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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/7_10
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 22 de Fevereiro de 1916. 

 

 **

Paris – Fevereiro 1916

Dia 22

Meu Querido Amigo,


Então cá lhe venho escrever a carta mais calma. Em primeiro lugar, meu querido Amigo, para o fixar sobre a minha crise actual devo-lhe dizer que ela não é mais do que um estádio na sucessão de coisas muito complicadas que, como você sabe, a minha vida contém. Daí uma inquietação eterna, um medo fixo. A aumentar tudo isto a inconstância sempre duma situação e dum futuro: suponha você que o meu Pai casou com a pessoa que o meu amigo sabe e a tem, desde dezembro, em Lourenço Marques. Porém a casa da P. dos Restauradores existe da mesma maneira, vivendo lá a minha Ama e os gatos e uma criada. Tudo isto porém há-de ter um fim – e que pergunto-me que lugar irei preencher nesse fim. O meu Pai ora diz, por exemplo, que L. Marques não é terra para mim – ora, pelo contrário, sugere que gostaria muito de me ter lá, depois da guerra. Você compreende bem o despenhadeiro que seria para mim esta solução – não é propriamente Lourenço Marques o pavor: mas a convivência que eu aí iria ter – e à qual me receio muito condenado. Nem uma vez, em cartas até hoje recebebidas, o meu Pai se referiu à minha partida daqui: mas que cenas não terá que sustentar para a continução da minha situação presente. Acresce que eu não posso ter juízo. Pedi ao meu Pai 250 francos por mês. Actualmente recebo 280: mas, como em Lisboa, eu não sei viver, eu não tenho coragem para viver com menos de 350-400 francos. Resultado: a minha situação é presentemente idêntica à de Lisboa (situação financeira, bem entendido). Sabe que uma das razões pelas quais deliberei partir foi a impossibilidade de não pedir dinheiro ao meu Pai. Sucede-me hoje o mesmo: preciso de 300 francos. Ou lhos pedirei simplesmente – não sei com que pretexto – ou lhe pedirei 800 para partir para Lisboa. Daí as minhas cartas anteriores. Uma pequena circunstância veio a semana passada sugerir-me a solução da partida para Lisboa. Essa circunstância porém hoje não existe – ou, melhor: existe modificada – pode ainda existir. De forma que não tomei, por enquanto, uma resolução definitiva, tendo só necessidade do dinheiro para 15 do mês próximo. No momento presente está escolhida esta cobarde coisa: «ganhar tempo». Note que eu não me importaria muito de ir para Lisboa, visto que a dificuldade maior está arredada com a única presença da minha Ama em Lisboa. Gostaria até de partir para Lisboa – se não tivesse pena de me ir embora de Paris: Mas eu nem sei se ao meu Pai convém a minha partida para aí. Com efeito isso pode trazer novas complicações: a pessoa que o meu amigo sabe – eu conheço-a bem – não quererá por forma alguma que eu entre em casa dela. Ia para o hotel, claro. Mas havia de ir ver a minha Ama. Ela não terá confiança na minha Ama para me não receber: e daí nova cena que o meu Pai terá que sofrer com o meu «telegrama» pedindo 800 francos para partir. Compreende talvez longinquamente esta infinita trapalhada, feita de microrganismos que me desbarata o espírito, os nervos e o corpo. A minha tristeza não tem limites, a criança triste chora em mim – ascendem as saudades de ternura – sopra a Zoina sempre, sempre. Como partia pratos em minha casa, quando me zangava com a minha ama: tantos mais quanto maior número tinha começado por partir – acumulo agora disparates sobre disparates num desejo de perversidade: melhor: num desejo de que suceda qualquer coisa, seja o que for: que uma nova fase da minha vida se encete. E creio até que preferia receber um telegrama do meu Pai mandando-me partir para L. Marques – apesar de todo o horror – do que não receber novidade alguma.

Tudo isto e as minhas desolações conhecidas me torturam, me despedaçam: «A tômbola anda depressa, não sei onde irá parar – aonde pouco me importa – o importante é que pare.» Infelizmente creio que nunca mais parará... Estas coisas infelizmente, nos seus detalhes, só se podem explicar em conversa: e assim, o meu Amigo, mesmo ajustando-as e ultrapassando-as não sei se longinquamente me compreenderá. Não se assuste em todo o caso – tenha apenas muito dó de mim. Eu sairei disto, de qualquer forma: corrido, pode ser – mas nunca espanca- do nem ferido. Sempre no fundo «o cobarde rigoroso». Aqui tem. Seja como for no entretanto a minha estada aqui não se prolongará por muito tempo – disto estou seguro, inteiramente seguro. É uma questão de mais mês menos mês. Em resumo: não sei nada. É pouco. Mas é já alguma coisa...

Livro F. Gomes: uma interessante mixórdia. O «Homem de Fumo» parece-me escrito por alguém que poderá ter alguém lá dentro... o mesmo sobre o «Vácuo» que é na verdade interessante pela ideia da animação dos personagens do bule e do quadro saindo da loiça e da tela. Há aqui interseccionismo sem dúvida. Outros contos porém são absolutamente ridículos ou ingénuos – ah! mas absolutamente. Do conjunto não posso avaliar coisa alguma senão isto: que a nossa arte em todo o caso «melhora» aqueles que têm o génio de nos seguir. Creio que você em tempos me disse que o livro do F. G. tinha ligeiras influências interseccionistas. Para mim tem-nas flagrantíssimas, minhas frisantemente nos termos: sonhos roxos, coisas de platina, «fê-lo, positivamente o fez» (a minha colocação do advérbio) etc. Em resumo para mim o livro do F. G. que é apenas um interessante apontamento vale como uma nossa influência. Tanto melhor. Agradeça ao rapaz – e traduza-lhe em linguagem amável, se quiser tudo isto.

Frase interessante duma carta do Rogério Perez hoje recebida «... e penso: será a maneira do Sá-Carneiro a quase definitiva, a melhor, a perfeita?... E posso eu julgar o Sá-escritor, o Sá-cosmopolita, o “Sá-Europa”, como o Ramalho e o Eça? Não». (A destacar a expressão Sá-Europa, não acha você?) Para outra vez lhe mandarei as cartas do Pacheco. Não sei onde demónio as meti.

Ignoro se me tem esquecido de lhe responder a qualquer parte das suas últimas cartas. Se assim é perdoe-me e repita-me a pergunta.

Pedido do C. Ferreira: Tomar nota dos títulos das gravuras insertas no volume do Pedro Muralha A Bélgica Heróica. Veja se o pode fazer na livraria.

Escreva-me muito, muito, sim? Diga-me coisas sem importância. É-me tão agradável na presente conjuntura entreter-me com pequeni- nas coisas...

Crei que o Barradas (desenhador) vem muito brevemente para Paris. E o Almada Negreiros? Esse é que me seria muito agradável ver aqui, quanto mais não fosse para fazer escândalos nos cafés... Dê-lhe saudades e diga-lhe isto.

Abrace muito o Pacheco e o Vitoriano.

Conte-me muitas coisas. Escreva-me muito.

Adeus. Mil abraços de toda a alma.

o seu, seu Mário de Sá-Carneiro

Notas de edição

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas quadriculadas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1916 Fev 22
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.