Com a possível excepção de Maria José, suposta redactora de «A Carta da Corcunda para o Serralheiro», o Barão de Teive terá sido o último alter-ego inventado por Pessoa, certamente na segunda metade de 1928. Primo espiritual de Bernardo Soares, que se afirma como autor do Livro do Desassossego na mesma altura, o barão pode ser classificado, tal como o ajudante de guarda-livros, de «semi-heterónimo», por a sua personalidade ser, não diferente da de Pessoa, mas «uma simples mutilação dela». Para elucidar esta caracterização de Bernardo Soares, Pessoa escreveu (em 13/1/1935, numa carta a Adolfo Casais Monteiro), «Sou eu menos o raciocínio e a afectividade». O caso do Barão de Teive foi algo diferente, podendo-lhe ter faltado a «afectividade» do seu criador mas não o raciocínio, que possuía e manifestava de uma forma ainda mais ostensiva. «Transferi para Teive a especulação sobre a certeza, que os loucos têm mais que nós», reza um apontamento de Fernando Pessoa, consciente do perigo de se confiar demasiadamente no raciocínio — consciência que tem o seu eco em Bernardo Soares: «Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez» (trecho 430, Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998; 7.ª ed. 2007). Uma frase quase idêntica surge nos escritos do Barão de Teive e este admite, numa outra passagem, que a «conduta racional da vida é impossível» (A Educação do Estóico, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, pp. 25, 28), mas não conseguia controlar-se, visto ser, por definição, o depositário da especulação raciocinativa de Pessoa. É esta mesma condição que o condena a morrer por mão própria: «Atingi, creio, a plenitude do emprego da razão. E é por isso que me vou matar» (p. 57). O Barão de Teive era uma espécie de Monsieur Teste (de Valéry) que falhou, que não conseguiu aguentar tanta lucidez.

Houve, na verdade, uma segunda característica que, aliada à racionalidade hipertrofiada do barão, contribuiu para o seu suicídio. «Meu orgulho», explica ele no seu testamento para a posteridade (A Educação, pp. 50-51), «nunca sofreu que eu me permitisse menos que o que a minha inteligência poderia fazer. Nunca pude conceder a mim mesmo a autorização para o meio-termo, para qualquer coisa menos na obra que a minha personalidade inteira e o meu desejo todo.» Podendo conceber, com a sua sobredotada inteligência, obras literárias absolutamente extraordinárias, era natural que não conseguisse levá-las a cabo. Inconformado, deita fogo a todos os seus escritos — fragmentários, na sua maioria — e põe fim à própria vida. Antes de dar este último passo, porém, resolve escrever uma «memória intelectual» que elucidasse as motivações que o impeliram ao seu acto extremo. Contudo, nem este último e único escrito chega a ser mais do que um amontoado de fragmentos, salpicados de variantes e lacunas, sem um claro fio condutor que pudesse uni-los num todo coerente. Ou seja: Fernando Pessoa, que se queixava amargamente por não conseguir realizar obras grandes e bem acabadas, inventou um semi-heterónimo para retratar e explicar esse seu desgosto, e mesmo isto saiu-lhe mal esboçado, a explicação mal-acabada. Por isso mesmo, pelo estado incompleto e mal contado da sua história, o Barão de Teive cumpriu da forma mais fiel possível o seu papel de não-cumpridor, de não-realizador. Um dos títulos ponderados para a história que narra foi, aliás, A Profissão do Improdutor. E esta improdutividade não se limitou ao plano literário. O barão também sofria por não se realizar sexualmente. A sua provável impotência — ou, no mínimo, a sua total inépcia em relação às mulheres — é figurada, negativamente, pela ausência da sua perna esquerda, amputada por razões não explicadas.

Enquanto Bernardo Soares, pela sua condição social e económica mais humilde, era um Pessoa diminuído, o Barão de Teive, não obstante a sua desfiguração física, era um Pessoa engrandecido, «mutilado» ao contrário. Pessoa, que preconizava (nomeadamente no Livro do Desassossego) o culto de uma aristocracia interior, também nutria pretensões à nobreza de sangue, dado o pai da sua bisavó, descendente de uma ilustre família algarvia, ter mandado cunhar pedra de armas em 1799. Bem mais antigas e puras eram as raízes aristocráticas do abastado Sr. Álvaro Coelho de Athayde, 14.º Barão de Teive (segundo um trecho dactilografado; 20.º barão, segundo um manuscrito mais antigo), morador na Quinta de Macieira, nos arredores de Lisboa. É nesta quinta que se suicida, em 12/7/1920 (o autor, inicialmente, escrevera «1928»), depois de deixar o seu manuscrito na gaveta de um hotel, onde Pessoa vai encontrá-lo por mero acaso. Não se percebe bem se o título da narrativa — A Educação do Estóico, ou O Único Manuscrito do Barão de Teive (é possível que este segundo título seja o subtítulo do primeiro) — devia figurar no próprio manuscrito abandonado ao acaso, ou se lhe foi atribuído por quem casualmente o encontrou.

O estoicismo do Barão de Teive, que recusa a anestesia geral quando lhe cortam a perna e censura os «grandes poetas pessimistas» do século XIX — Leopardi, Vigny e Antero — por erigirem em «tragédias do universo» os seus problemas pessoais, ao invés de os sofrerem em silêncio (A Educação, pp. 52-53), faz lembrar a atitude de Vicente Guedes (ver), enquanto autor fictício do Livro do Desassossego, na década de 1910. Os vários fragmentos que Pessoa escreveu para um prefácio a esta obra datam dessa altura e num deles lê-se: «Vicente Guedes suportava aquela vida nula com uma indiferença de mestre. Um estoicismo de fraco alicerçava toda a sua atitude mental» (Livro do Desassossego, 7.ª edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, p. 475). Outro fragmento diz que o então narrador e protagonista do Livro «mobilara (...) com um certo e aproximado luxo os seus dois quartos», cuidando especialmente das cadeiras, dos reposteiros e dos tapetes, mau grado a sua condição modesta (p. 40). Este é um bom exemplo de um trecho antigo, que Pessoa, se tivesse organizado e publicado o Livro, certamente teria revisto, à luz da «vera psicologia» de Bernardo Soares, tal como surgiu em 1929-1934, pois este vivia demasiadamente nos sonhos para se preocupar com cadeiras e reposteiros. O estilo de Vicente Guedes — menos emotivo, mais objectivo — também lembra o do Barão de Teive, que era, em vários aspectos, o seu herdeiro artístico. Quando Pessoa diz (no Prefácio a Ficções do Interlúdio) que o fidalgo «pensa claro, escreve claro, e domina as suas emoções» e que o seu estilo «é intelectual, despido de imagens, um pouco (...) hirto e restrito», a descrição também valeria para o «autor» primitivo do Livro do Desassossego. Os temas caros ao barão, no entanto, assemelham-se aos do Livro na sua última fase, quando Bernardo Soares tomou conta do leme, e não deve ter sido por mera distracção que Pessoa incluiu quatro textos assinados por Teive no grande envelope onde reuniu os materiais para a sua mais vasta obra em prosa. Desesperando, talvez, de completar e organizar a obra pequena mas caótica do fidalgo, pode ter pensado em saqueá-la em benefício da obra maior.

Embora não ostentem qualquer data, os primeiros trechos atribuídos ao Barão de Teive ocupam vinte e nove páginas de um caderno preto onde, nas duas páginas anteriores, figuram dois poemas datados de 6/8/1928. Para além destas páginas, preenchidas por passagens desconexas, há dezoito textos avulsos, manuscritos ou dactilografados e de dimensões variáveis. Um deles é datado de 27/3/1930. Outro trecho, encimado pela indicação «L. do D. (ou Teive?)», tem sido integrado por todos os especialistas no Livro do Desassossego. Alguns excertos assinados pelo Barão de Teive foram publicados pela primeira vez em 1960, no prefácio a Fernando Pessoa, Obra Poética (org. Maria Aliete Galhoz, Rio de Janeiro, ed. José Aguilar, 1960). A primeira edição da sua obra completa apenas foi publicada em 1999 (edição referida supra).

(Ver R. Zenith, «Post-Mortem», in Barão de Teive [Fernando Pessoa], A Educação do Estóico, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999.)

 

Richard Zenith