Identificação
Carta enviada de Paris, no dia 5 de Fevereiro de 1916.
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Paris – Fevereiro 1916
Dia 5
Meu Querido Amigo
Recebi ontem a sua carta de 30 e hoje a cópia dactilografada da minha carta sobre a «Novela Romântica». Não sei como lhe agradecer tanta maçada. Você poderia muito bem ter mandado a minha carta que eu lha devolveria. Muito, muito obrigado no entretanto – pois assim evitou-me trabalho e eu tenho um papel limpo em vez das minhas garatujas: Mas para esgotar assunto «Novela Romântica»: Depois de bem pesar o assunto e de ler, sobretudo, a minha carta – vejo que é preciso tomar cautela com a nova personagem do sr. Estanislau Belcowsky que tive a honra de lhe apresentar na carta passada. Com efeito o interesse máximo da novela reside na intersecção romântico-sensacionista da psicologia de Heitor de Santa Eulália, que, por isso mesmo, tem que ter na sua alma pontos de semelhança com Estanislau Belcowsky. Mas este será como que o seu espelho: o espelho porém que só reflecte o que há nele de puramente sensacionista. Heitor reconhecerá em Estanislau a parte mais estranha que há em si próprio e ele menos conhece e se pode explicar. Estanislau será para Heitor a prova de que existem as suas estranhezas: que examinadas ontem – mais desenvolvidas e completas, mas da mesma ordem – ele, nunca entendendo o seu mistério, melhor reconhecerá a sua beleza. Estanislau será dentro da novela o padrão, a mira do seu elemento interseccionista: como o romance amoroso de Heitor, o seu puro elemento romântico. E teremos assim este grupo de três personagens:
Heitor – romântico-sensacionista
Estanislau – sensacionista puro
O conde Ludovico Bacskay – romântico simples.
Compreende bem o meu fim? Concorda com isto — sobretudo com o interesse da figura de Estanislau? Rogo-lhe que medite bem no assunto, que faça por compreender a minha ideia – pois antes de assentar definitiva e minuciosamente o meu plano quero ter a sua opinião sobre este ponto capital. Se porventura me engano e a figura de Estanislau é inútil, pouco interessante ou prejudicial – diga-mo com inteira franqueza. Esteja porém certo que saberei salvar o perigo que a sua introdução na novela podia oferecer quanto ao apagar a psicologia, ou antes a intersecção psicológica, de Heitor de Santa-Eulália. Oiça ainda: Estanislau será um fantasma às avessas: o fantasma duma criatura que ainda não nasceu: o fantasma dos heróis de novelas duma nova arte ainda não nascida: o fantasma, em suma, de Inácio de Gouveia, de Ricardo de Loureiro. Esta ideia ocorrerá mesmo a Heitor. E perante Heitor – repito – ele será a «chamada»: alguém que o fará melhor olhar para si mesmo pelos pontos de contacto que pouco a pouco descortina com ele. Em resumo: Estanislau Belcowsky e o conde Sérgio de Bacskay somados, darão Heitor de Santa-Eulália. Quem diz Estanislau diz, por exemplo, Ricardo de Loureiro – quem diz o conde Bacskay poderia dizer Antony ou Armando Duval. Compreende bem? Tem isto interesse? Por amor de Deus, suplico-lhe que não se esqueça de o discutir na sua carta imediata. Esta novela interessa-me imenso – estou ansioso por escrevê-la: mas não quero principiar antes de ajustados os mínimos detalhes. Rogo-lhe pois com mil desculpas que na sua primeira carta me diga a sua opinião. Agora ainda uma maçada: tudo quanto lhe digo nesta carta sobre a novela copiei-o para mim. Mas o mesmo não fiz com os detalhes que outro dia lhe comuniquei sobre Estanislau. Preciso deles. Tenha paciência de me copiar as linhas que se referem a esse sujeito. Desculpe-me. Não mais o tornarei a incomodar. Conto absolutamente consigo: dizer-me a sua opinião sobre o caso que hoje lhe exponho e enviar-me o que lhe escrevi outro dia sobre o Estanislauzinho. Não se esqueça. De joelhos – perdão e obrigado. Mas resposta o mais urgente possível. Você é um santo!!!!!!
Atingi perfeitamente o que você me diz sobre teosofia. Estou de acordo nos mínimos detalhes. Perturbador, com efeito o que conta de se começar a encontrar teosofistas logo que em teosofia se pega – corro- borado pelo meu aviador... destruir o mistério é com efeito a maior das infâmias – destruí-lo puramente, claro. E como é arrepiadora e genial, por isso mesmo, a concepção do seu Fausto!...
Vai junto uma carta do Carlos Ferreira. Ele tenciona dar-lhe 50 francos moeda francesa (ou sejam qualquer coisa como 12 a 13 mil-réis) e um suplemento pelas páginas que você traduzir conforme ele lhe fala na carta junta.
Não tenho mais nada a dizer-lhe, infelizmente. Mas você conte-me coisas. O Exílio sempre aparece? Não se esqueça de me enviar imediatamente um n.o caso apareça.
Adeus meu amigo. Responda-me, por amor de Deus larga e brevemente.
Mil saudades e um abraço de toda a Alma.
o seu, seu Mário de Sá-Carneiro
Distribua saudades a quem se me recomenda.
Abrace sobretudo o Pacheco e o Vitoriano.
P. S. ATENÇÃO
Aquelas quadras lamentáveis – eliminando, claro, a da retrete – devem ou não fazer parte do «Colete-de-Forças»? Não se esqueça de mo dizer!
P. S. – Sobre a «Novela Romântica»
A ideia do fantasma às avessas ocorrendo a Heitor entusiasmá-lo-á inspirando-lhe uma grande esperança na beleza da sua própria alma – no provir ampliado da sua alma: na sua grandeza total, afinal de contas. Como o homem da era das máquinas terá saudades talvez do período romântico: ele tem saudades da era em que nascerão os heróis de novelas como é já Estanislau. E sente os dois jactos de beleza fundirem-se-lhe a ouro na sua própria alma. Tudo isto o alcooliza e dimana.
Repito: atinge bem? Não se esqueça de me falar largamente a este respeito!