Identificação
Carta enviada de Barcelona, no dia 29 de Agosto de 1914.
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Barcelona
29 de Agosto de 1914
Meu Querido Amigo,
Pois é verdade. Aqui estou em Barcelona. Por quanto tempo? Mistério... E daqui para aonde irei? Mistério ainda mas, ai, seguramente para Lisboa. Você não imagina o meu estado de alma actual. Ah! meu amigo – é uma crise abominável... De forma alguma estou bem e não sei o que me falta... Pergunto a mim próprio porque estou em Barcelona. Não sei bem. Foi para fazer qualquer coisa... Eu podia perfeitamente ter ficado em Paris apesar do ambiente desolador. Seria o mais «ajuizado», o mais económico – sem dúvida a solução preferível, a única – apesar de todas as contingências mesmo do possível – mas quanto a mim bem pouco provável – cerco de Paris. Mas não. Parti. E parti – coisa estranha – numa sensação de despeito, de orgulho despeitado, melhor dizendo: e de ternura perdida. É muito singular, mas é assim – sinceramente. Não sei mais nada. O certo é que segundo ontem escrevi ao Guisado a minha vida volveu-se ultimamente numa noite de insónia. Ando agora na vida às voltas nos lençóis. Mas não logro achar posição possível. Estou mal em Paris, estou mal em Barcelona – estarei horrivelmente mal em Lisboa. Depois a minha tristeza d’hoje é uma tristeza sem entusiasmo, abatida e flácida, de carnes amarelas... Qualquer coisa também de «dose» – de cozimentos de plantas soporíferas. Daí uma contínua dispersão física – uma distracção contínua que se traduz em borrões em cartas, em enganos de palavras, etc. Cada vez me convenço mais de que não posso passar sem Paris. Mas o meu Paris hoje é também um desaparecido como eu. Porque é verdade: eu, creia, desapareci de mim, de todo. Não lhe disse nos primeiros tempos em que estive em Paris este ano que chegara o meu fim? Pois mais do nunca creio que disse bem. Ao tempo escrevi até este verso perdido:
«O fim de mim embandeirado em arco».
Eram Paris essas bandeiras. E hoje arrearam-nas. Eu próprio as acabei de arrear, partindo incertamente... Tudo isto é muito embrulhado, tolo até, se você quer. Mas não lhe posso explicar melhor – embora talvez haja, quem sabe, outras pequeninas razões. Paris enfim meu amigo era as mãos louras, a ternura enlevada que não teve nunca a minha vida. E hoje bateram-lhe, fecharam-no em casa. Daí o meu sofrimento magoado, amoroso – é verdade: amoroso – ao relembrá-lo... Enfim não sei... não sei... Apenas sei que me sinto como nunca triste, que sou infeliz como nunca... A minha vida hoje é uma porta fechada, sobre um saguão enorme onde se roja o meu tédio. Perdoe-me. Escreva-me em todo o caso na volta do correio para Barcelona. Se já aqui não estiver a carta não se perderá pois ma devolverão para Lisboa. O dia da minha chegada aí telegrafar-lho-ei a seu tempo. Barcelona, detestável quanto a figuração. Nesse sentido terra de província, lepidóptera, só a subgente. Mas belas avenidas e edifícios.
Milhões de abraços
do seu seu
Mário de Sá-Carneiro
«Palace-Hotel» ronda de S. Pedro Barcelona
Escreva por amor de Deus imediatamente para Barcelona!...