O conjunto das cartas enviadas por Sá-Carneiro a Pessoa ao longo dos anos 1912-1916 e por este guardadas, ao contrário das que Pessoa enviou a Sá-Carneiro que se perderam na circunstância do seu suicídio em Paris, constituem um dos documentos mais importantes para o conhecimento do período heróico do Modernismo português. A sua primeira edição ocorre em dois volumes, em 1958 e 1959, preparada por Urbano Tavares Rodrigues, e cumprindo com alguma antecedência uma profecia irónica que nelas se pode ler: «Você tem razão, que novidade literária sensacional o aparecimento em 1970 da correspondência inédita de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro – publicada e anotada por… (perturbador mistério!)» (Cartas, p. 131).

Para além da qualidade literária que têm, pois chegam a ser escritas como se de um trabalho poético se tratasse, usando de toda a parafernália retórica e formal dos poemas ou dos contos, perseguindo o objectivo último de uma comunicação privilegiada que Pessoa há-de, num poema de 1935, recordar em termos hiperbólicos: «Como éramos só um, falando! Nós / Éramos como um diálogo na alma» (Poesia, p. 371). Essa presença da literatura é ainda redobrada pelo facto de as cartas servirem para trocar poemas para leitura, e por discutirem depois esses poemas do ponto de vista crítico e poético. Por outro lado, há em Sá-Carneiro – como em Pessoa – uma vontade de «literatura total», que constitui cada acto de escrita como uma síntese de todos os géneros. A carta torna-se literatura, como o poema se reafirma um acto de vida. Isto é: do mesmo modo que alguns dos seus poemas são como cartas dirigidas a um destinatário, as cartas de Sá-Carneiro, sobretudo as que escreve a Pessoa, ganham uma identidade literária declarada, como uma das últimas, em que se lê: «Mas então para fixar o instante desta minha vinda ao Café Riche, onde agora já não entro com me­do de encontrar o Mário – hoje felizmente ele não estava, estava só o Monsieur do Temps – envio-lhe esta carta inútil e riscada que você perdoará» (Cartas, p. 268).

  Porém, e para lá do que ensina sobre o entendimento da poesia por parte de um modernista capital, e para além das informações biográficas de Sá-Carneiro e da sua relação com Pessoa, o seu testemunho fundamental é ainda o dos modos de formação da linguagem paúlica, o que vale dizer, os modos de transformação estética que abre aquilo que designamos por Modernismo: a partir dos poemas em prosa Além e Bailado, e do poema de Pessoa Pauis, e alastrando depois em textos publicados esparsamente de D. Tomás de Almeida, Alfredo Guisado, Carvalho Mourão, Alfredo Cunha. Por um lado, correspondendo ao desafio lançado pelas Vanguardas que Sá-Carneiro com o Santa Rita Pintor de quem tanto fala ou com José Pacheco conhecem em Paris, e cuja leitura transmitem para Portugal com tais entusiasmo e subtileza que, em vez de simplesmente traduzir as formas cubistas ou futuristas, as incorporam em formas originais. Por outro lado, documentando os passos de preparação de Orpheu, primeiro com o título Esfinge, depois Europa. E, em geral, ilustrando o progresso de uma vida no seio de uma transformação colectiva de que é protagonista, lançando sucessivos sinais de uma impossibilidade radical de sobreviver ao excesso que escolheu para morada.

 

Fernando Cabral Martins

 

BIBL.:  Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001; Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006.