Pessoa escreve em 1915, por altura do Orpheu, na sequência da queda em 14 de Maio da ditadura de Pimenta de Castro, uma série de esboços para uma Carta a um Herói Estúpido, título de um texto de intervenção política que nunca chegou a completar. O herói em causa é o tenente Francisco Xavier de Aragão, que luta no Sul de Angola, em Dezembro de 1914, contra as tropas alemãs que invadem o território, aí sendo ferido e feito prisioneiro, pelo que se torna um símbolo para os republicanos e democratas que querem a entrada de Portugal na Grande Guerra ao lado dos Aliados. É esse, que se torna conhecido como o «herói de Naulila», quem profere no Funchal declarações políticas de repúdio pela ditadura terminada, exortando ao mesmo tempo à entrada na guerra para vingar a afronta alemã.

Esta sequência de fragmentos é curiosa, mas não tanto pelo facto de manifestar apreço pelo «patriotismo» de Pimenta de Castro, nem pela constatação da grave falha cultural de «um Portugal onde internacionalmente só se pode ser inglês; onde nacionalmente só se pode ser francês (pois que francesas sejam as ideias republicanas que nos “governam”) – um Portugal onde, portanto, tudo se pode ser […] menos português» (Da República, p. 210), e em que os próprios heróis aparecem a defender as causas dos republicanos democratas.

O que a torna singular é, ainda, a construção heteronímica que nela é esboçada. Assim, a posição assumida por este texto é favorável a Teixeira de Pascoaes, por exemplo, que apelida de «grande Alma lusitana» e «Poeta», em tais termos e com uma tal unção que não são de todo comuns nos textos ortónimos, e muito menos nos heterónimos. Mais, associa os militares à defesa de uma aristocracia portuguesa. E, sobretudo, abraça a ideia germanófila, que neste texto afirma constituir um exemplo para Portugal. Quem escreve este texto é, portanto, marcado do ponto de vista da conjuntura política do tempo e tipificado como uma personagem, construída à imagem ideológica de outras mas também ao contrário de outras do seu universo.

Fernando Cabral Martins

 

BIBL.: Fernando Pessoa, Da República (1910-1935), ed. Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1979.