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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/7_17
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 31 de Março de 1916. 

 

 **

Paris – 31 Março 1916

 

Meu Querido Amigo,

 
A menos dum milagre na próxima 2.a-feira 3 (ou mesmo na véspera) o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há uma outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há 15 dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às maravilhas: mas não tenho dinheiro. Contava firmemente com certa soma que pedira ao meu Pai há 15 dias. Ela não chegou – e como resposta um telegrama à legação em que o meu Pai pergunta quanto dinheiro preciso eu para ir para Lisboa... Houve decerto um mal-entendido, ou falta de recepção dum meu longo telegrama expedido em 19. Segunda-feira preciso inadiavelmente de 500 fran- cos. Como a menos dum milagre eles não podem chegar... aí tem o meu querido Amigo. É mesquinho: mas é assim. E lembrar-me que se não fosse a questão material eu podia ser tão feliz – tudo tão fácil... Que se lhe há-de fazer... Mais tarde ou mais cedo, pela eterna questão pecuniária, isto tinha que suceder. Não me lastimo portanto. E os astros tiveram razão... Hoje vou viver o meu último dia feliz. Estou muito contente. Mil anos me separam de amanhã. Só me espanta, em face de mim, a tranquilidade das coisas... que vejo mais nítidas, em melhor determinados relevos porque as devo deixar brevemente. Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã) registadamente enviarei o meu caderno de versos que você guardará e de que você pode dispor para todos os fins como se fosse seu. Pode fazer publicar os versos em volume, em revistas etc. Deve juntar aquela quadra: «Quando eu morrer batam em latas» etc. Perdoe-me não lhe dizer mais nada: mas não só me falta o tempo e a cabeça como acho belo levar comigo alguma coisa que ninguém sabe ao certo, senão eu. Não me perdi por ninguém: perdi-me por mim, mas fiel aos meus versos:

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo...

Atapetei-a sobretudo contra mim – mas que me importa se eram tão densos os tapetes, tão roxos, tão de luxo e festa...

Você e o meu Pai são as únicas duas pessoas a quem escrevo. Mas dê por mim um grande abraço ao Vitoriano e outro ao José Pacheco. Todo o meu afecto e a minha gratidão por você, meu querido Fernando Pessoa num longo, num interminável abraço de Alma.

o seu, seu
Mário de Sá-Carneiro

Veja lá: mesmo para os Astros diga-me potins, fale-me do sensacionismo...

Adeus.

Se não conseguir arranjar amanhã a estricnina em dose suficiente deito-me para debaixo do «metro»... Não se zangue comigo.

Notas de edição

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas quadriculadas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1916 Mar 31
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.