Identificação
Carta enviada de Paris, no dia 16 de Fevereiro de 1916.
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Paris – Fevereiro 1916
Dia 16
Meu querido Amigo, não sei porquê eu já não venho ao Café Riche. Talvez porque na mesa do fundo – ali, ao canto – onde «um monsieur décoré» se embebe do Temps – receie encontrar o Sá-Carneiro, o Mário, de 1913 que era mais feliz, pois acreditava ainda na sua desolação... Enquanto que hoje... Descia-a toda; no fundo é uma coisa peganhenta e açucarada, digna de lástima e só para os rapazes do liceu a receberem à tourada. Creia o meu Amigo que é absolutamente assim – sem literatura má, sem paulismo, afianço-lhe. A verdade nua e crua.
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos berros e aos pinotes
– Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro...
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Mas então para fixar o instante desta minha vinda ao Café Riche onde agora já não entro com medo de encontrar o Mário – hoje felizmente ele não estava, estava só o monsieur do Temps – envio-lhe esta carta inútil e riscada que você perdoará, hein? Aproveito para remeter um soneto mau. Agora porém o que estou é muito interessado na confecção dum poema irritantíssimo, «Feminina» – que comecei ontem à noite, quando me roubaram o chapéu-de-chuva.
Pano de amostra:
Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.
Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro –
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer «potins» – muito entretida.
Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos – mesmo ao predilecto –
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar... ...........................................................................
Como você vê – isto promete, hein? Quando arranjar por completo o poema enviar-lho-ei. Mas vá-me já dizendo as suas impressões – bem como as do péssimo soneto adjunto. Sabe que recebi duas terríveis cartas do José Pacheco? Mandar-lhas-ei para você ver como são lancinantes. São das cartas mais terríveis, mais confrangedoras que se podem escrever. Uma miséria, uma dor! Fazem-me ainda mais pena que a loucura total do Dr. L. vai ver.
Dê muitas saudades minhas ao Pacheco (Claro que lhe escrevi). Você escreva muito. Faça potins: género R. carta passada etc.
E o fisionomista como vai?
Mostre-lhe o meu retrato.
Adeus. Mil abraços e mil saudades.
O seu, seu
Mário de Sá-Carneiro
Recebi Domingo um postal seu.
O Guisado nunca mais fez versos? Informe-me a este respeito!