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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/7_3
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 3 de Fevereiro de 1916. 

 

 **

Paris – Fevereiro 1916

Dia 3

Meu Querido Amigo

 

Recebi pois no dia 31 a sua linda carta de 26 conforme já o avisara por postal. O que lhe suplico é que não repita estes longos períodos de silêncio. Quando não puder escrever-me – diga-mo num postal. Peço-lhe isto encarecidamente. Muito obrigado pelas suas palavras sobre a minha carta desolada e os meus versos terríveis. Claro que continua e continuará tudo na mesma até que eu desapareça por algum alçapão de estoiro – mas o melhor é não pensarmos mais nisso! Ah! mas como sobretudo lhe agradeço o lembrar-se de mim enternecidamente ao encomendar chapéus complicados para os costureiros célebres de Paris. Minhas fitas de cor, meus laços, minhas plumas, minhas filigranas! Tanto enleio perdido, tanta carícia desfeita! A Zoina, a grande Zoina sempre! Mas que lhe hei-de eu fazer?... Vai junto um soneto. Nasceu como o «Fantasma». Aquilo ou fica tal e qual assim, estapafúrdio e torcido – ou se deita fora. Eu não sei nada. Por isso o meu querido Fernando Pessoa não se esqueça de me dizer do valor do estaferminho – e se o hei-de ou não aproveitar para os Indícios de Oiro, «Colete-de-Forças», claro. Quanto aos meus versos passados fez muito bem em os mostrar ao José Pacheco. Ao José Pacheco pode você mostrar tudo – porque é uma alma como o meu querido amigo muito bem diz. Quanto ao caso Rodrigues Pereira tem você perfeitamente razão: a sua atitude diante do sensacionismo é a duma mulher nova e linda, maquilada – estrangeira de Paris, americana ou polaca, muito culta, inteligente e toquée. Olhe: o que a americana da Confissão de Lúcio poderia assimilar da nossa Arte. Não lhe parece assim? Hein?... Mas o António Soares, esse sente os caminhos-de-ferro de lata? Isto são insignificâncias. Mas eu gosto muito de «potins». Fale-me pois, em mescla, de todos esses pequenos – e não se esqueça de me contar as coisas do Ramos etc. Acho muita graça a isso. Também leio no Matin os «Mistérios de New York». Dá-me muito prazer. Agora sobre a «Novela Romântica». A coisa mais importante que lhe tenho a dizer é esta – o aparecimento dum novo personagem: Com efeito em Paris, Heitor de Santa-Eulália, ao lado do conde húngaro Ludvico Bacskay seu companheiro de grande vida, cuja amizade data dum duelo – tem outro grande amigo, de alma, esse: o escritor polaco Estanislau Belcowsky moço artista emigrado, autor de novelas psicológicas inéditas, incompreendido e desgraçado. Estanislau Belcowsky sou eu. Falará das suas estranhezas, que serão as minhas, das suas ânsias que serão as minhas. Heitor de Santa-Eulália não o compreende inteiramente, porque um homem de 1830, mesmo Heitor, não me poderia compreender – mas pressente-o e admira-o. Dá-lhe dinheiro a rodos, para ele gastar pois compreende a necessidade que ele tem de viver em meios luxuosos – tem sobretudo a noção de que mais tarde, nos tempos futuros, na era das máquinas – haverá heróis de novelas assim, haverá uma arte de acordo com a psicologia, com a individualidade de Belcowsky. E Santa-Eulália embriaga-se de Oiro anteven- do a maravilha, e sente que ele é também um pouco, um precursor d’Aquela Raça. A influência de Belcowsky será uma certa sobre eles. Daí determinados pensamentos sensacionistas no seu ultra-romantismo. Atinge bem o meu fim? Parece-me estranha e interessante esta trouvaille. Que me diz você? Não se esqueça de me dar a sua opinião. Eis um exemplo das coisas que Belcowsky dirá a Santa-EuIália (linhas que de resto eu escrevi não sei se ao Franco se ao Rod. Pereira): «Agora os meus próprios sonhos fazem troça de mim. E os meus nervos – os estupori- nhos – não há quem os faça largar o trapézio. Há grandes osgas transversais sobre a minha vida. Não sei nem o que isto quer dizer – mas é assim tal e qual que eu o sinto. Cada vez posso menos deixar de ser quem sou – e dia a dia sofro mais por o ser. Se ao menos estas colunas, em face de mim, de súbito, se pusessem a andar...» Numa palavra, enquanto Heitor é um romântico pressentindo o interseccionismo (pressentindo-o através Belcowsky), Belcowsky é, puramente, um Inácio de Gouveia, um Ricardo de Loureiro... um Mário de Sá-Carneiro... Compreende bem o anacronismo «voulu»? Heitor ouvindo isto, terá grandes espantos mudos, grandes admirações maravilhosas, embora o pressinta unicamente, embora apenas suspeite, não sabe porquê bem, sê-lo um pouco, melhor: devê-lo ser mais tarde, numa outra incarnação, talvez, futura, sucessiva. Diga-me, não se esqueça por amor de Deus, o que pensa a este respeito. Outra coisa: mande-me um nome lindo e sombrio de mulher inglesa lady Helena qualquer coisa (mas Helena em inglês, que creio ser Ellen). Não se esqueça. Outro detalhe: esta Helena é a mulher por quem ele se apaixona em Paris: a que mata a sua paixão por Branca, a que faz com que ele se suicide para respeitar o seu amor por Branca. Muito bem: ele descortinará no entanto que a sua paixão por Helena é devida, não a ela própria, mas à protagonista do drama que há na sua vida. Sim: talvez não seja mesmo propriamente ela que ele ama: mas sim a sua história (de Helena), a sua lenda. No entanto isso mais lhe faz aumentar a paixão, melhor o conduz ao seu desfecho. Outros detalhes apareceram que não vale a pena mencionar-lhe. O que lhe rogo muito é que não deixe de, o mais breve possível, procurar a carta para eu ajustar tudo e começar a escrever a novela, pelo que estou ansioso. Rogo-lhe muito. E não se esqueça de me enviar o apelido de lady Helena.

Mil desculpas e agradecimentos por tudo

– Curiosíssimo o seu «estabelecimento» como astrólogo. Oxalá não haja impedimentos e isso vá por diante. Que extraordinária e pitoresca nota biográfica para a história dum Criador de Nova Arte, como você!

– Não se esqueça de responder à questão Carlos Ferreira. O negócio é certo. O governo belga já lhe enviou os recibos para ele assinar e receber os 1600 francos de subsídio.

– Zeplins europeiamente sobre Paris em 29 janeiro – bombas em Lisboa à mesma hora. Afinal, é também europeu.

Escreva-me muito – o mais depressa possível. Não se esqueça! Grande e saudosíssimo apertado abraço. Toda a Alma.

o seu, seu
Mário de Sá-Carneiro

Escreva!!!

Post-Scriptum

– Não se esqueça de dizer ao Pintor que lhe escrevi para a Tr. do Rosário e que ignoro seu endereço actual.

– O que há da antologia Guisado? Revista dele com Júlio Dantas? Será possível? Ai, Ai... Hélas!...

– Não se esqueça das tais coisas interessantes sobre Ramos Centauro.

– E o Octávio? Quando vai à cena? Quando sai da imprensa? Muitas saudades ao Vitoriano.

– Muitos abraços também ao Pacheco. Recados ao Almada. Afinal aqui na Brasserie Cyrano também há outra mulher parecida com ele! Traz sempre um cão.

– Escreva-me largamente: muita alma, muitas notícias, muitos potins!

– Curiosíssimo artigo Século noite? Monárquicos e insexuais. Tem imensa piada!

– Suplemento de abraços e Alma

o M. de Sá-Carneiro

 
 
Notas de edição

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas pautadas, quadriculadas e sobrescrito timbrado.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1916 Fev 3
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.