Distingamos diversas acepções das palavras fragmentação e fragmento. Por um lado, entende-se amiúde por fragmento um texto breve, centrado na sugestão (e não no tratamento exaustivo) de uma ideia. A este nível, o fragmento é definido como um género literário por Friedrich Schlegel e outros autores românticos alemães na revista Athenaeum, nos últimos anos do século XVIII. Um fragmento, não assinado, publicado naquela revista, define esta forma assumidamente romântica: “Igual a uma pequena obra de arte, um fragmento deve ser totalmente desligado do mundo envolvente e fechado sobre si próprio como um ouriço-cacheiro”. Tal fragmento não implica inacabamento nem cisão interna, mas concisão, unidade, um máximo de informação sugerida num mínimo de texto, o Witz irrepetível do autor. São fragmentos, neste sentido, os aforismos esparsos de Pessoa (Aforismos e Afins, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2003); num sentido mais lato, pela concisão e pelo fechamento estrutural e temático, podem também ser lidos como fragmentos os Ruba’iyat de Pessoa (Canções de Beber. Ruba’iyat na obra de Fernando Pessoa, ed. de Maria Aliete Galhoz, Assírio & Alvim, 2003). A máxima “O poema é uma animal”, que Pessoa atribui a Aristóteles em vários textos teóricos, pode definir este modelo de fragmento como organismo vivo, funcional, organizado e uno.

Pelo contrário, o fragmento pode ser considerado como apenas parte de um todo que se perdeu (pense-se nos fragmentos de Heráclito ou do Mar Morto) ou nunca chegou a existir. Assim, o Livro do Desassossego é constituído por fragmentos que não formam uma totalidade, de resto desejada, prevista, mas nunca alcançada pelo autor. Numa carta a Armando Côrtes-Rodrigues, de 4 de Outubro de 1914, Pessoa afirma que escreveu “quase um capítulo todo” do Livro, e a 19 de Novembro: “O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.” (Correspondência 1905-1922, ed. de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, 1999). Colidem aqui um modelo de livro organizado (em capítulos) e a fragmentação de uma escrita compulsiva, que parece ocorrer como um acidente, não um projecto. Na passagem do modelo de livro ideal para a concretização da escrita em fragmentos, a adversativa mostra a vivência disfórica desta fragmentação formal, o inacabamento. De facto, na década de ’10, Pessoa formou índices para definir o livro como um todo mas nunca redigiu nem organizou todos os “capítulos” correspondentes; nos últimos anos de escrita, parece ter abandonado estes índices do Livro do Desassossego. Por outro lado, muitos dos textos do Livro apresentam um acentuado acabamento formal (alguns chegaram a ser publicados autonomamente por Pessoa em revistas).

Numa terceira acepção, o fragmento pode ser a descrição filosófica da individualidade. O verso de Caeiro “A natureza é partes sem um todo” (poema XLVII do conjunto O Guardador de Rebanhos, in Poesia de Alberto Caeiro, ed. de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2001) foi amplamente homenageado pelos discípulos como uma revelação fulcral (e comentado, de um ponto de vista filosófico, por António Mora). Neste sistema, a natureza como descrição de uma totalidade fica ameaçada pela auto-suficiência de cada parte ou fragmento. A consciência de que cada árvore é única, logo não se pode falar de “a árvore” em abstracto (cf. o poema XLV de O Guardador de Rebanhos: “Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas. / Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.” ou este poema dos Poemas Inconjuntos: “Falaram-me em homens, em humanidade, / Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. / Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si, / Cada um separado do outro por um espaço sem homens.”) nega o platonismo ocidental e condensa a proposta neo-pagã de Caeiro: a exigência de uma atenção absoluta aos dados sensoriais. Logicamente, não pode haver partes sem um todo (pelo menos pressuposto); o paradoxo de Caeiro quer-se impensável, aporético. Por outro lado, inaugura um regime de pensamento sobre a imanência e os sentidos (para uma leitura de Campos como criador de um “plano de consistência”, de inspiração deleuziana, ver os ensaios de José Gil, em particular Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Relógio d’Água, 1987): o fragmento irredutível ao todo é, já não o acidente de uma escrita do tratado que soçobra no fragmento, mas a conquista assumida de uma cosmovisão. A fragmentação torna-se o próprio trabalho filosófico/literário da coterie heteronímica.

Esta tripla descrição do fragmento enfatiza o domínio estético da forma romântica (segundo a revista Athenaeum), o não-domínio da fragmentação do Livro do Desassossego (ou outros projectos pessoanos, como Fausto, várias peças de teatro, contos policiários), e o reencontro do fragmento como instrumento de leitura do mundo, domínio de uma visão que implica o não-domínio dos conceitos (como a ideia platónica de “árvore”). A falência formal (“trabalhar bastante (…) Mas tudo fragmentos”) pode ser resgatada por uma nova cosmovisão das partes sem um todo.

Contudo, Pessoa nunca cessa de pensar em termos de unidade do livro ou da obra. Multiplica projectos editoriais (que nunca cumprirá) e publica alguns textos completos e com forte estruturação interna, como os 35 Sonnets,o apolíneo Livro Primeiro de Odes de Ricardo Reis (no número 1 de Athena, em Outubro de 1924), e sobretudo Mensagem, texto exemplarmente completo e organizado (ed. de Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, 1997). Contra o desejo de Caeiro, Mensagem inclui partes que constituem (e exigem) um todo. A leitura de cada poema depende do valor que ele ocupa na economia do livro e das relações narrativas e simbólicas que estabelece com todos os outros poemas. Cada poema é portanto um fragmento cuja legibilidade completa se deve procurar numa leitura holística; por outro lado, Roman Jakobson e Luciana Stegagno-Picchio mostraram (ver o ensaio “Les oxymores dialectiques de Fernando Pessoa”, de 1968) como um poema de Mensagem, “Ulysses”, pede o mesmo protocolo de leitura a partir de macroestruturas formais e semânticas. Neste caso, as partes apenas existem para formarem um todo narrativo (e performativo, se o fecho do livro, “É a Hora!”, apela a uma acção por parte dos seus leitores).

É mais difícil dizer se a heteronímia pessoana constitui uma totalidade (organizada por um eixo narrativo) ou deve ser lida a partir das obras isoladas (fragmentos?) de cada heterónimo. É possível, por exemplo, descrever a heteronímia a partir do relato da sua criação, na carta de Pessoa a Adolfo Casais Monteiro datada de 13 de Janeiro de 1935 (ver Correspondência 1923-1935, ed. de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, 1999). Esta carta ora descreve Pessoa como criador (“Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade.”), ora enfatiza que o próprio Pessoa é um mero medium sem domínio sobre uma estrutura que o transcende (“e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim.”). Em ambos os casos, porém, Pessoa apresenta-se como autor e eixo de um sistema. Por outro lado, é possível descrever a heteronímia enquanto narrativa que reorganiza diferenças a partir de um magistério (seguido ou recusado) do mestre Caeiro. Perante este novo eixo, Pessoa é apenas um satélite, que Campos aliás não parará de menosprezar; os vários discípulos surgem como sombras do mestre, cuja doutrina (impura no próprio Caeiro apaixonado ou doente) vão traduzindo, corrompendo, e mesmo recusando (cf. o poema de Campos que começa pelo verso “Mestre, meu mestre querido!”: “Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!”, in Livro de Versos, ed. de Teresa Rita Lopes, Estampa, 1993). Mas a esta descrição da heteronímia como sistema de fragmentos (ou apostolados) centrado em Caeiro é preciso contrapor descrições alternativas, como a que Teresa Rita Lopes explora em Pessoa por Conhecer (2 vols., Estampa, 1990): António Mora, Alberto Caeiro e Ricardo Reis são (começaram por ser?) loucos internados numa  Casa de Saúde… Por outro lado, não existe nenhuma narrativa que permita organizar num sistema as obras de todos os heterónimos. Se Campos, Reis, Mora e o próprio Pessoa forem fragmentos do sistema centrado no eixo Caeiro, já Alexander Search, Charles Robert Anon ou Pantaleão, por exemplo, permanecem fatalmente fragmentos com lógicas próprias mas sem integração num todo maior.

Na verdade, cada heterónimo define-se como uma totalidade ou uma rede de fragmentos. Se Reis pode apelar ao todo (e definir portanto o seu próprio ideal) nos versos “Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes.” (cf. Poesia, ed. de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, 2000), o Campos futurista suspira, no último verso da “Ode Triunfal”, publicada no número 1 de Orpheu (1915): “Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!”, confessando implicitamente que, apesar desse mesmo desejo, ele não é toda a gente e toda a parte, é inevitavelmente um fragmento que aspira a ser um todo. Depois do futurismo, Campos reconhece, em termos mais disfóricos, essa condição de incompletude, em poemas como “Lisbon Revisited (1926)” (“Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico, / E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –”) ou “Apontamento” (“Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. / Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.”).

Quanto ao ortónimo, define-se como reunião instável de várias personalidades ou simples emissário/fragmento de um Outro inatingível: “Emissário de um rei desconhecido, / Eu cumpro informes instruções de além”, diz um soneto do conjunto “Passos da Cruz” (in Ficções do Interlúdio, ed. de Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, 1998), numa proposta que terá desenvolvimentos em Reis ou em textos de inspiração ocultista. Este retrato do sujeito como fragmento ou conjunto de fragmentos conhece versões eufóricas (como nesta carta, certamente de 1916, a um editor inglês não identificado: “O senhor deve admirar-se de que alguém que se declara pagão subscreva tais fantasias. Era pagão, contudo, dois parágrafos acima. Já o não sou ao escrever este. No final da carta, espero ser já qualquer outra coisa. Traduzo na prática, tanto quanto me é possível, a desintegração espiritual que proclamo.” (tradução portuguesa de uma carta originalmente em inglês, in Correspondência 1905-1922)) e versões disfóricas, confissões de impotência, incapacidade de descrição de si, no sentido foucaldiano. A este nível, Pessoa ecoa a confissão das personagens de Sá-Carneiro, inevitavelmente condenadas a um limbo entre a mediania burguesa já recusada e a perfeição do Outro sempre inatingível: “Um pouco mais de sol – eu era brasa, / Um pouco mais de azul – eu era além. / Para atingir, faltou-me um golpe d’asa… / Se ao menos eu permanecesse aquém…” (Poemas Completos, ed. de Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, 2001). Numa concordância surpreendente com a obra de Freud, que Sá-Carneiro provavelmente não leu e de que Pessoa terá tido uma abordagem incompleta e pouco empática (ver a carta a João Gaspar Simões de 11 de Dezembro de 1931), os dois poetas definem-se como egos humilhados sob o jugo de um ideal de ego (o Outro, Caeiro) poderoso – ou fragmentos que nunca serão todos.

Perante esta dialéctica entre modelos concorrentes de totalidade e a constatação da fragmentação do sujeito e da obra, o ensaísmo contemporâneo explora várias soluções. É possível, por exemplo, contrapor à dispersão de verdades no sistema heteronímico a organização simbólica dos próprios nomes dos heterónimos (ver a leitura de Jakobson e Picchio dos nomes de Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro como combinatória de sílabas, e a releitura lacaniana por Maria Augusta Babo, no número 108 deColóquio Letras, desta sistematização de nomes). Eduardo Lourenço faz uma “leitura estruturante do drama em gente” (subtítulo do estudo seminal Pessoa Revisitado, de 1973) centrado em Caeiro como lugar da verdade possível, mas enfatizando sempre que a heteronímia não é um acidente subsumível numa simples “totalidade”-Pessoa: as quatro escritas heteronímicas “permanecerão para sempre separadas umas das outras, e é inútil buscar na sua impossível soma «a unidade» que não podem constituir. Mas essa «separação» possui uma lei interna, uma arquitectura cuja presença basta para separar radicalmente o pré-Pessoa anterior ao nascimento heteronímico e aquele que a heteronímia marcará para sempre.”). Quanto a Teresa Rita Lopes, redefine a heteronímia como a totalidade de uma drama de que cada heterónimo é um actor-personagem. Finalmente, onde Pessoa começa por descrever a disforia de um autor que não alcança a completude desejada (lembre-se Bernardo Soares lamentando a incapacidade de pensar, descrito aliás por Pessoa como um semi-heterónimo que surge “sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição”, na carta a Casais Monteiro de 13 de Janeiro de 1935), Eduardo Prado Coelho aponta, pelo contrário, a possibilidade de um modelo de pensamento híbrido, atento ao irracional e transgressor de modelos lógicos aristotélicos (ver “Pessoa: lógica do desassossego”, in A Mecânica dos Fluidos, INCM, 1984). Por fim, Manuel Gusmão observa como o Livro do Desassossego e o poema dramático incompleto Fausto são “dois textos fragmentários, não só inacabados mas também inacabáveis”, tanto mais que o inacabamento em Pessoa seria menos uma falha do que o apontar da própria condição aporética da escrita: “Diante deste texto [Fausto], continuo a pensar que é necessário passar da constatação de que ele é assim porque ficou inacabado, para a hipótese de que ele ficou inacabado porque era ou ia sendo assim.” (ver “O Fausto – um teatro em ruínas”, in Românica, nº 12, 2003).

Também a edição da obra de Pessoa obriga a definir compromissos entre a fragmentação (inacabamento / desorganização) evidente dos textos e a formação de totalidades e sistemaspossíveis. Paradigmaticamente, para criar uma sintaxe que una os mais de quinhentos fragmentos do Livro do Desassossego (e este título sugere já uma unidade que deveria, talvez, desmentir aquele plural), Richard Zenith sugere, no prefácio à sua edição (Assírio & Alvim, 1998), a pertinência de uma nova versão do Livro em suporte informático ou folhas/cadernos soltos que apresente os fragmentos numa ordem aleatória ou escolhida pelo próprio leitor (haveria, assim, tantos livros quantos os leitores – ou mesmo quantos os acessos do leitor ao livro digital). Resta perguntar se, perante esta edição do texto como virtualidade ou fragmentação infinita, não existe sobreposição de uma matriz pós-modernista capacitante onde Pessoa, num gesto modernista, apenas deixou os despojos de um livro impossível.

 

Pedro Eiras

 

Bibliografia

Manuel Gusmão, “O Fausto – um teatro em ruínas”, in Românica. Revista de literatura, nº 12, Lisboa, Departamento de Literaturas Românicas, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Colibri, 2003: 67-86.