Pessoa teve intensa participação no modernismo português. Seu amigo Sá-Carneiro enviava-lhe notícias das vanguardas parisienses e, estimulado por esse diálogo epistolar, o poeta concebeu vários movimentos literários originais: o “paulismo”, o “interseccionismo”, o “sensacionismo”. Em 1914, os dois poetas criaram e animaram a revista Orpheu, na qual o modernismo português esboçou seus primeiros passos.

O futurismo português foi apenas um episódio da renovação artística no país. Iniciou-se com uma “sessão futurista” no Teatro República de Lisboa, no dia 14 de maio de 1917, e findou com a publicação da revista Portugal Futurista, que teve um único número, em novembro do mesmo ano, e foi logo aprendido pela polícia. As propostas futuristas já eram conhecidas em Portugal desde 1909, quando o jornal Diário dos Açores publicou o primeiro manifesto de Marinetti. E em 1916, outro jornal, O Heraldo de Faro, publicava uma “página futurista”.

O conteúdo do número único de Portugal Futurista era, essencialmente, a tradução e a glosa dos principais manifestos futuristas italianos, além da publicidade daquele que se apresentava como o interlocutor português de Marinetti, o artista plástico Santa-Rita Pintor. Mas o número trazia duas colaborações notáveis: a prosa vertiginosa de Almada Negreiros (Saltimbancos - Contrastes simultâneos) e um manifesto assinado por Álvaro de Campos, alter ego daquele que, pela grandeza de seu gênio, estaria associado a todos os ismos, ultrapassando-os todos. Pessoa “ele mesmo” e Sá-Carneiro, já falecido, também  figuravam na revista.

Se olharmos de perto a contribuição de Pessoa nessa publicação, veremos que ela apresenta aspectos peculiares e ambíguos. Primeiramente, não se trata de uma adesão incondicional ao futurismo. Contrariando os decretos de Marinetti, que já havia “matado o luar”, o ortônimo aí publica um decadente “Plenilúnio”, e ainda insiste no tema lunar em outros quatro poemas: “Saudade dada”, “Pierrot bêbado”, “Minuete invisível” e “Hiemal”. São poemas tipicamente decadentistas, de “nevoentos desencantos” e rosas vaporosas “nadas da hora lunar”.

É por delegação a Álvaro de Campos, cosmopolita e novidadeiro, que ele parece aderir ao futurismo. Mas o próprio Campos não é um fiel seguidor de Marinetti. Um rápido exame do “Ultimatum” é suficiente para que concluamos que este, de futurista, só tem a cara tipográfica. São grandes as divergências entre Campos, de um lado, e Marinetti-Almada Negreiros, do outro. Campos é fiel a certos princípios do futurismo, como a rejeição de todo academismo artístico e a própria adoção do gênero “manifesto”, com tudo o que este comporta de insolência, de radicalidade e de terrorismo verbal. Mas acerca de pontos cruciais Campos diverge de Almada, o qual, em seu próprio “Ultimatum”, permanece fiel a Marinetti.

O “Ultimatum” de Campos é, por seu título, uma alusão ao humilhante “Ultimatum” que a Inglaterra dirigira a Portugal em 1890. O texto é um “mandado de despejo” geral, decorrente da constatação de uma “falência dos povos e dos destinos - falência total!”. Nenhuma nação, antiga ou nova, escapa a essa crítica. Os países do Velho Mundo, assim como os Estados Unidos e o Brasil merecem, a seu ver, ser fechados à chave e que se jogue a chave fora.

O futurismo marinettiano era, antes de tudo, uma recusa radical do passado: “Para os moribundos, para os inválidos e para os prisioneiros ainda vai. É talvez um bálsamo para suas feridas o admirável passado, desde que o seu futuro é interditado... Mas nós não o queremos, nós, os jovens, os fortes e os vivos futuristas!” (Primeiro Manifesto). Campos, diferentemente, recusa um presente a seu ver falido, em nome de um passado que foi melhor e cuja grandeza cumpre recuperar: “Onde estão os antigos, as forças, os homens, os guias, os guardas?” É o “agora”, cujas misérias ele enumera, que o enoja e sufoca; é a falta de grandes homens e de grandes projetos que ele denuncia.

Da mesma forma que a política, a estética contemporânea lhe parece falida: “Nem uma corrente literária que seja sequer a sombra do romantismo ao meio-dia!” O desprezo de Campos atinge explicitamente os contemporâneos, inclusive os chefes das vanguardas: “todos vós que sois literatos meneurs de correntes européias [...] Passai vós, que sois autores de correntes literárias, de correntes artísticas [...] Passai, frouxos que tendes a necessidade de serdes os istas de qualquer ismo!”.

Contrariamente a Marinetti (e a Almada), Campos não faz a apologia da guerra. Enquanto Marinetti propunha “glorificar a guerra – única higiene do mundo”, Campos a inclui no conjunto das misérias do presente: “Agora é a guerra, jogo do empurra do lado de cá e jogo de porta do lado de lá!”. Manifesta sua repugnância por ela e, implicitamente, pelos belicistas: “Vem tu finalmente ao meu asco, roça-te tu finalmente contra as solas do meu Desdém, grand finale dos parvos, conflagração-escárnio, fogo em pequeno monte de estrume, síntese dinâmica do estatismo ingênito da Época. Roça-te tu e roja-te, impotência a fazer barulho! Roça-te, canhões declamando a incapacidade de mais ambição que balas, de mais inteligência que bombas!”

E depois de uma grande exclamação “futurista” (“MERDA!”), o que Campos propõe para o futuro é uma retomada da grandeza passada: “Daí Homeros à Era das Máquinas, ó Destinos científicos! Daí Miltons à Época das Coisas Elétricas, ó Deuses interiores à Matéria!” Ora, Marinetti, seguido por Almada Negreiros, propunha exatamente o oposto: que se abandonasse “a ridícula sintaxe herdada de Homero”, que se esquecessem os grandes nomes do passado, substituindo-os pelos de cientistas e inventores modernos.

Entre as propostas do “Ultimatum”, figura a “abolição do dogma da personalidade”. Poderíamos crer que se trata de uma concordância com a destruição do “eu” proposta por Marinetti. Mas, enquanto para o futurista italiano trata-se de abolir o indivíduo, porque a matéria interessa mais do que o homem, para Campos, trata-se da multiplicação das virtualidades subjetivas de cada homem. É importante sublinhar essa oposição, não apenas pelas implicações estéticas, mas também pelas implicações políticas dessas posições. A abolição da psicologia individual desejada por Marinetti coincide com os propósitos do fascismo mussoliniano; é a anulação das diferenças individuais na massa. O que Campos propõe é, pelo contrário, o cultivo das diferenças num sujeito-artista que seria “Síntese-Soma” e não “Síntese-Subtração”. Proposta de um aristocratismo estético nos antípodas do populismo fascista. E, sobretudo, proposta que corresponde ao projeto heteronímico: “O que é preciso é o artista que sinta por um certo número de Outros, todos diferentes uns dos outros”.

Outra divergência, com relação ao futurismo, é que Campos não faz o elogio da força biológica e da intuição, em detrimento da razão e da inteligência. Pelo contrário, apesar de exaltado no tom, seu manifesto dispõe as críticas e propostas numa ordem lógica e racional. Não há aí qualquer abandono ao instinto, qualquer elogio do absurdo; ao inverso, o irracionalismo é aí repelido com desgosto.

Um último ponto, fundamental, afasta Campos dos futuristas. Seu cosmopolitismo, embora proclamado, é epidérmico, e seu lusitanismo é profundo: “Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar! Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!”. Messiânico, ele anuncia que vai “indicar o caminho”. E pouco gregário, termina seu manifesto “na barra do Tejo, de costas pra Europa”.

A declaração lusitanista de Campos reafirma o elo, jamais quebrado, de Pessoa com o “saudosismo” da revista A Águia, na qual ele fizera sua estréia. O futuro desejado por Campos é o “futuro aurora do passado” de Teixeira de Pascoaes. A retomada do programa saudosista, no “Ultimatum”, arruína totalmente seu caráter futurista, no sentido marinettiano do termo (ruptura com o passado, supressão da História) e dá-lhe o tom português e pessoano da utopia messiânica. A nostalgia do glorioso passado, constituinte da própria identidade lusitana, é demasiadamente forte para ser anulada, e o futuro desejado por Pessoa só poderia ser a recuperação mítica desse passado.  

Enquanto a contribuição de Almada Negreiros ao futurismo é vasta e consistente, a produção futurista de Álvaro de Campos se reduz a algumas poucas peças: os poemas “Ode triunfal” e “Ode marítima” (1914); “Saudação a Walt Whitman” (1915); o “Ultimatum”, publicado na revista. Por certas características, esses poemas podem ser considerados futuristas: o elogio da vida moderna, da multidão, da velocidade, da eletricidade e da máquina, o uso de recursos tipográficos variados e de onomatopéias. No entanto, eles são tributários de propostas anteriores ao futurismo (como a poesia de Whitman), de projetos pessoais de Pessoa (como o “sensacionismo”), e apresentam traços melancólicos e disfóricos pouco futuristas.

Todas essas particularidades do futurista Álvaro de Campos anunciam seu afastamento posterior com relação a esse movimento. O interesse de Pessoa pelo futurismo só podia ser parcial e temporário. Enquanto Marinetti fez carreira, Pessoa e seus outros “eus” prosseguiram suas obras num discreto afastamento. O aristocratismo britânico no qual fora educado o inclinava a ver com aversão toda forma de publicidade, de auto-promoção e de arrivismo. No próprio “Ultimatum”, Campos dizia que “a fama convém às atrizes e aos produtos farmacêuticos”. É assim, com distanciamento e ironia, que ele veria, mais tarde, o ingresso de Marinetti na Academia: “Lá chegam todos, lá chegam todos... [...] / Não tenho remédio senão morrer antes [...] / As musas vingaram-se com focos elétricos, meu velho, / Puseram-te por fim na ribalta da cave velha, / E a tua dinâmica, sempre um bocado italiana, f-f-f-f-f-f-f-f...” (“Marinetti, acadêmico”).

 

 

 

Leyla Perrone-Moisés