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Fundo
Mário de Sá-Carneiro
Cota
Esp.115/7_22
Imagem
Carta a Fernando Pessoa
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Autor
Sá-Carneiro, Mário de

Identificação

Titulo
Carta a Fernando Pessoa
Titulos atríbuidos
Carta a Fernando Pessoa
Edição / Descrição geral

Carta enviada de Paris, no dia 17 de Abril de 1916. 

 

 **

Paris – Abril 1916

Dia 17

 

Meu Querido Amigo,

 

Recebi a sua carta e o seu postal. Não tenho nervos para lhe escrever, bem entendido. A minha doença moral é terrível – diversa e novamente complicada a cada instante. O dinheiro não é tudo. Hoje, por exemplo, tenho dinheiro. Mas você compreende que vivo uma das minhas personagens – eu próprio, minha personagem – com uma das minhas personagens. De forma que se pode ser belo, é trucidante. E o pior é que é muito belo: de maneira que nem o meu admirável egoísmo me pode desta vez salvar. Ainda tenho uma esperança – mas não me parece. Não sei onde isto há-de ir parar. Porque a minha situação – encarada de qualquer forma – é insustentável. Um horror. Perturbante, arrepiante o que me conta do seu estado de alma nos meus dias agudos. Mas natural. Se eu penso em você? Mas a todos os momentos, meu querido Amigo. Em quem hei-de eu pensar senão em você? E é nestes momentos que eu sinto todo o afecto que liga as nossas almas. Como eu quisera tê-lo aqui ao pé de mim para lhe explicar tudo, tudo. Sabe?

Por agosto deixei incompleta uma poesia que iniciara ainda em Lisboa, género «Inigualável». Começava assim:

Ah, que te esquecesses sempre das horas

Polindo as unhas –
A impaciente das morbidezas louras

Enquanto ao espelho te compunhas...

 

Escrevi muitos versos; mas a poesia ficou incompleta. Existiam nela estas quadras:

 

A da pulseira duvidosa
A dos anéis de jade e enganos –

A dissoluta, a perigosa
A desvirgada aos sete anos...

O teu passado – sigilo morto –

Tu própria quasi o olvidaras –

Em névoa absorto
Tão espessamente o enredaras.

A vagas horas, no entretanto,

Certo sorriso te assomaria

Que em vez de encanto,

Medo faria.

 

E em teu pescoço –
– Mel e alabastro –
Sombrio punhal deixara rastro

Num traço grosso.

 

A sonhadora arrependida
De que passados malefícios –

A mentirosa, a embebida

Em mil feitiços...

 

Pois bem: previram misteriosamente a personagem real da minha vida de hoje estes versos. E você compreende todo o perigo para mim – para a minha beleza doentia, para os meus nervos, para a minha alma, para os meus desejos – de ter encontrado alguém que realize esta minha sede de doença contorcida, de incerteza, de mistério, de artifício? «Uma das minhas personagens» – atinge bem todo o perigo? Diga o que pensa. E note: aqui não há amor, não há afecto: e o desejo é até a mínima prisão: Mas há todo o quebranto – quebranto para mim – que os meus versos maus longinquamente exprimem. Percebe bem o meu caso? Escreva-me – suplico-lhe – uma longa carta: e diga se mede bem o perigo, se me compreende. É um horror, um horror – porque é um grifado sortilégio. Porque é que eu se devia encontrar alguém: fui encontrar alguém – ainda que noutros vértices – igual a mim próprio? Não sei nada.

Tenha pena de mim: escreva-me imediatamente uma grande grande carta. Adeus.

Mil abraços de toda a alma

o seu, seu

Mário de Sá-Carneiro

Escreva hoje mesmo. Lembre-se da minha angústia. O meu caderno chegou?

 

Notas de edição

Classificação

Categoria
Espólio Documental
Subcategoria
Correspondência

Dados Físicos

Descrição Material
Tinta preta sobre folhas quadriculadas e sobrescrito.
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
1916 Abr 17
Notas à data
Inscrita.
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Fernando Pessoa
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Bom
Entidade detentora
Biblioteca Nacional de Portugal
Historial

Palavras chave

Locais
Paris
Palavras chave
Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Sá-Carneiro, Mário de, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.
Exposições
Itens relacionados
Esp.115
Bloco de notas
Na transcrição das cartas: a ortografia foi actualizada e as gralhas evidentes corrigidas, mantendo, contudo, as elisões com apóstrofo e todas as singularidades da pontuação usada por Mário de Sá-Carneiro, bem como a forma original das datas, muitas vezes com o nome dos meses em letra minúscula ou abreviado. O título da revista Orpheu foi mantido na forma sempre usada por Sá-Carneiro – Orfeu. Foram mantidas, igualmente, as versões de versos e de outros trechos literários mais tarde corrigidos ou refundidos pelo poeta.