais grandioso mistério que conseguiu criar. Não se entrevê o meu fim, nisto tão mal explicado. Diga, não se esqueça.
E mais uma vez perdão pelas minhas contínuas estopadas e, mais uma vez, mil súplicas para que me diga o que pensa dos versos que hoje lhe envio e que me escreva o mais brevemente, o mais longamente que lhe for possível!...
Sem mais, envia-lhe um grande abraço de sincera amizade o seu saudoso amigo muito obrigado
Sá-Carneiro
50, rue des Écoles – Hotel du Globe