Identificação
Carta enviada de Paris, no dia 17 de Abril de 1916.
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Paris – Abril 1916
Dia 17
Meu Querido Amigo,
Recebi a sua carta e o seu postal. Não tenho nervos para lhe escrever, bem entendido. A minha doença moral é terrível – diversa e novamente complicada a cada instante. O dinheiro não é tudo. Hoje, por exemplo, tenho dinheiro. Mas você compreende que vivo uma das minhas personagens – eu próprio, minha personagem – com uma das minhas personagens. De forma que se pode ser belo, é trucidante. E o pior é que é muito belo: de maneira que nem o meu admirável egoísmo me pode desta vez salvar. Ainda tenho uma esperança – mas não me parece. Não sei onde isto há-de ir parar. Porque a minha situação – encarada de qualquer forma – é insustentável. Um horror. Perturbante, arrepiante o que me conta do seu estado de alma nos meus dias agudos. Mas natural. Se eu penso em você? Mas a todos os momentos, meu querido Amigo. Em quem hei-de eu pensar senão em você? E é nestes momentos que eu sinto todo o afecto que liga as nossas almas. Como eu quisera tê-lo aqui ao pé de mim para lhe explicar tudo, tudo. Sabe?
Por agosto deixei incompleta uma poesia que iniciara ainda em Lisboa, género «Inigualável». Começava assim:
Ah, que te esquecesses sempre das horas
Polindo as unhas –
A impaciente das morbidezas louras
Enquanto ao espelho te compunhas...
Escrevi muitos versos; mas a poesia ficou incompleta. Existiam nela estas quadras:
A da pulseira duvidosa
A dos anéis de jade e enganos –
A dissoluta, a perigosa
A desvirgada aos sete anos...
O teu passado – sigilo morto –
Tu própria quasi o olvidaras –
Em névoa absorto
Tão espessamente o enredaras.
A vagas horas, no entretanto,
Certo sorriso te assomaria
Que em vez de encanto,
Medo faria.
E em teu pescoço –
– Mel e alabastro –
Sombrio punhal deixara rastro
Num traço grosso.
A sonhadora arrependida
De que passados malefícios –
A mentirosa, a embebida
Em mil feitiços...
Pois bem: previram misteriosamente a personagem real da minha vida de hoje estes versos. E você compreende todo o perigo para mim – para a minha beleza doentia, para os meus nervos, para a minha alma, para os meus desejos – de ter encontrado alguém que realize esta minha sede de doença contorcida, de incerteza, de mistério, de artifício? «Uma das minhas personagens» – atinge bem todo o perigo? Diga o que pensa. E note: aqui não há amor, não há afecto: e o desejo é até a mínima prisão: Mas há todo o quebranto – quebranto para mim – que os meus versos maus longinquamente exprimem. Percebe bem o meu caso? Escreva-me – suplico-lhe – uma longa carta: e diga se mede bem o perigo, se me compreende. É um horror, um horror – porque é um grifado sortilégio. Porque é que eu se devia encontrar alguém: fui encontrar alguém – ainda que noutros vértices – igual a mim próprio? Não sei nada.
Tenha pena de mim: escreva-me imediatamente uma grande grande carta. Adeus.
Mil abraços de toda a alma
o seu, seu
Mário de Sá-Carneiro
Escreva hoje mesmo. Lembre-se da minha angústia. O meu caderno chegou?